Estelionato e REPRESENTAÇÃO : há RETROAÇÃO da Lei 13.964/2019 se já iniciada a ação penal ? ATENÇÃO !

Outra “polêmica” do momento é saber se a sistemática estabelecida pela Lei nº 13.964/2019 para o processamento dos delitos de estelionato deve retroagir.

A regra tem o seguinte teor:

Art. 171. […]

§ 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – a Administração Pública, direta ou indireta; Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III – pessoa com deficiência mental; ou(Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV – maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

A regra é que, desde a vigência da Lei nº 13.964/2019, a ação penal por estelionato somente pode iniciar mediante representação, salvo as exceções legais ali previstas (que continuam sendo de ação penal pública incondicionada).

Já assentamos de forma expressa nossa posição no sentido de que, iniciada a ação penal (com o recebimento da peça acusatória) antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, não há como se aplicar retroativamente a (nova) condição que foi criada para o ajuizamento de ações penais em crimes de estelinato (Comentários ao CPP e sua Jurisprudência, 14ª ed., 2022).

É importante destacar que o STJ e a 1ª Turma do STF vêm afirmando, categoricamente, que não se aplica retroativamente a norma se a denúncia já foi recebida. Em sentido contrário, a 2ª Turma do STF, para quem deve-se aplicar retroativamente “porque seria mais benéfica”. Veja-se aqui, exemplificativamente:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. DECISÃO AGRAVADA EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA SEGUNDA TURMA QUE ORIENTA A MATÉRIA SOB EXAME. ESTELIONATO. LEI 13.964/2019. ART. 171, § 5º, CP. NOVA HIPÓTESE DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE. NORMA DE CONTEÚDO MISTO. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. ART. 5º, XL, CF. REPRESENTAÇÃO.

I – A decisão ora atacada não merece reforma ou qualquer correção, pois os seus fundamentos harmonizam-se estritamente com a jurisprudência desta Segunda Turma que orienta a matéria em questão.

II – A inovação trazida pela Lei 13.964/2019, que alterou a natureza da ação penal para pública condicionada à representação, “[…] é norma penal de caráter mais favorável ao réu e, nos termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado” (ARE 1.249.156/SP-AgR-ED, rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma). III – Agravo a que se nega provimento. (Agravo Regimental no HC nº 215.010-RN, STF, 2ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em sessão virtual encerrada em 3.6.2022, publicado no DJ em 8.6.2022)

Em nossa compreensão essa interpretação da 2ª Turma do STF incide em três equívocos, respeitosamente (o último deles raramente enfrentado e que, salvo melhor juízo, demonstre a insustentatibilidade total dessa “interpretação”).

A primeira questão a ser fixada é que essa “representação” é uma verdadeira condição de procedibilidade.

Se uma ação penal foi instaurada sem essa condição porque era inexigível no momento do recebimento da peça acusatória, não há como “retroagir” o alcance dessa norma que fixou, para o futuro, novas regras para o processamento criminal. O ato já realizado (denúncia oferecida sem a exigência de representação e recebimento da acusação) é juridicamente perfeito. Noutras palavras, a ação penal foi legalmente instaurada conforme a expressa exigência da lei vigente no momento do ato (tempus regit actum). Tanto é assim que a própria 2ª Turma do STF (dentre tantos exemplos possíveis) tem compreensão que o interrogatório sendo o último ato do processo conforme nova redação do CPP não se aplicaria aos casos anteriormente feitos em que não o era, presente o princípio do tempus regit actum. Veja-se:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL. ALTERAÇÃO DO ART. 400 DO CPP APÓS A REALIZAÇÃO DO INTERROGATÓRIO. TEMPUS REGIT ACTUM. ALEGAÇÃO DE NULIDADE IMPROCEDENTE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. SÚMULA 523/STF. REAPRECIAÇÃO DO CONJUNTO FATICOPROBATÓRIO. SÚMULA 279/STF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

I – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é forte no sentido de que, realizado o interrogatório na forma da lei vigente à época, não há razão jurídica para determinar a sua renovação como último ato da instrução penal, tendo em vista o princípio processual do tempus regit actum. Precedentes. […] (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 1.169.982 – PR, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 16.5.2019, publicado no DJ em 23.5.2019)

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. LEI 11.719/2008 QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 400 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NOVO INTERROGATÓRIO. REALIZAÇÃO. PRETENSÃO. DESCABIMENTO. NULIDADE. ALEGAÇÃO. PREJUÍZO. INEXISTÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

I – O interrogatório do paciente ocorreu em data anterior à publicação da Lei 11.719/2008, o que, pela aplicação do princípio do tempus regit actum, exclui a obrigatoriedade de renovação do ato validamente praticado sob a vigência de lei anterior. […] (Habeas corpus nº 104.555, 1ª Turma, unânime, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 28.09.2010, publicado no DJ em 15.10.2010).

Uma incongruência argumentativa da e. 2ª Turma, venia concessa.

Não bastasse isso, há outro empeço.

Estão sendo deferidas ordens para aplicação retroativa do dispositivo sem qualquer análise se, no caso concreto, houve manifestação da vítima (mesmo que sem maiores formalidades) para a apuração dos fatos e/ou processamento criminal. Aí é preciso reconhecer que a 2ª Turma já analisou essa questão, não concedendo a ordem pretendida:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. MATÉRIA CRIMINAL. ESTELIONATO. […] LEI 13.964/2019. INCLUSÃO DO § 5º DO ART. 171: AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO. NOVA HIPÓTESE DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE. NORMA DE CONTEÚDO MISTO. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. ART. 5º, XL, DA CF. REPRESENTAÇÃO. DISPENSA DE MAIOR FORMALIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

[…] 2. A expressão “lei penal” contida no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal é de ser interpretada como gênero, de maneira a abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo.

3. O § 5º do art. 171 do Código Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, ao alterar a natureza da ação penal do crime de estelionato de pública incondicionada para pública condicionada à representação como regra, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque, ao mesmo tempo em que cria condição de procedibilidade para ação penal, modifica o exercício do direito de punir do Estado ao introduzir hipótese de extinção de punibilidade, a saber, a decadência (art. 107, inciso IV, do CP).

4. Essa inovação legislativa, ao obstar a aplicação da sanção penal, é norma penal de caráter mais favorável ao réu e, nos termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado. Precedentes do STF.

5. A incidência do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, como norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não está condicionada à atuação do legislador ordinário.

6. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que a representação da vítima, em crimes de ação penal pública condicionada, dispensa maiores formalidades. Precedentes.

7. No caso concreto, verifico que a vítima, a despeito da ausência de representação formal, demonstrou insofismável interesse na persecução penal, visto que prestou esclarecimentos nesse sentido não apenas em campo policial, mas também em sede judicial. Agravo regimental desprovido. (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.289.175/PR, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 21.9.2021, publicado no DJ em 8.2.2022)

Na verdade, raros são os casos de estelionato que “começam” a ser apurados sem que haja uma “comunicação” feita pela vítima. Ou seja, essa condição agora exigida sempre foi, de certa forma, presente (regra geral) nas apurações dos delitos de estelionato.

Ou seja, deveria-se verificar exatamente o que foi feito de modo cuidadoso no caso acima mencionado, reconhecendo-se que essa providência da vítima já estava nos autos, pois prestou notícia que ensejou a investigação criminal.

Não fosse tudo isso, há um outro dado pouco observado. E para nós o mais importante, que deve ser “conjungado” com o pressuposto acima analisado (compreende-se na “representação” qualquer manifestação inequívoca da vítima).

É que o art. 25 do CPP dispõe expressamente que “a representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia”.

Atente-se que a lei não fala “recebida”, mas “oferecida”.

É dizer, para os casos que seria “exigível” a representação (mesmo que “informal”), qualquer manifestação da vítima posterior ao “oferecimento” da denúncia não teria qualquer feito jurídico.

Se uma nova lei passou a exigir a representação (o § 5º do art. 171 do CP), essa regra precisa ser compatibilizada com o próprio art. 25 do CPP.

Significa logicamente que, depois de oferecida a denúncia, não há sentido algum aplicar retroativamente nem mesmo uma nova lei que estipule esse requisito.

Essa é uma das razões pelas quais não há como se aplicar retroativamente a nova exigência da Lei nº 13.964/2019 se, quando ela entrou em vigor, a denúncia já tivesse sido “oferecida”. Evidente que, se não oferecida, será possível a aplicabilidade de forma retroativa.

Alertamos para essa distinção importante ao tratarmos da “irretroatividade” do ANPP (aqui:https://temasjuridicospdf.com/nao-cabe-anpp-a-acoes-penais-instauradas-antes-da-lei-n-13-964-2019/), em que a Lei nº 9.099/95 passou a exigir representação da vítima.

Reproduzimos:

[…] O argumento utilizado por alguns é que, a partir do julgamento plenário na Questão de Ordem no Inquérito 1.055, em 26.4.1996, o STF teria decidido que as regras da Lei nº 9.099/95 seriam (todas) retroativas por serem mais benéficas. Logo o mesmo deveria ser feito com o ANPP.

A ementa diz o seguinte (e pode induzir realmente a tais interpretações pela leitura exclusiva dela):

[…] EXIGÊNCIA SUPERVENIENTE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO ESTABELECIDA PELA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91), QUE INSTITUIU OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. NORMA PENAL BENÉFICA. APLICABILIDADE IMEDIATA DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/95 AOS PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES. NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. – A Lei n. 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, subordinou a perseguibilidade estatal dos delitos de lesões corporais leves (e dos crimes de lesões culposas, também) ao oferecimento de representação pelo ofendido ou por seu representante legal (art. 88), condicionando, desse modo, a iniciativa oficial do Ministério Público a delação postulatória da vítima, mesmo naqueles procedimentos penais instaurados em momento anterior ao da vigência do diploma legislativo em questão (art. 91). – A lei nova, que transforma a ação pública incondicionada em ação penal condicionada a representação do ofendido, gera situação de inquestionável benefício em favor do réu, pois impede, quando ausente a delação postulatória da vítima, tanto a instauração da persecutio criminis in judicio quanto o prosseguimento da ação penal anteriormente ajuizada. Doutrina.

LEI N. 9.099/95. CONSAGRAÇÃO DE MEDIDAS DESPENALIZADORAS. NORMAS BENÉFICAS. RETROATIVIDADE VIRTUAL. Os processos técnicos de despenalização abrangem, no plano do direito positivo, tanto as medidas que permitem afastar a própria incidência da sanção penal quanto aquelas que, inspiradas no postulado da mínima intervenção penal, tem por objetivo evitar que a pena seja aplicada, como ocorre na hipótese de conversão da ação pública incondicionada em ação penal dependente de representação do ofendido (Lei n. 9.099/95, arts. 88 e 91). – A Lei n. 9.099/95, que constitui o estatuto disciplinador dos Juizados Especiais, mais do que a regulamentação normativa desses órgãos judiciários de primeira instância, importou em expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando instrumentos destinados a viabilizar, juridicamente, processos de despenalização, com a inequívoca finalidade de forjar um novo modelo de Justiça fundadas na própria vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal. Esse novíssimo estatuto normativo, ao conferir expressão formal e positiva às premissas ideológicas que dão suporte às medidas despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95, atribui, de modo consequente, especial primazia aos institutos (a) da composição civil (art. 74, parágrafo único), (b) da transação penal (art. 76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão condicional do processo (art. 89). As prescrições que consagram as medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente impulsionadas, quanto a sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe a lex mitior uma insuprimível carga de retroatividade virtual e, também, de incidência imediata.

PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS (INQUÉRITOS E AÇÕES PENAIS) INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES E DE LESÕES CULPOSAS – APLICABILIDADE DA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91). – A exigência legal de representação do ofendido nas hipóteses de crimes de lesões corporais leves e de lesões culposas reveste-se de caráter penalmente benéfico e torna consequentemente extensíveis aos procedimentos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal os preceitos inscritos nos arts. 88 e 91 da Lei n. 9.099/95. O âmbito de incidência das normas legais em referência – que consagram inequívoco programa estatal de despenalização, compatível com os fundamentos ético-jurídicos que informam os postulados do Direito penal mínimo, subjacentes a Lei n. 9.099/95 – ultrapassa os limites formais e orgânicos dos Juizados Especiais Criminais, projetando-se sobre procedimentos penais instaurados perante outros órgãos judiciários ou tribunais, eis que a ausência de representação do ofendido qualifica-se como causa extintiva da punibilidade, com consequente reflexo sobre a pretensão punitiva do Estado.

Para além de uma “interpretação da ementa”, o que disse o STF nesse julgado ?

A primeira questão que fica bem clara é que estavam discutindo, primordialmente, sobre a necessidade (ou não) de representação do ofendido em crimes de lesões corporais em razão da norma mais benéfica que foi instituída pelo art. 91 da Lei nº 9.099/95 (Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência).

A segunda: a jurisprudência “invocada” por alguns para justificar a aplicação retroativa de todos dispositivos mais benéficos basicamente se faz sobre parte do julgado, que está na segunda parte da ementa.

A terceira: embora parte final da ementa fale em inquéritos e ações penais, precisamos ver o que efetivamente constou da fundamentação do julgado e sua extensão efetiva.

E a quarta: o caso em que decidido o tema pelo plenário não era ação penal, mas um inquérito (ou seja, não havia processo). Então a discussão era sobre a exigibilidade (ou não) da condição que passou a existir (a representação) para os inquéritos em andamento. E corretamente o STF disse que seria exigível, pois não recebida ainda a denúncia.

leading case do STF na Questão de Ordem no Inquérito nº 1.055 tratava de uma investigação criminal para apurar a prática do delito de lesões corporais previsto no art. 129, caput, CP, fato ocorrido no dia 19.5.1993 (aproximadamente 3 anos antes da decisão). Discutia-se, primordialmente, se, pela nova regra do art. 91 da Lei nº 9.099/95, deveria subordinar-se a perseguibilidade das infrações em questão (até então de ação penal pública) à prévia representação da vítima. O tema foi submetido ao plenário (por isso em questão de ordem) exatamente com a finalidade (única) de definir se os arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95 se aplicariam aos casos originários do STF (porque se tratava de competência penal originária, sobre o que nada falava a nova lei, e estavam diante de inquérito em trâmite perante o STF).

No caso, o relator pontuou que a representação da vítima – até então inexigível para essa modalidade infracional – passou a constituir uma delatio criminis postulatória, para que, eventualmente, fosse instaurada uma ação penal. Assim, disse o relator, o “ato de delação postulatória tornou-se indispensável ao válido ajuizamento da própria ação penal e, também, à instauração do procedimento de investigação criminal”. Assim, complementou, “tratando-se de persecutio criminis em sua fase pré-processual, o respectivo inquérito – nos crimes em que a ação pública depender de representação – não poderá, sem esta, ser iniciado, consoante prescreve o ordenamento positivo. […] De outro lado, e com maior razão, o próprio ajuizamento da ação penal, pelo Ministério Público condicionar-se-á à formalização, pelo ofendido, em tempo oportuno, do ato necessário de representação” (grifamos para enfatizar que se tratava de inquérito, em fase pré-processual).

[…]

Dentro do limite da discussão posta (exigir-se ou não representação do ofendido e se incidia sobre casos com prerrogativa de foro, e não sobre a aplicabilidade da transação penal ou da suspensão processual), concluiu que, “independentemente do órgão judiciário ou da instância jurisdicional perante os quais tenham curso ou hajam sido instaurados os procedimentos penais que se lhes aplicam, de imediato as normas materiais de conteúdo penalmente benéfico, como aquelas consubstanciadas nos arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95, concernentes à necessidade de representação do ofendido nos delitos de lesões corporais leves ou de lesões corporais culposas”.

Veja-se que, no excerto acima, não se fala em ações penais, mas em procedimentos penais, que são coisas bem diversas (exatamente porque ali se tratava de um procedimento de investigação penal, não de ação penal). Também fala em normas de cunho estritamente material. Tanto é assim que, na sequência, novamente referiu que a “possibilidade de estender os preceitos em causa a procedimentos penais instaurados perante outros órgãos judiciários […] decorre […] do fato de que as regras consubstanciadas nos arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95 qualificam-se como prescrições de natureza penal e de conteúdo material, veiculadoras de uma específica modalidade de despenalização”.

A sua conclusão foi no sentido de, unicamente, determinar a suspensão “desse procedimento penal” (veja-se novamente: fala em procedimento penal, o inquérito) “para que se proceda, no caso, nos termos do art. 91 da Lei nº 9.099/95, à intimação de […], vítima do delito de lesões corporais leves […] a fim de que, no prazo de 30 dias, querendo, ofereça, ou não, a necessária representação, sob pena de decadência”.

A partir do que pontuado, o que se verifica que foi efetivamente decidido e quais conclusões nos importam aqui ?

Em nenhum momento o STF assentou, aqui, que as regras do art. 76 e 89 da Lei nº 9.099/95 se aplicariam às ações penais em andamento, o tema central era outro (da exigibilidade ou não de representação o ofendido em caso que tramitava sem ação penal, era um inquérito, ou, na lítera do julgado, um procedimento processual penal).

O STF expressamente distinguiu hipóteses de procedimento penal (investigação) e ação penal.

Está bem clara a distinção que o Plenário do STF fez à época.

E essa distinção é essencial para a CORRETA COMPREENSÃO do tema.

Claro que, se não oferecida a denúncia quando tenha entrado em vigor a Lei nº 13.964/2019, o efeito é retroagir a exigência desse novo requisito para a instauração da ação penal.

Mas não nos casos em que já foram regularmente instauradas as ações penais.

Felizmente essa (para nós) melhor interpretação não passou despercebida em recentíssima decisão da 1ª Turma do STF, publicada hoje, 10 de novembro de 2022, que assentou:

[…] Trancamento da ação penal. Estelionato. Ação penal pública condicionada à representação a partir da Lei nº 13.964/19 (“Pacote Anticrime”). Pretendida aplicação retroativa da Lei nº 13.964/19. Inviabilidade. Sentença condenatória em grau de recurso por ocasião da entrada em vigência da norma. Precedentes. Retratação do ofendido após a sentença condenatória.Irretratabilidade da representação após oferecimento da denúncia (art. 25 do CPP). Reiteração dos argumentos da petição inicial. Ausência de impugnação específica. Agravo não provido. […]

3. O § 5º do art. 171, com a redação dada pela Lei nº 13.964/19 (Pacote Anticrime), que condiciona a ação penal por crime de estelionato à representação da vítima, não deve retroagir às hipóteses em que, após a vigência da referida alteração, já houver sido oferecida denúncia (HC nº 187.341/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe de 4/11/20).

4. No presente caso, o ofendido manifestou, em 4/1/21, não haver interesse no prosseguimento da ação penal, após, portanto, o oferecimento da denúncia, em 12/8/15. Assim, além de a denúncia ter sido oferecida antes da Lei nº 13.964/19 (Pacote Anticrime), a retratação da vítima foi realizada após a sentença condenatória, não havendo repercussão na continuidade do processo, ainda que tenha havido ressarcimento ao ofendido (art. 25 do CPP: “A representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia”). Agravo regimental não provido. (Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Habeas Corpus nº 212.278-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Tóffoli, julgado em sessão virtual de 19.8.2022 a 26.8.2022, DJ de 10.11.2022)

Importante visualizar que, no caso acima, HOUVE RETRATAÇÃO da vítima.

Mas NÃO REPERCUTIU em absolutamente nada no regular andamento do feito, pois aplicada a regra expressa do art. 25 do CPP.

Noutras palavras, é totalmente inconsistente a discussão teórica de “retroatividade” ou não do § 5º do art. 171 do CP se a denúncia já tenha sido oferecida (nem precisa recebimento) antes da Lei nº 13.964/2019 diante da expressa regra do art. 25 do CPP.

Salvo melhor juízo.

Acesse o inteiro teor aqui

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