A sentença da Corte IDH no Caso Fernández Prieto y Tumbeiro, as interpretações do STF e alguns desvios de premissas e julgamentos pelo STJ

Douglas Fischer

Procurador Regional da República na 4ª Região,

Mestre em Instituições de Direito e do Estado pela PUCRS, Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal

1. Introdução. 2. Análise dos casos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2.1. Situação envolvendo a prisão de Fernández Prieto. 2.2. Situação envolvendo a prisão de Carlos Alejandro Tumbeiro. 3. Considerações gerais da Corte no julgamento dos casos. 4.Considerações específicas no julgamento dos casos. 4.1. Prisão do Senhor Fernandéz Prieto. 4.2 Prisão do Senhor Tumbeiro. 4.3 Disposições complementares importantes da sentença. 5. As previsões constitucionais e legais que tratam do tema de garantias correlacionadas ao que decidido pela Corte IDH. 6. Quatro decisões relevantes do STF.6.1 O leading case no RE nº 603.6166. 6.2 Os embargos de divergência no RE nº 1.472.570. 6.3 A fuga como justa causa para ingresso em domicílio segundo o STF. 6.4 O HC nº 208.240 e a tese do STF sobre requisitos sobre busca pessoal. 6.5 6.5 Conclusões parciais e sintéticas sobre o entendimento do STF frente ao posicionamento da Corte IDH. 7. Decisões consideradas como paradigmas no STJ. 8. Desdobramentos no âmbito do STJ. 9. Uma parcial “correção de rumo” quando se trata de abordagens de rotina em estradas e vias públicas. 10. Reformas de decisões do STJ pelo STF pelo descumprimento dos parâmetros fixados em sede de repercussão geral. 11.Conclusões

1. Introdução

O objetivo do presente texto é partir da análise da decisão da Corte IDH no Caso “Fernández Prieto y Tumbeiro” vs Argentina, cuja sentença foi proferida em 1º.9.2020, e, na sequência, fazer um cotejo com decisões internas da justiça brasileira que estão fazendo um “controle de convencionalidade” em casos ocorridos no Brasil. Deixa-se bem expresso que as eventuais divergências aqui expostas são exclusivamente jurídicas e todas as críticas são de cunho acadêmico, jamais lançadas aos prolatores das decisões, até porque entendemos antecipadamente que podemos estar equivocados, na medida em que se tratam de interpretações.

Inicialmente é preciso explicar que essa sentença proferida pela Corte IDH envolve dois casos distintos: a) a prisão de Carlos Alberto Fernández Prieto em maio de 1992 por agentes da Polícia de Buenos Aires; b) e a prisão de Carlos Alejandro Tubeiro, em janeiro de 1998, por agentes da Polícia Federal argentina.

Segundo a Comissão (CIDH), ambas prisões foram realizadas sem ordem judicial e sem “estado de flagrância”, indicando-se que em nenhum dos casos se estabeleceu, de maneira detalhada na documentação respectiva, quais foram os elementos que ensejaram a um “grau de suspeita razoável” sobre a prática de um possível crime pelos “detidos”. Assim mesmo, concluiu a Comissão, no caso do Senhor Tumbeiro, as justificativas dadas foram o “estado de nervosismo” e a “inconsistência” entre sua vestimenta e o local em que se encontrava, o que poderia caracterizar um conteúdo discriminatório com base na aparência e os “prejuízos” sobre referida aparência em relação ao local.

2. Análise dos casos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Para quem não está acostumado à análise dos julgados do Tribunal, impende reforçar aqui que as sentenças são proferidas com sequência e indicação de parágrafos, o que facilita inclusive para uma análise comparativa das referências que forem feitas.

Nessa demanda, em 4 de março de 2020, a Argentina admitiu que eram procedentes todas as conclusões da Comissão, referindo que as prisões mencionadas se deram “num contexto geral de prisões praticadas sem ordem judicial nem suspeitos de flagrância”. E que muitas outras prisões também decorreram de “atuações policiais descontroladas, incentivadas por políticas de segurança pública baseadas em operações de prevenção discricionárias”, sem investigação ou informações de inteligência prévias, não havendo um adequado – quando não inexistente – controle judicial (§ 26). Aliás, no Caso Bulacio vs Argentina (1991) já tinham sido reconhecidos esses atos de prisões indiscriminadas (§ 27). Tanto isso ocorria que, em 1995 (depois das prisões, mas antes da sentença), o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas instou a Argentina a tomar todas as medidas necessárias para impedir mais casos de prisões arbitrárias.

2.1. Situação envolvendo a prisão de Fernández Prieto.

No dia 26 de maio de 1992, um inspetor e dois sargentos da Polícia da Província (Estado) de Buenos Aires estavam “andando na área de sua atuação” quando, por volta de 19h, avistaram, numa zona quase desabitada de Mar de Plata (cidade contínua à capital), um veículo verde com “três sujeitos em seu interior em atividade suspeita”, dentro os quais estava Carlos Alberto Fernández Prieto. Os agentes interceptaram o veículo, obrigaram todos descer e, na presença de duas testemunhas, iniciaram uma revista. No porta-malas do veículo, foi encontrado um tijolo envolvido em papel prateado com fita marrom cujo aroma e características poderia ser “maconha”, além de um revólver calibre 32 com dez projéteis e 30 cartuchos. No assento ocupado por Fernández Prieto, foram encontrados 5 tijolos iguais ao anterior, uma pistola calibre 22 com 8 projéteis, um carregador e dois coldres de pistolas. Os bens foram apreendidos, Fernández Prieto e os demais foram presos e encaminhados para uma delegacia de polícia. Também ficou expresso que um dos agentes responsáveis pelas prisões declarou por escrito que, no momento da “averiguação”, Fernández Prieto reconheceu que se dirigiam para entregar a drogas a uma pessoa chamada “Guillermo ou Toti”, quem lhes pagaria pelos produtos ilícitos. Também houve referência que, no dia 16 de junho de 1992, Fernández Prieto declarou que assumira a responsabilidade por “tudo”, eximindo os demais dos fatos (§§ 34 e 35).

Um dos presos declarou que as armas eram de sua propriedade e que tinha permissão de porte. Mas destacou que em nenhum momento imaginou o que Fernández Prieto estaria transportando. Carlos Alberto também teria declarado no mesmo dia que uma pessoa chamada Júlio aventou a possibilidade de ganhar USD500 para levar uma “mercadoria” para Mar del Plata. Júlio já teria lhe “adiantado” USD200, num encontro marcado numa esquina na cidade de Buenos Aires. Destacou que todos os pacotes estavam debaixo do assento do carro do condutor, lado traseiro.

No processo criminal contra Fernández Prieto, sua defesa sustentou que não havia quaisquer elementos que justificassem a apreensão, tudo decorrendo de uma “medida arbitrária” (§ 38).

A sentença condenatória foi proferida em 19 de julho de 1996, com imposição de 5 anos de prisão e multa de três mil pesos pelo transporte de drogas, afastando expressamente a tese de nulidade arguida, assentando que “os agentes policiais atuaram dentro de suas atribuições que lhes garante a lei”, pois o veículo e as pessoas realmente estavam em “atividade suspeita” (§ 39). No dia 26 de novembro de 1996, o Tribunal competente negou provimento ao recurso defensivo, dizendo que a apreensão e a prisão decorreram de um “estado de suspeita prévio” e que, no caso, “resultava impossível requerer uma ordem judicial prévia” (§ 41).

Recursos subsequentes foram desprovidos e, em 12 de novembro de 1998, a Corte Suprema de Justiça da Nação (como o STF no Brasil) rejeitou a última irresignação, confirmando a sentença condenatória.

2.2. Situação envolvendo a prisão de Carlos Alejandro Tumbeiro.

No dia 15 de janeiro de 1998, por volta do meio-dia, o Senhor Tumbeiro foi parado por agentes da Polícia Federal da Argentina “com a finalidade de identificação”, enquanto transitava por uma rua na Cidade de Buenos Aires. Os agentes perguntaram-lhe o que fazia no local, tendo respondido que buscava equipamentos eletrônicos de reposição (sua profissão seria eletricista), entregando sua identidade aos policiais para fins de identificação. Antes de ser feita uma revista em suas roupas, teria sido notado um alto nervosismo de Carlos Tumbeiro. Enquanto era esperada uma “comprovação sobre a existência ou não de antecedentes penais”, os agentes policiais notaram que ele transportava, no meio de um jornal, substância branca semelhante ao cloridrato de cocaína, tendo havido a solicitação de presença de testemunhas e realizaram a prisão dele. Segundo a versão policial (§ 47), sua atividade era “suspeita” porque suas roupas eram “inusuais para o local e por se mostrar evasivo ante a presença do policial. Na versão do preso, ele estava de calça e camisa comuns e que os policiais o “colocaram na viatura” e o “encheram de drogas”, nunca tendo “ficha criminal” até então.

Em 26 de agosto de 1998, o “Tribunal Oral nº 1 da Capital” condenou-o a um ano e seis meses de prisão, com “suspensão do cuprimento”, e multa de 150 pesos pelo delito de posse de drogas. A Sala I da Câmara Nacional de Cassação Penal proveu o recurso defensivo, em 15 de março de 1999, assentando que “a interceptação de uma pessoa na via pública para efeitos de identificação e a sua posterior colocação numa viatura policial enquanto aguarda a verificação de antecedentes constitui uma “prisão real”. Além disso reconheceu que “o estado de nervosismo é uma circunstância não segura e, como tal, insuscetível por si só para justificar a referida “interceptação”, bem assim que, no caso concreto, “a detenção para verificação de antecedentes não foi justificada porque não havia circunstâncias fundamentadas que levassem à presunção de que alguém havia cometido um ato criminoso” (§ 49). Em 3 de outubro de 2002, a Corte Suprema Argentina reformou a decisão e determinou que fosse o feito julgado novamente. Referindo-se à jurisprudência norte-americana sobre “causa provável”, “suspeita razoável” e “situações de urgência”, o Tribunal destacou que tais premissas eram aplicáveis ao caso concreto, pois havia uma atitude suspeita atribuída a Tumbeiro, que foi posteriormente corroborada pela descoberta das drogas. Não se reconheceu nenhuma irregularidade na prisão e que a sentença, dentre outras, omitiu-se em valorar o nervosismo conjuntamente com as demais circunstâncias pelas quais foi parado e identificado (§ 51).

A defesa interpôs um recurso de apelação, que foi rechaçado em 24 de outubro de 2002 pela Câmara Nacional de Cassação Penal, restando definitiva a condenação.

3. Considerações gerais da Corte no julgamento dos casos.

Consoante expresso na decisão (§ 62), a Corte IDH observou que o feito se refere a dois casos específicos de restrições de direitos devido a ações policiais: a interceptação e posterior busca do carro em que viajava o Sr. Fernández Prieto pela Polícia da Província de Buenos Aires, e a detenção para fins de identificação e revista corporal do Sr. Tumbeiro pela Polícia Federal Argentina. Esses atos envolveram tanto uma restrição à liberdade de movimento quanto uma busca dos pertences que eles carregavam, seja por meio de uma busca no carro, no caso do Sr. Fernández Prieto, ou uma busca corporal, no caso do Sr. Tumbeiro”. O Tribunal também destacou que “ambas as prisões, realizadas pela polícia — como parte de seus esforços de prevenção ao crime e não como parte de uma investigação criminal — foram transformadas em detenções com base em provas obtidas durante a busca e apreensão, respectivamente. Por essa razão, ambos os casos podem ser analisados com base nos direitos à liberdade pessoal e à proteção da honra e da dignidade, reconhecidos nos artigos 7 e 11 da Convenção”.

Diante dessas premissas, complementou que a Argentina reconheceu sua responsabilidade internacional porque em ambos os casos as atuações da Polícia Provincial de Buenos Aires e da Polícia Federal Argentina não cumpriram com o padrão de legalidade, foram arbitrárias e, além disso, constituíram uma ingerência na vida privada dos senhores Fernández Prieto e Tumbeiro, violando, portanto, os artigos 7.1, 7.2, 7.3 e 11 da Convenção, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento” (§ 63).

A Corte Interamericana também destacou que o art. 7º da CADH protege a liberdade dos indivíduos contra toda interferência arbitrária ou ilegal dos Estados. E há um desdobramento de garantias de não ser privado de liberdade ilegalmente (art. 7.2) ou arbitrariamente (art. 7.3), de conhecer os motivos da detenção e as acusações formuladas contra o detido (art. 7.4), de ter controle judicial sobre a privação de liberdade e a razoabilidade do período de prisão preventiva (art. 7.5), de contestar a legalidade da detenção (art. 7.6) e de não ser detido por dívidas (art. 7.7). A conclusão principiológica e legal foi no sentido de que “qualquer violação dos parágrafos 2 a 7 do artigo 7.º da Convenção implicará necessariamente uma violação do seu artigo 7.º, n.º 1.90”.

Importante ainda destacar que a Corte afirmou (§ 66) que “a restrição do direito à liberdade pessoal só é viável quando ocorre pelos motivos e nas condições previamente estabelecidas pelas Constituições Políticas ou pelas leis emanadas delas (aspecto material), e ainda, em estrita observância dos procedimentos objetivamente definidos nelas (aspecto formal). Isto ocorre porque é a própria Convenção que se refere ao direito interno do Estado em questão, razão pela qual tal referência não significa que a Corte deixe de decidir conforme a Convenção, mas sim que deve fazê-lo de acordo com ela e não conforme o referido direito interno. Em tal eventualidade, o Tribunal não efetua um controle de constitucionalidade ou de legalidade, mas apenas de convencionalidade”.

4. Considerações específicas no julgamento dos casos.

4.1. Prisão do Senhor Fernandéz Prieto.

Conforme a Constituição Argentina, art. 18, “[n]inguém poderá ser obrigado a depor contra si mesmo, nem preso, exceto em virtude de ordem escrita de autoridade competente” (princípio do nemo tenetur se detegere). Por sua vez, o art. 4º do Código de Processo, vigente à época da prisão, dispunha que “[o] Chefe da Polícia da Capital e seus agentes têm o dever de prender as pessoas flagradas em flagrante delito e aquelas contra as quais existam fortes ou semifortes indícios ou provas semiplenas de culpa, devendo colocá-las imediatamente à disposição do juiz competente”. O art. 184.4 da mesma norma estabelecia que “[…] nos crimes públicos, os funcionários terão as seguintes obrigações e poderes: Proceder à prisão do suposto autor nos casos previstos no artigo 4”.

Recordando os fatos acima detalhados, o Tribunal de Direitos Humanos sintetizou que o Código Processual previa três hipóteses para a detenção de uma pessoa sem ordem judicial: a) que fosse surpreendida em flagrante delito; b) se existentes indícios veementes ou semiveementes de culpabilidade; ou c) que existisse algum tipo de prova ou semiplena de responsabilidade. Na sua compreensão, entendeu que, em nenhum momento da prisão ora sob exame, os agentes policiais manifestaram (nem justificaram) que a interceptação do veículo teria base em alguma das três hipóteses previstas pelo art. 4º do Código, ou então em outra eventual norma autorizativa. Constou expressamente que “os agentes de polícia se limitaram a destacar que os sujeitos que estavam no veículo tinham uma atitude suspeita”, e que a presumida “atitude suspeita” não era uma suposição similar à flagrância ou a uma possível “forte indicação ou semiprova de culpa”, como exigido pela lei interna. Portanto, concluiu a Corte IDH, não foram cumpridos os requisitos de legalidade interna. Além disso, observou que os tribunais internos que pronunciaram no caso não abordaram como a interceptação e prisão de Fernández Prieto se enquadrava nas hipóteses previstas no Código de Processo Penal, tendo apenas validando os atos, considerando que os policiais atuaram em cumprimento às tarefas de prevenção do delito com base nas provas obtidas em virtude da atuação (§§ 70 e 71). Em síntese, as decisões foram tomadas com base em considerações relacionadas à eficácia da prevenção do crime e em argumentos de natureza consequencialista (validando as ações pelos resultados obtidos, no caso as provas dos crimes), “sem levar em consideração se a atuação policial se enquadrava nos pressupostos previstos no Código de Processo para efetuar a prisão sem mandado” (§ 74).

Assim, a “interceptação do carro em que viajava o Sr. Fernández Prieto, que levou à sua posterior busca, prisão e processo criminal, constituiu uma violação dos artigos 7.1 e 7.2 da Convenção, em conjunto com o artigo 1.1 do mesmo instrumento. Diante do exposto, a Corte não considera necessário analisar se os atos do Estado constituíram violações dos artigos 7.3 e 7.5 da Convenção” (§ 75).

4.2 Prisão do Senhor Tumbeiro.

O Código de Processo Penal Nacional (em vigor desde outubro de 1992, data posterior ao caso anterior), vigente quando da prisão de Carlos Alejandro Tumbeiro, estabelece em seu art. 284 que “os policiais e auxiliares têm o dever de prender, ainda que sem ordem judicial”, quem “tentar crime de ação pública punível com pena privativa de liberdade, no momento de se preparar para cometê-lo”; b) quem “escapar estando legalmente detido”; c) excepcionalmente, contra quem “tiver fortes indícios de culpa, e houver iminente perigo de fuga ou grave impedimento à instrução, e com o único fim de o apresentar imediatamente à presença do juiz competente para que este decrete a sua prisão”; e d) quem “for apanhado em flagrante delito de crime de ação pública punível com pena privativa de liberdade” (§ 76).

Segundo expresso nos autos, no dia 15 de janeiro de 1998, um dos policiais responsáveis pela prisão sob análise afirmou que observou “um indivíduo do sexo masculino, trajando sapatos pretos, calça jeans azul e camisa xadrez. Ao perceber a presença policial, mostrou-se extremamente nervoso e hesitante ao tentar desviar da viatura”. A viatura policial foi parada e, “para verificar se ele possuía algum impedimento legal, foi convidado a entrar na viatura até que sua identidade pudesse ser determinada por meio de um sistema de rádio digital“. O agente afirmou que, “por continuar extremamente nervoso, foi solicitada a colaboração de testemunhas […] com as quais foram examinados os bens pessoais da referida pessoa”.

A partir desses dados, o Tribunal constatou que a detenção se deu com base em três elementos factuais: “a) mostrou-se nervoso na presença dos polícias; b) não estava vestido da maneira percebida pelos policiais como típica da área por onde passava e c) respondeu que procurava material “totalmente estranho ao que poderia ser obtido nas lojas vizinhas” (§ 76).

Além disso, considerou que, de acordo com a Lei nº 23.950, uma prisão temporária para fins de identificação deve ser devidamente fundamentada em circunstâncias que “levem à presunção de que alguém cometeu ou pode cometer um ato criminoso ou contravenção”. No caso em tela, entendeu “que nenhuma das razões apresentadas pela polícia para realizar a detenção e solicitar sua identificação constituíram, por si só ou em conjunto, fatos ou informações suficientes e concretos que permitiriam a um observador razoável inferir objetivamente que ele provavelmente havia cometido ou estava prestes a cometer um ato ou delito criminoso” (§ 79).

Acentuando que “detenções realizadas por razões discriminatórias são manifestamente irrazoáveis e, portanto, arbitrária” (§ 82), reconheceu que não houve indícios suficientes e razoáveis sobre a participação num fato delitivo a justificar a atuação dos agentes públicos.

Assim, concluindo na mesma linha do caso anterior, reconheceu que a prisão de Carlos Alejandro Tumbeiro constituiu uma violação dos artigos 7.1 e 7.2 da Convenção, em conjunto com o artigo 1.1 do mesmo instrumento. Da mesma forma, o fato de a prisão não ter se baseado em critérios objetivos, mas sim na aplicação, por parte dos policiais, de estereótipos sobre a aparência do Sr. Tumbeiro e sua suposta falta de correlação com o ambiente em que se deslocava, torna a intervenção policial um ato discriminatório e, portanto, arbitrário, que viola os artigos 7.3 e 24 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento” (§ 87).

4.3 Disposições complementares importantes da sentença

O art. 2º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê o dever geral de os Estados adaptarem suas legislações internas às disposições convencionais com a finalidade de garantir e reforçar os direitos nela previstos. Esse dever tem uma dúplice vertente. Por um lado, devem-se eliminar normas e práticas de qualquer natureza que impliquem violações das garantias previstas na Convenção. De outro, a emissão de regulamentações e o desenvolvimento de práticas devem ser aptas a conduzir à observância efetiva das mencionadas garantias. O Tribunal ainda reafirmou que todas as autoridades de um Estado-Parte têm a obrigação de exercer o chamado controle de convencionalidade, de modo que a interpretação e a aplicação do direito nacional sejam consistentes com as obrigações internacionais do Estado em termos de direitos humanos (§ 99).

Noutras palavras, todos os órgãos internos, incluindo os juízes, devem fazer o controle de convencionalidade entre as normas internas e a Convenção Americana, obrigando-os a garantir que os efeitos das disposições da Convenção não sejam diminuídos/restringidos pela aplicação de normas contrárias ao seu objeto e fim. E foi expresso ao assentar que os juízes, no âmbito de suas competências e de acordo com as normas processuais internas, “devem levar em conta não apenas o tratado, mas também a interpretação que dele for feita pelo Tribunal” (§ 100) – res interpretata.

5. As previsões constitucionais e legais que tratam do tema de garantias correlacionadas ao que decidido pela Corte IDH.

Tratando de forma geral, a Constituição Federal brasileira prevê que no art. 5º, LVI, que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Por sua vez, e guardando sintonia com esse dispositivo maior, o Código de Processo Penal dispõe que (art. 157, caput) “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”, que (§ 1º) “são também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras”, bem assim que é considerada fonte independente (§ 2º) aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”.

Especificamente, a Constituição Federal brasileira prevê que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, X) e que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5º, XI).

No que se refere à buscas e apreensões, as regras do Código de Processo Penal estão centralizadas nos seguintes dispositivos, verbis:

“Art. 240.A busca será domiciliar ou pessoal.

§1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:

a) prender criminosos;

b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;

c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos;

d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso;

e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;

f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;

g) apreender pessoas vítimas de crimes;

h) colher qualquer elemento de convicção.

§ 2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.

Art. 241.Quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado.

Art.242.A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes.

Art. 243.O mandado de busca deverá:

I- indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem;

II -mencionar o motivo e os fins da diligência;

III- ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir.

§ 1o Se houver ordem de prisão, constará do próprio texto do mandado de busca.

§ 2o Não será permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito.

Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

Art. 245.As buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta.

§ 1ºSe a própria autoridade der a busca, declarará previamente sua qualidade e o objeto da diligência.

§ 2ºEm caso de desobediência, será arrombada a porta e forçada a entrada.

§3o Recalcitrando o morador, será permitido o emprego de força contra coisas existentes no interior da casa, para o descobrimento do que se procura.

§ 4o Observar-se-á o disposto nos §§ 2o e 3o, quando ausentes os moradores, devendo, neste caso, ser intimado a assistir à diligência qualquer vizinho, se houver e estiver presente.

§ 5o Se é determinada a pessoa ou coisa que se vai procurar, o morador será intimado a mostrá-la.

§ 6o Descoberta a pessoa ou coisa que se procura, será imediatamente apreendida e posta sob custódia da autoridade ou de seus agentes.

§ 7o Finda a diligência, os executores lavrarão auto circunstanciado, assinando-o com duas testemunhas presenciais, sem prejuízo do disposto no § 4o.

Art. 246. Aplicar-se-á também o disposto no artigo anterior, quando se tiver de proceder a busca em compartimento habitado ou em aposento ocupado de habitação coletiva ou em compartimento não aberto ao público, onde alguém exercer profissão ou atividade.

Basicamente são esses os regramentos que tratam de provas e de buscas e apreensões na legislação brasileira que importam ao caso do presente texto. Em nossa compreensão, há previsões que se compatibilizam com os comandos constitucionais e convencionais – e também com a interpretação da Corte IDH – , mesmo que, em determinados momentos, sejam necessárias análises valorativas do que seriam “fundadas razões” (em destaques acima) para a realização das diligências sem prévia ordem judicial.

6. Quatro decisões relevantes do STF.

6.1 O leading case no RE nº 603.6166. O caso apreciado pelo STF tratava de recurso extraordinário contra decisão que mantivera condenação pelo crime de tráfico de drogas, em que se sustentava que eram ilícitas as provas obtidas mediante “invasão” do domicílio do réu por policiais, pois ausente necessário mandado de busca e apreensão.

No referido caso, o STF assim fixou entendimento em sede de repercussão geral (tema 280):

Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral.

2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo.

3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia.

4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria deproteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal.

5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida.

6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.

7. Caso concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao recurso. (Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, por maioria, vencido Min. Marco Aurélio, julgado em 5.11.2015, publicado no DJ em 9.5.2016)

De plano verifica-se a preocupação do STF em observar a proteção dos direitos humanos. No voto-condutor, o Ministro Gilmar Mendes assentou que “a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal afirma sem ressalvas que as autoridades podem ingressar em domicílio, sem a autorização de seu dono, em hipóteses de flagrante delito de crime permanente. Pretendo demonstrar que essa tese esvazia a inviolabilidade domiciliar, contrariando a interpretação sistemática da própria Constituição e tratados de direitos humanos dos quais o país é signatário. Por isso, proporei evolução do entendimento”.

Após analisar várias disposições de direito comparado, bem assim as regras insertas nas Constituições pretéritas, centrou-se na disposição do art. 5º, XI, CF/88, antes mencionada, reconhecendo que “nossa Constituição se alinha aos textos que criam reserva judicial para a expedição de mandado de busca e apreensão e estabelecem exceções, nas quais é tolerado o ingresso sem autorização judicial”. E anotou igualmente que “ao texto constitucional adicionam-se o art. 11, 2, do Pacto de São José da Costa Rica, e o art. 17, 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que protegem o domicílio contra “ingerências abusivas e arbitrárias”.

Fica muito clara a preocupação no sentido de que “a busca e apreensão domiciliar é uma medida invasiva, mas de grande valia para a repressão à prática de crimes e para a investigação criminal. Abusos podem ocorrer, tanto na tomada da decisão de entrada forçada quanto na execução da medida”, destacando que “as comunidades em situação de vulnerabilidade social são especialmente suscetíveis a serem vítimas de ingerências arbitrárias em domicílios”.

Seguindo, destacou que a busca sem mandado não exige certeza do fato, pois “dificilmente a certeza estará ao alcance da polícia”. Desse modo, “por estar a certeza fora do alcance, a legislação costuma exigir modelos probatórios bem mais modestos para medidas de investigação. Para busca e apreensão, por exemplo, o Código de Processo Penal exige apenas “fundadas razões” – art. 240, §1º”.

Compreendendo que a literalidade do texto constitucional do art. 5º, XI, poderia fragilizar o núcleo essencial da garantia, pontuou que seria preciso evoluir de modo a estabelecer uma interpretação que afirmasse “a garantia da inviolabilidade da casa e, por outro lado, proteja os agentes da segurança pública, oferecendo orientação mais segura sobre suas formas de atuação. Essa evolução pode decorrer tanto da interpretação da própria Constituição como de sua integração com os tratados de direitos dos quais o país é signatário.

Veja-se que a Corte IDH nos casos antes mencionados destacou a necessidade de os Estados-Partes observarem não apenas as disposições da CADH, bem assim a interpretação (jurisprudência) do Tribunal a respeito dos seus dispositivos. E isso não escapou à observação do voto-condutor no leading case sob exame, pois assentou (expressa e corretamente) que “os tratados sobre direitos humanos podem ampliar direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, mesmo para afastar ressalvas expressas feitas pelo texto constitucional”, o que já se verificou ao se reconhecer a inconvencionalidade da prisão de depositário infiel (RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, e RE 349.703, Red. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, julgados em 3.12.2008).

Para nós, não há dúvidas de que sempre deve haver a possibilidade de controle judicial da investigação, tudo para compatibilizar os direitos de liberdade e os interesses de segurança pública. Como dito no voto-condutor, “esse controle pode ser a priori– antes da adoção da medida que afeta direitos fundamentais – ou a posteriori – após a adoção da medida. No controle prévio, a adoção da medida deve ser precedida da expedição de uma ordem judicial. O juiz, terceiro imparcial, analisa a presença dos requisitos da medida e, se for o caso, autoriza sua realização. No controle a posteriori¸ a legislação permite aos agentes da administração desde logo atuar, realizando a medida invasiva. Apenas depois de sua concretização, o terceiro imparcial verifica se os agentes da administração agiram de acordo com o direito, analisando se estavam presentes os pressupostos da medida e se sua execução foi conforme o direito. O controle a posteriori pode ser adotado, mesmo em medidas invasivas, se houver razões suficientes para tanto. É o que ocorre no caso da prisão em flagrante – art. 5º, LXI, da CF”.

Nas hipóteses de controle posterior das ações policiais, “o modelo probatório é o mesmo da busca e apreensão domiciliar – fundadas razões, art. 240, §1º, do CPP. Trata-se de exigência modesta, compatível com a fase de obtenção de provas”.

Algo pertinente e complementar foi muito bem destacado pelo julgado do STF: “A solução preconizada não tem a pretensão de resolver todos os problemas. A locução fundadas razõesdemandará esforço de concretização e interpretação. Haverá casos em que o policial julgará que dispõe de indícios suficientes para a medida e o Juízo decidirá em contrário”. Mas uma percuciente observação constou na sequência: “Há também casos que apresentarão complexidades que ultrapassarão os limites do tema aqui apreciado”.

Outro destaque relevante é que não estaria sendo apreciada a “validade do consentimento do morador” (para ingresso). É que “as hipóteses concretas podem revelar desdobramentos complexos, seja quanto à prova do consentimento, seja quanto a sua validade e suficiência. A Suprema Corte dos Estados Unidos vê com desconfiança o consentimento do morador obtido pelo agente estatal “sob autoridade governamental” (under government authority) ou “sob as cores do uniforme” (under color of office) – respectivamente, casos Amos v. United States, 255 U.S. 313 (1921) e caso Johnson v. United States 333 U.S. 10 (1948). Já houve algum debate sobre o assunto no HC 79.512, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 16.12.1999. O tema em julgamento, no entanto, não se presta a resolver a questão”.

O relator propôs que fosse fixada uma interpretação (ao final acolhida) de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados”.

O caso concreto posto a julgamento no STF tratava da prisão em flagrante de determinada pessoa com quem foram encontrados 8,542kg de droga “dentro de um veículo Ford Focus de sua propriedade, estacionado na garagem de sua residência. A busca foi realizada sem mandado judicial. No entanto, havia fundadas razões para suspeitar que o recorrente estava em situação de flagrante delito quanto ao crime de tráfico de drogas”. É que, mantendo a literalidade da fundamentação, o investigado e terceira pessoa eram suspeitos de transportar drogas. Esse terceiro dirigia caminhão de propriedade do réu do caso. A polícia já havia monitorado encontros de ambos. Em determinada data, R (oculta-se o nome desse terceiro) “partiu da casa do recorrente […] dirigindo caminhão que, posteriormente, foi interceptado. Inspecionado o veículo, foram localizados 23,421 Kg (vinte e três quilos, quatrocentos e vinte e um gramas) de cocaína. Após a prisão, R[…] teria confirmado receber a droga de […] . Na sequência, os policiais foram à residência de […] e ingressaram na casa e em seu terreno sem autorização. Ao revistarem o veículo estacionado na garagem, localizaram os 8,542 Kg (oito quilos, quinhentos e quarenta e dois gramas) de cocaína adicionais. O ingresso forçado na casa estava amparado no acompanhamento prévio e nas declarações do flagrado R, elementos suficientes para indicar fundadas razões de que PR estivesse cometendo o crime de tráfico de drogas”.

Em síntese, fixou-se a tese e se reconheceu que a pretensão recursal estaria em desacordo com a interpretação conferida às normas internas e da CADH (explicitação dita por nós, pois a referência é à interpretação como um todo).

Destaca-se que o saudoso Ministro Teori Zavascki fez importante observação ao final, destacando que “o cerne da tese aqui proposta é compatível, não só com a Constituição, como também com os tratados e convenções internacionais a que estamos submetidos”.

6.2 Os embargos de divergência no RE nº 1.472.570.

No ano de 2025, importante decisão foi exarada pelo STF em sede de embargos de divergência. Eis a ementa:

PENAL. PROCESSO PENAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRÁFICO DE DROGAS (ART. 33, CAPUT, DA LEI 11.343/2006). BUSCA PESSOAL. FUNDADA SUSPEITA PARA A ABORDAGEM DEVIDAMENTE COMPROVADA. INGRESSO DOMICILIAR. FUNDADAS RAZÕES PARA O INGRESSO NO IMÓVEL DEVIDAMENTE JUSTIFICADAS A POSTERIORI. OBSERVÂNCIA DAS DIRETRIZES FIXADAS POR ESTA SUPREMA CORTE NO JULGAMENTO DO TEMA 280 DA REPERCUSSÃO GERAL. ACÓRDÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM DESCONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. DIVERGÊNCIA DEMONSTRADA.

1. Embargos de Divergência opostos pelo Ministério Público contra acórdão proferido pela Segunda Turma desta CORTE, apontando como paradigma o RE 1466339 AgR, Rel. Min ALEXANDRE DE MORAES, Dje 08/01/2024, da Primeira Turma, no qual o recurso ministerial foi provido, sendo reconhecida a licitude das provas decorrentes do ingresso domiciliar.

2. Existência de fundadas suspeitas para a busca pessoal e de fundadas razões o ingresso em domicílio, com a consequente validade das provas delas obtidas.

3. Nos termos do art. 330 do RISTF cabem embargos de divergência à decisão de Turma que, em recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, divergir de julgado de outra Turma ou do Plenário na interpretação do direito federal.

4. Demonstrada a existência de divergência jurisprudencial nesta CORTE sobre o tema em análise nos autos através da indicação de paradigma que comprove eventual dissenso interpretativo com o acórdão impugnado, está atendido o pressuposto básico para o conhecimento dos Embargos de Divergência.

5. O alcance interpretativo do inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal foi definido pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, na análise do RE 603.616/RO (Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe de 10/5/2016, Tema 280 de Repercussão Geral), a partir, exatamente, das premissas da excepcionalidade e necessidade de eficácia total da garantia fundamental; tendo sido estabelecida a seguinte TESE: A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.

6. O entendimento adotado pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL impõe que os agentes estatais devem nortear suas ações, em tais casos, motivadamente e com base em elementos probatórios mínimos que indiquem a ocorrência de situação flagrante. A justa causa, portanto, não exige a certeza da ocorrência de delito, mas, sim, fundadas razões a respeito. Precedentes.

7. O recebimento de denúncia anônima pelos guardas municipais, noticiando que o recorrido transportava drogas de uma residência até uma biqueira e trajava camiseta cor de rosa e bermuda branca, bem como conduzia uma motocicleta, placa EOG6491, além da fuga do réu ao avistar a guarnição, momento em que dispensou duas sacolas plásticas na qual carregava dois kits contendo 28 porções da maconha cada, evidenciam a existência de justa causa para a abordagem pessoal.

8. O fato de o réu afirmar que guardava mais entorpecentes em sua casa evidencia a existência de justa causa para o ingresso domiciliar, que resultou na apreensão 290 (duzentos e noventa) porções de maconha, pesando 340,8g, 45 (quarenta e cinco) porções de cocaína, com peso líquido de 15,8g, e 25 (vinte e cinco) pedras de crack, totalizando 7,9g.

9. Em se tratando de delito de tráfico de drogas praticado, em tese, nas modalidades “guardar” ou ter em depósito a consumação se prolonga no tempo e, enquanto configurada essa situação, a flagrância permite a busca domiciliar, independentemente da expedição de mandado judicial, desde que presentes fundadas razões de que em seu interior ocorre a prática de crime, como consignado no indigitado RE 603.616, portador do Tema 280 da sistemática da Repercussão Geral do STF.

10. Embargos de Divergência procedentes. (Embargos De Divergência no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n° 1.472.570, STF, Plenário, por maioria, Rel. Min. Alexandre de Moraes,vencidos Gilmar Mendes e Edson Fachin, julgado em 21.2.2025, publicado no DJ em 13.3.2025)

Da análise do julgado (e não apenas de sua ementa, mas dela já é suficiente para a compreensão do tema, pois bem exaustiva), pode-se concluir que a decisão da Suprema Corte enfrentou um caso em que ocorreu uma abordagem na rua por guardas municipais, com posterior ingresso em domicílio, ambos fatos sem mandados judiciais prévios. Houve uma denúncia anônima “circunstanciada”, noticiando que determinada pessoa transportava drogas de uma residência até uma “biqueira” (local onde são vendidas drogas), trajava camiseta cor-de-rosa e bermuda branca, conduzindo uma motocicleta com placa EOG6491. Ao avistar a guarnição, a pessoa fugiu, dispensou duas sacolas plásticas com 28 porções de maconha cada uma delas. O Plenário do STF entendeu que essas circunstâncias se caracterizariam como fundada suspeita para a abordagem pessoal. Na sequência, o preso teria dito que guardava mais entorpecentes em sua casa, circunstância que, igualmente, autorizaria agora o ingresso em domicílio, também sem mandado judicial (o que foi confirmado pela diligência policial).

O paradigma utilizado para a interposição dos embargos de divergência pelo Ministério Público foi o RE nº 1.466.339-SC, provido monocraticamente e depois confirmado pela 1ª Turma – diante de agravo regimental do réu – para reformar decisão do STJ, a qual, por sua vez, anulara decisão do TJSC, sob a seguinte fundamentação (sintética): “No caso dos autos, o ingresso policial no domicílio, sem mandado judicial, foi motivado durante patrulhamento rotineiro, sem diligências adicionais, quando o paciente tentou fugir para sua casa, após ter visto a guarnição, circunstâncias que não constituem fundadas razões para a violação domiciliar. 3. Nesse contexto, ausentes fundadas razões, afigura-se ilegal a busca domiciliar realizada, sendo, portanto, ilícita a prova”. O STJ compreendeu que a mera fuga para dentro da residência não seria fundada razão para o ingresso em domicílio.

Após reconhecer a pertinência da irresignação com repercussão geral frente ao que decidido no RE nº 603.616 (tema 280), a decisão monocrática no RE nº 1.466.339-SC, reiterando de maneira bastante minuciosa toda a compreensão da Suprema Corte acerca das garantias inerentes à inviolabilidade de domicílio, mencionou expressamente que o STJ no caso concreto ora sob análise, concluiu que, não obstante o suspeito tenha empreendido fuga ao perceber a presença dos policiais que realizavam patrulhamento de rotina, tais fatos não constituiriam fundamentos hábeis a permitir o ingresso em seu domicílio” (fl. 12 do acórdão).

O STF entendeu que “a existência de justa causa para o ingresso no domicílio ocorreu após o recorrido tentar fugir e ingressar em sua residência ao avistar os policiais durante patrulhamento de rotina”. E foi mais expresso ainda a seguir (fl. 17 do acórdão): “Em se tratando de delito de tráfico de drogas praticado, em tese, na modalidade “guardar”, a consumação se prolonga no tempo e, enquanto configurada essa situação, a flagrância permite a busca domiciliar, independentemente da expedição de mandado judicial, desde que presentes fundadas razões de que em seu interior ocorre a prática de crime, como consignado no indigitado RE 603.616, portador do Tema 280 da sistemática da Repercussão Geral do STF. Logo, essas circunstâncias são suficientes para encerrar qualquer discussão acerca de uma suposta inocorrência de situação flagrancial, pois ficou claro que a entrada no domicílio se amparou em fundadas razões devidamente justificadas no curso do processo, a dispensar a expedição de prévio mandado judicial, tendo sido satisfeitas, portanto, todas as exigências do Tema 280 para fins de validade da prova”.

Há entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que eventualmente não concordam com tais premissas, porém essa foi a interpretação conferida pelo STF para validar na circunstância de fuga as fundadas razões a justificar as legalidades da prisão e da apreensão.

Por mais que se possa argumentar ainda que existem “populações” (notadamente as periféricas e inseridas em comunidades) que ostentam “medo da polícia” (e o histórico de violações a direitos fundamentais é indiscutível), cremos que não se pode partir da ordem inversa dos fatores e pressupor que a fuga seja um fato normal. Não é. Logo, a fuga, para o STF, também é uma fundada razão para a abordagem. E anotamos perfunctoriamente já nesse momento que, nos casos julgados pela Corte IDH, antes analisados, nenhum deles tratava de fuga de pessoas, mas de circunstâncias bem diversas.

6.3 A fuga como justa causa para ingresso em domicílio segundo o STF.

Para além do que mencionado no item anterior, impende registrar ainda que, no final do ano de 2024, no julgamento de embargos de divergência e unificando o seu entendimento, o Supremo Tribunal Federal assentou novamente expresso posicionamento no sentido de que a fuga para interior da residência é justa causa para o ingresso em domicílio, validando as provas ali obtidas:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO: INCS. X E XI DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. BUSCA E APREENSÃO DOMICILIAR SEM MANDADO JUDICIAL. CRIME PERMANENTE. POSSIBILIDADE. TEMA 280 DA REPERCUSSÃO GERAL. AFRONTA À INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO NÃO EVIDENCIADA. FLAGRANTE CARACTERIZADO. ACUSADO QUE EMPREENDEU FUGA PARA SE FURTAR À ATUAÇÃO DA AUTORIDADE POLICIAL. DIVERGÊNCIA DEMONSTRADA. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROCEDENTES.

1. Como se evidencia pelos elementos incontroversos dos presentes autos, a conclusão do acórdão objeto dos presentes embargos de divergência diverge da jurisprudência deste Supremo Tribunal, relativa ao Tema 280 da repercussão geral (RE n. 603.616, Relator o Ministro Gilmar Mendes, Plenário, DJe 10.5.2016).

2. Na espécie, os policiais realizaram a abordagem pessoal e a busca domiciliar por terem fundadas razões para suspeitar de situação de flagrante do crime de tráfico de drogas, após o embargado ter empreendido fuga para o interior da residência para se furtar à operação policial. Precedentes deste Supremo Tribunal.

3. Embargos de divergência procedentes. (Embargos de Declaração no Agravo Regimental No Recurso Extraordinário n° 1.491.517 STF, 2ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 11.10.2024, publicado no DJ em 28.11.2024)

6.4 O HC nº 208.240 e a tese do STF sobre requisitos sobre busca pessoal

Por fim, mesmo que não em ordem cronológica com os já analisados, anotamos que, em 11.4.2024, o Plenário do STF julgou o HC nº 208.240 e fixou a seguinte tese: “A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física”. A ementa tem o seguinte teor:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. REVISTA PESSOAL SEM ORDEM JUDICIAL. PERFILAMENTO RACIAL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. JUSTA CAUSA. NECESSIDADE DE ELEMENTOS INDICIÁRIOS OBJETIVOS. PROIBIÇÃO DE ABORDAGEM POLICIAL COM BASE EM ESTEREÓTIPOS DE ORIGEM, RAÇA, SEXO, COR, IDADE OU OUTRAS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO. ORDEM DENEGADA POR MAIORIA. TESE DE JULGAMENTO APROVADA POR UNANIMIDADE.

1. A Constituição Federal protege a intimidade e a privacidade como direitos individuais (art. 5º, X). Também prevê como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade justa, plural e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV).

2. A legislação processual penal reclama para a busca pessoal sem ordem judicial a presença de justa causa fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa a ser abordada esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito (art. 244 do CPP). Precedentes do STF.

3. O Estado brasileiro comprometeu-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica (Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial).

4. O perfilamento racial na atividade policial ocorre quando as forças de segurança utilizam estereótipos baseados em raça, cor, etnia, idioma, descendência, religião, nacionalidade, local de nascimento ou uma combinação desses fatores, em vez de evidências objetivas, para submeter pessoas a revistas ou atos de persecução penal.

5. A busca pessoal baseada em filtragem racial viola a Constituição Federal, a legislação pátria e os compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil.

6. O Tribunal, por unanimidade, aprovou a seguinte tese de julgamento: A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física.

7. No caso concreto, o Tribunal, por maioria, concluiu que a revista pessoal do paciente não ocorreu em razão de perfilamento racial. Ordem de habeas corpus denegada. Vencidos o relator, ministro Edson Fachin, e os ministros Luiz Fux e Roberto Barroso, que concediam a ordem. (HC nº 208.240, STF, Plenário, Rel. Min. Edson Fachin, por maioria, julgado em 11.4.2024, publicado no DJ em 28.6.2024)

Desse julgado, pedimos vênias para reproduzir excerto do voto-condutor, que se reportou ao que sempre defendemos:

Nesse contexto inclui-se, por óbvio, a abordagem policial fundada no critério de cor da pele. Nessa perspectiva, “há de se pontuar a necessidade de se conter atuações seletivas (escolhas arbitrárias de determinadas pessoas) do aparelho estatal, muitas vezes acobertadas por juízos discriminatórios e inconfessáveis. É dizer: deve a autoridade policial se encontrar apta a justificar a sua atuação, no âmbito de sua corporação, e ao nível do estrito cumprimento do dever legal”. (PACELLI, Eugênnio. FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2021, pg. 691). – fl 65 do acórdão.

6.5 Conclusões parciais e sintéticas sobre o entendimento do STF frente ao posicionamento da Corte IDH.

Embora no acórdão paradigmático do STF (RE 603.616) e nos demais analisados não haja uma remissão detalhada ao que decidido pela Corte IDH na Sentença do Caso Fernández Prieto y Tumbeiro vs Argentina, visualizamos que eles estão em conformidade entre si, mesmo que não por fundamentos idênticos.

A Suprema Corte não admite atuações “arbitrárias”, sem mínimos elementos de “suspeita”, para que possa ser considerada legítima a atuação dos agentes estatais na apuração da prática de eventual conduta criminosa. Mas, igualmente, reconhece a viabilidade de atuação do Estado quando diante de circunstâncias típicas e passíveis de apuração por técnicas de investigação, como, por exemplo, fuga, comportamento inusual (nervosismo), desvencilhamento de bens ou blitzes quando não presente elementos de arbitrariedade e/ou movidas por estereótipos de origem, raça, sexo, cor, idade ou outras formas de discriminação.

7. Duas decisões consideradas como paradigmas no STJ.

Primeiro julgado que merece análise em nossa compreensão é uma decisão tomada pela 6ª Turma do STJ no HC nº 598.051-SP, que ficou assim ementado:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INGRESSO NO DOMICÍLIO. EXIGÊNCIA DE JUSTA CAUSA (FUNDADA SUSPEITA). CONSENTIMENTO DO MORADOR. REQUISITOS DE VALIDADE. ÔNUS ESTATAL DE COMPROVAR A VOLUNTARIEDADE DO CONSENTIMENTO. NECESSIDADE DE DOCUMENTAÇÃO E REGISTRO AUDIOVISUAL DA DILIGÊNCIA. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. PROVA NULA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.

1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

1.1 A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo, o qual, sozinho ou na companhia de seu grupo familiar, espera ter o seu espaço íntimo preservado contra devassas indiscriminadas e arbitrárias, perpetradas sem os cuidados e os limites que a excepcionalidade da ressalva a tal franquia constitucional exige.

1.2. O direito à inviolabilidade de domicílio, dada a sua magnitude e seu relevo, é salvaguardado em diversos catálogos constitucionais de direitos e garantias fundamentais. Célebre, a propósito, a exortação de Conde Chatham, ao dizer que: “O homem mais pobre pode em sua cabana desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu telhado pode tremer, o vento pode soprar por ele, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra não pode entrar!” (“The poorest man may in his cottage bid defiance to all the forces of the Crown. It may be frail, its roof may shake, the wind may blow through it, the storm may enter, the rain may enter, but the King of England cannot enter!” William Pitt, Earl of Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical Sketches of Statesmen in the Time of George III First Series (1845) v. 1).

2. O ingresso regular em domicílio alheio, na linha de inúmeros precedentes dos Tribunais Superiores, depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, apenas quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência – cuja urgência em sua cessação demande ação imediata – é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio.

2.1. Somente o flagrante delito que traduza verdadeira urgência legitima o ingresso em domicílio alheio, como se infere da própria Lei de Drogas (L. 11.343/2006, art. 53, II) e da Lei 12.850/2013 (art. 8º), que autorizam o retardamento da atuação policial na investigação dos crimes de tráfico de entorpecentes, a denotar que nem sempre o caráter permanente do crime impõe sua interrupção imediata a fim de proteger bem jurídico e evitar danos; é dizer, mesmo diante de situação de flagrância delitiva, a maior segurança e a melhor instrumentalização da investigação – e, no que interessa a este caso, a proteção do direito à inviolabilidade do domicílio – justificam o retardo da cessação da prática delitiva.

2.2. A autorização judicial para a busca domiciliar, mediante mandado, é o caminho mais acertado a tomar, de sorte a se evitarem situações que possam, a depender das circunstâncias, comprometer a licitude da prova e, por sua vez, ensejar possível responsabilização administrativa, civil e penal do agente da segurança pública autor da ilegalidade, além, é claro, da anulação – amiúde irreversível – de todo o processo, em prejuízo da sociedade.

3. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), a tese de que: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori” (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). Em conclusão a seu voto, o relator salientou que a interpretação jurisprudencial sobre o tema precisa evoluir, de sorte a trazer mais segurança tanto para os indivíduos sujeitos a tal medida invasiva quanto para os policiais, que deixariam de assumir o risco de cometer crime de invasão de domicílio ou de abuso de autoridade, principalmente quando a diligência não tiver alcançado o resultado esperado.

4. As circunstâncias que antecederem a violação do domicílio devem evidenciar, de modo satisfatório e objetivo, as fundadas razões que justifiquem tal diligência e a eventual prisão em flagrante do suspeito, as quais, portanto, não podem derivar de simples desconfiança policial, apoiada, v. g., em mera atitude “suspeita”, ou na fuga do indivíduo em direção a sua casa diante de uma ronda ostensiva, comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não, necessariamente, o de estar o abordado portando ou comercializando substância entorpecente.

5. Se, por um lado, práticas ilícitas graves autorizam eventualmente o sacrifício de direitos fundamentais, por outro, a coletividade, sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais precárias economicamente, excluídas do usufruto pleno de sua cidadania, também precisa sentir-se segura e ver preservados seus mínimos direitos e garantias constitucionais, em especial o de não ter a residência invadida e devassada, a qualquer hora do dia ou da noite, por agentes do Estado, sem as cautelas devidas e sob a única justificativa, não amparada em elementos concretos de convicção, de que o local supostamente seria, por exemplo, um ponto de tráfico de drogas, ou de que o suspeito do tráfico ali se homiziou.

5.1. Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc.

5.2. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos – diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à inviolabilidade domiciliar, a qual protege não apenas o suspeito, mas todos os moradores do local.

5.3. Tal compreensão não se traduz, obviamente, em cercear a necessária ação das forças de segurança pública no combate ao tráfico de entorpecentes, muito menos em transformar o domicílio em salvaguarda de criminosos ou em espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso policial no domicílio alheio a situação de ocorrência de um crime cuja urgência na sua cessação desautorize o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial – meio ordinário e seguro para o afastamento do direito à inviolabilidade da morada – legitimar a entrada em residência ou local de abrigo.

6. Já no que toca ao consentimento do morador para o ingresso em sua residência – uma das hipóteses autorizadas pela Constituição da República para o afastamento da inviolabilidade do domicílio – outros países trilharam caminho judicial mais assertivo, ainda que, como aqui, não haja normatização detalhada nas respectivas Constituições e leis, geralmente limitadas a anunciar o direito à inviolabilidade da intimidade domiciliar e as possíveis autorizações para o ingresso alheio.

6.1. Nos Estados Unidos, por exemplo, a par da necessidade do exame da causa provável para a entrada de policiais em domicílio de suspeitos de crimes, não pode haver dúvidas sobre a voluntariedade da autorização do morador (in dubio libertas). O consentimento “deve ser inequívoco, específico e conscientemente dado, não contaminado por qualquer truculência ou coerção (“consent, to be valid, ‘must be unequivocal, specific and intelligently given, uncontaminated by any duress or coercion‘”). (United States v McCaleb, 552 F2d 717, 721 (6th Cir 1977), citando Simmons v Bomar, 349 F2d 365, 366 (6th Cir 1965). Além disso, ao Estado cabe o ônus de provar que o consentimento foi, de fato, livre e voluntariamente dado, isento de qualquer forma, direta ou indireta, de coação, o que é aferível pelo teste da totalidade das circunstâncias (totality of circumstances).

6.2. No direito espanhol, por sua vez, o Tribunal Supremo destaca, entre outros, os seguintes requisitos para o consentimento do morador: a) deve ser prestado por pessoa capaz, maior de idade e no exercício de seus direitos; b) deve ser consciente e livre; c) deve ser documentado; d) deve ser expresso, não servindo o silêncio como consentimento tácito.

6.3. Outrossim, a documentação comprobatória do assentimento do morador é exigida, na França, de modo expresso e mediante declaração escrita à mão do morador, conforme norma positivada no art. 76 do Código de Processo Penal; nos EUA, também é usual a necessidade de assinatura de um formulário pela pessoa que consentiu com o ingresso em seu domicílio (North Carolina v. Butler (1979) 441 U.S. 369, 373; People v. Ramirez (1997) 59 Cal.App.4th 1548, 1558; U.S. v. Castillo (9a Cir. 1989) 866 F.2d 1071, 1082), declaração que, todavia, será desconsiderada se as circunstâncias indicarem ter sido obtida de forma coercitiva ou houver dúvidas sobre a voluntariedade do consentimento (Haley v. Ohio (1947) 332 U.S. 596, 601; People v. Andersen (1980) 101 Cal.App.3d 563, 579.

6.4. Se para simplesmente algemar uma pessoa, já presa – ostentando, portanto, alguma verossimilhança do fato delituoso que deu origem a sua detenção –, exige-se a indicação, por escrito, da justificativa para o uso de tal medida acautelatória, seria então, no tocante ao ingresso domiciliar, “necessário que nós estabeleçamos, desde logo, como fizemos na Súmula 11, alguma formalidade para que essa razão excepcional seja justificada por escrito, sob pena das sanções cabíveis” (voto do Min. Ricardo Lewandowski, no RE n. 603.616/TO).

6.5. Tal providência, aliás, já é determinada pelo art. 245, § 7º, do Código de Processo Penal – analogicamente aplicável para busca e apreensão também sem mandado judicial – ao dispor que, “[f]inda a diligência, os executores lavrarão auto circunstanciado, assinando-o com duas testemunhas presenciais, sem prejuízo do disposto no § 4º”.

7. São frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais, quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes centros urbanos. É, portanto, ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os apontados responsáveis pelos atos abusivos. E, em um país conhecido por suas práticas autoritárias – não apenas históricas, mas atuais –, a aceitação desse comportamento compromete a necessária aquisição de uma cultura democrática de respeito aos direitos fundamentais de todos, independentemente de posição social, condição financeira, profissão, local da moradia, cor da pele ou raça.

7.1. Ante a ausência de normatização que oriente e regule o ingresso em domicílio alheio, nas hipóteses excepcionais previstas no Texto Maior, há de se aceitar com muita reserva a usual afirmação – como ocorreu no caso ora em julgamento – de que o morador anuiu livremente ao ingresso dos policiais para a busca domiciliar, máxime quando a diligência não é acompanhada de documentação que a imunize contra suspeitas e dúvidas sobre sua legalidade.

7.2. Por isso, avulta de importância que, além da documentação escrita da diligência policial (relatório circunstanciado), seja ela totalmente registrada em vídeo e áudio, de maneira a não deixar dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo e, particularmente, quanto ao livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar. Semelhante providência resultará na diminuição da criminalidade em geral – pela maior eficácia probatória, bem como pela intimidação a abusos, de um lado, e falsas acusações contra policiais, por outro – e permitirá avaliar se houve, efetivamente, justa causa para o ingresso e, quando indicado ter havido consentimento do morador, se foi ele livremente prestado.

8. Ao Poder Judiciário, ante a lacuna da lei para melhor regulamentação do tema, cabe responder, na moldura do Direito, às situações que, trazidas por provocação do interessado, se mostrem violadoras de direitos fundamentais do indivíduo. E, especialmente, ao Superior Tribunal de Justiça compete, na sua função judicante, buscar a melhor interpretação possível da lei federal, de sorte a não apenas responder ao pedido da parte, mas também formar precedentes que orientem o julgamento de casos futuros similares.

8.1. As decisões do Poder Judiciário – mormente dos Tribunais incumbidos de interpretar, em última instância, as leis federais e a Constituição – servem para dar resposta ao pedido no caso concreto e também para “enriquecer o estoque das regras jurídicas” (Melvin Eisenberg. The nature of the common law. Cambridge: Harvard University Press, 1998. p. 4) e assegurar, no plano concreto, a realização dos valores, princípios e objetivos definidos na Constituição de cada país. Para tanto, não podem, em nome da maior eficiência punitiva, tolerar práticas que se divorciam do modelo civilizatório que deve orientar a construção de uma sociedade mais igualitária, fraterna, pluralista e sem preconceitos.

8.2. Como assentado em conhecido debate na Suprema Corte dos EUA sobre a admissibilidade das provas ilícitas (Weeks v. United States, 232 U.S. 383,1914), se os tribunais permitem o uso de provas obtidas em buscas ilegais, tal procedimento representa uma afirmação judicial de manifesta negligência, se não um aberto desafio, às proibições da Constituição, direcionadas à proteção das pessoas contra esse tipo de ação não autorizada (“such proceeding would be to affirm by judicial decision a manifest neglect, if not an open defiance, of the prohibitions of the Constitution, intended for the protection of the people against such unauthorized action”).

8.3. A situação versada neste e em inúmeros outros processos que aportam a esta Corte Superior diz respeito à própria noção de civilidade e ao significado concreto do que se entende por Estado Democrático de Direito, que não pode coonestar, para sua legítima existência, práticas abusivas contra parcelas da população que, por sua topografia e status social e econômico, costumam ficar mais suscetíveis ao braço ostensivo e armado das forças de segurança.

9. Na espécie, não havia elementos objetivos, seguros e racionais que justificassem a invasão de domicílio do suspeito, porquanto a simples avaliação subjetiva dos policiais era insuficiente para conduzir a diligência de ingresso na residência, visto que não foi encontrado nenhum entorpecente na busca pessoa realizada em via pública.

10. A seu turno, as regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes castrenses de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor.

11. Assim, como decorrência da proibição das provas ilícitas por derivação (art. 5º, LVI, da Constituição da República), é nula a prova derivada de conduta ilícita – no caso, a apreensão, após invasão desautorizada da residência do paciente, de 109 g de maconha –, pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de drogas.

12. Habeas Corpus concedido, com a anulação da prova decorrente do ingresso desautorizado no domicílio e consequente absolvição do paciente, dando-se ciência do inteiro teor do acórdão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como às Defensorias Públicas dos Estados e da União, ao Procurador-Geral da República e aos Procuradores-Gerais dos Estados, aos Conselhos Nacionais da Justiça e do Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que deem conhecimento do teor do julgado a todos os órgãos e agentes da segurança pública federal, estadual edistrital.

13. Estabelece-se o prazo de um ano para permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a, sem prejuízo do exame singular de casos futuros, evitar situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal. (Habeas Corpus nº 598.051/SP, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 2.3.2021, publicado no DJ em 15.3.2021)

A abordagem parte da análise do comando constitucional tal como no RE nº 603.616. Foram trazidas várias disposições legais – algumas bem expressas – e interpretações de ordenamentos jurídicos comparados. Mas, a seguir, afirmou-se expressamente que as fundadas razões “não podem derivar de simples desconfiança policial, apoiada, v.g., em mera atitude suspeita, ou na fuga do indivíduo em direção à sua casa diante de uma ronda ostensiva, comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não, necessariamente, o de estar o abordado portando ou comercializando substância entorpecente”.Veja-se que já aqui o STJ acresceu uma interpretação que não está em sintonia com a do STF quanto, pelo menos, ao fato de a fuga caracterizar uma fundada razão para a abordagem.

De fato, e como dito na decisão, são frequentes e notórias notícias de abusos cometidos em operações e diligências policiais, concluindo que seria “ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os apontados pelos atos abusivos”. Aqui começa, em nossa compreensão, e com o devido respeito, o primeiro desvio. Se é verdade que não há valor absoluto, igualmente não concordamos como a premissa – genérica – de que todos os policiais que realizam abordagem e/ou prestam depoimentos são responsáveis por atos abusivos.

No julgado do STJ, novo avanço (para além dos marcos estabelecidos) sobre o que decidido no caso paradigmático do STF. Na decisão, o órgão fracionário do STJ reconheceu que seria importante que, além da documentação escrita da diligência, “seja totalmente registrada em vídeo e áudio, de maneira a não deixar dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo, e, particularmente, quanto ao livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar”.

Embora sejamos totalmente favoráveis à validade da ideia de uso das chamadas “câmaras corporais”1, parece que foi ultrapassado o limite objetivo com a finalidade de, por vias transversas, corrigir uma ausência de normatização, pois, ao final, a decisão, indo além das balizas do leading case do Plenário do STF, fixou o prazo de um ano “para permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a, sem prejuízo do exame singular de casos futuros, evitar situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal”.

De tão evidente a violação dos limites de sua competência pelo STJ, o STF, provendo parcialmente recurso extraordinário interposto pelo MPSP, anulou o julgado nessa parte, pois é incabível ao Poder Judiciário, em sede de habeas corpus individual “determinar ao Poder Executivo o aparelhamento de suas polícias, assim como o treinamento de seu efetivo e a imposição de providências administrativas como medida obrigatória para os casos de busca domiciliar, sob o argumento de serem necessárias para evitar eventuais abusos, além de suspeitas e dúvidas sobre a legalidade da diligência, em que pese inexistir tais requisitos no inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal, nem tampouco no Tema 280 de Repercussão Geral julgado por essa Suprema Corte”. (RE n. 1.342.077-SP, STF, Relator Ministro Alexandre de Moraes, decisão de 2.12.2021). Decisão similar foi tomada também pelo STF 25.10.2024, igualmente contra decisão do STJ:

[…] 4. É incabível ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a imposição de providências administrativas como medida obrigatória para os casos de busca pessoal, sob o argumento de serem necessárias para evitar eventuais abusos, além de suspeitas e dúvidas sobre a legalidade da diligência.

5. O entendimento adotado pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL impõe que os agentes estatais devem nortear suas ações, em tais casos, motivadamente e com base em elementos probatórios mínimos que indiquem a ocorrência de situação flagrante. A justa causa, portanto, não exige a certeza da ocorrência de delito, mas, sim, fundadas razões a respeito. Precedentes.

6. O A atitude suspeita do acusado, que tentou fugir ao perceber a presença dos policiais que realizavam patrulhamento de rotina em conhecido ponto de tráfico de drogas, evidencia a existência de justa causa para a revista pessoal, que resultou na apreensão de 143 (cento e quarenta e três) pedras de crack, pesando aproximadamente 15 (quinze) gramas, e 1 (uma) porção de maconha, pesando aproximadamente 0,8 gramas.

7. Agravo Regimental e Recurso Extraordinário com Agravo providos. (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n° 1.502.461, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgado em 25.10.2024, publicado no DJ em 18.11.2024)

Posteriormente, no julgamento do HC nº 158.580-BA, houve a fixação de uma “nova tese”, malgrado incursão em vários elementos de discussão probatória (mas isso não abordaremos aqui)2. O caso tratava de busca pessoal ou veicular, não especificamente de busca em domicílio (adiante abordado). A ementa é a seguinte, reportando-se também ao caso anterior:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA. ALEGAÇÃO VAGA DE “ATITUDE SUSPEITA”. INSUFICIÊNCIA. ILICITUDE DA PROVA OBTIDA. TRANCAMENTO DO PROCESSO. RECURSO PROVIDO.

1. Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.

2. Entretanto, a normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo) que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.

3. Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de “fundada suspeita” exigido pelo art. 244 do CPP.

4. O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos – independentemente da quantidade – após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento “fundada suspeita de posse de corpo de delito” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.

5. A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

6. Há três razões principais para que se exijam elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal – vulgarmente conhecida como “dura”, “geral”, “revista”, “enquadro” ou “baculejo” –, além da intuição baseada no tirocínio policial:

a) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (art. 5º, caput, e X, da Constituição Federal), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora – mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre –, também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes;

b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;

c) evitar a repetição – ainda que nem sempre consciente – de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural.

7. Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos –– diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade.

8. “Os enquadros se dirigem desproporcionalmente aos rapazes negros moradores de favelas dos bairros pobres das periferias. Dados similares quanto à sobrerrepresentação desse perfil entre os suspeitos da polícia são apontados por diversas pesquisas desde os anos 1960 até hoje e em diferentes países do mundo. Trata-se de um padrão consideravelmente antigo e que ainda hoje se mantém, de modo que, ao menos entre os estudiosos da polícia, não existe mais dúvida de que o racismo é reproduzido e reforçado através da maior vigilância policial a que é submetida a população negra”. Mais do que isso, “os policiais tendem a enquadrar mais pessoas jovens, do sexo masculino e de cor negra não apenas como um fruto da dinâmica da criminalidade, como resposta a ações criminosas, mas como um enviesamento no exercício do seu poder contra esse grupo social, independentemente do seu efetivo engajamento com condutas ilegais, por um direcionamento prévio do controle social na sua direção” (DA MATA, Jéssica, A Política do Enquadro, São Paulo: RT, 2021, p. 150 e 156).

9. A pretexto de transmitir uma sensação de segurança à população, as agências policiais – em verdadeiros “tribunais de rua” – cotidianamente constrangem os famigerados “elementos suspeitos” com base em preconceitos estruturais, restringem indevidamente seus direitos fundamentais, deixam-lhes graves traumas e, com isso, ainda prejudicam a imagem da própria instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela.

10. Daí a importância, como se tem insistido desde o julgamento do HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 15/3/2021), do uso de câmeras pelos agentes de segurança, a fim de que se possa aprimorar o controle sobre a atividade policial, tanto para coibir práticas ilegais, quanto para preservar os bons policiais de injustas e levianas acusações de abuso. Sobre a gravação audiovisual, aliás, é pertinente destacar o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF n. 635 (“ADPF das Favelas”, finalizado em 3/2/2022), oportunidade na qual o Pretório Excelso – em sua composição plena e em consonância com o decidido por este Superior Tribunal no HC n. 598.051/SP – reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros pontos, que “o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos”.

11. Mesmo que se considere que todos os flagrantes decorrem de busca pessoal – o que por certo não é verdade –, as estatísticas oficiais das Secretarias de Segurança Pública apontam que o índice de eficiência no encontro de objetos ilícitos em abordagens policiais é de apenas 1%; isto é, de cada 100 pessoas revistadas pelas polícias brasileiras, apenas uma é autuada por alguma ilegalidade. É oportuno lembrar, nesse sentido, que, em Nova Iorque, o percentual de “eficiência” das stop and frisks era de 12%, isto é, 12 vezes a porcentagem de acerto da polícia brasileira, e, mesmo assim, foi considerado baixo e inconstitucional em 2013, no julgamento da class action Floyd, et al. v. City of New York, et al. pela juíza federal Shira Scheindlin.

12. Conquanto as instituições policiais hajam figurado no centro das críticas, não são as únicas a merecê-las. É preciso que todos os integrantes do sistema de justiça criminal façam uma reflexão conjunta sobre o papel que ocupam na manutenção da seletividade racial. Por se tratar da “porta de entrada” no sistema, o padrão discriminatório salta aos olhos, à primeira vista, nas abordagens policiais, efetuadas principalmente pela Polícia Militar. No entanto, práticas como a evidenciada no processo objeto deste recurso só se perpetuam porque, a pretexto de combater a criminalidade, encontram respaldo e chancela, tanto de delegados de polícia, quanto de representantes do Ministério Público – a quem compete, por excelência, o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da Constituição Federal) e o papel de custos iuris –, como também, em especial, de segmentos do Poder Judiciário, ao validarem medidas ilegais e abusivas perpetradas pelas agências de segurança.

13. Nessa direção, o Manual do Conselho Nacional de Justiça para Tomada de Decisão na Audiência de Custódia orienta a que: “Reconhecendo o perfilamento racial nas abordagens policiais e, consequentemente, nos flagrantes lavrados pela polícia, cabe então ao Poder Judiciário assumir um papel ativo para interromper e reverter esse quadro, diferenciando-se dos atores que o antecedem no fluxo do sistema de justiça criminal”.

14. Em paráfrase ao mote dos movimentos antirracistas, é preciso que sejamos mais efetivos ante as práticas autoritárias e violentas do Estado brasileiro, pois enquanto não houver um alinhamento pleno, por parte de todos nós, entre o discurso humanizante e ações verdadeiramente transformadoras de certas práticas institucionais e individuais, continuaremos a assistir, apenas com lamentos, a morte do presente e do futuro, de nosso país e de sua população mais invisível e vulnerável. E não realizaremos o programa anunciado logo no preâmbulo de nossa Constituição, de construção de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

15. Na espécie, a guarnição policial “deparou com um indivíduo desconhecido em atitude suspeita” e, ao abordá-lo e revistar sua mochila, encontrou porções de maconha e cocaína em seu interior, do que resultou a prisão em flagrante do recorrente. Não foi apresentada nenhuma justificativa concreta para a revista no recorrente além da vaga menção a uma suposta “atitude suspeita”, algo insuficiente para tal medida invasiva, conforme a jurisprudência deste Superior Tribunal, do Supremo Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

16. Recurso provido para determinar o trancamento do processo. (RHC nº 158.580-BA, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 19.4.2022, publicado no DJ em 25.4.2022)

Tratando-se no writ de discussões acerca da validade de buscas e apreensões pessoais e veiculares, assentou-se que, para além da fundada suspeita (“justa causa”), o art. 244 do CPP exigiria mais, que ela esteja relacionada “à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. O argumento central é que não s pode conferir um salvo conduto para “abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions)3, baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo) que constitua corpo de delito de uma infração penal”.

Concluiu-se que o “art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas comorotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata”.

De forma bem expressa, o STJ afastou a possibilidade de buscas com base em tirocínio/experiências policiais. Mas, antes de prosseguir, anotamos que, no julgado anterior, do mesmo órgão, por paradoxal que possa parecer, foram trazidos como fundamentos de anulação das provas regras de experiência e o senso comum: “A seu turno, as regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes castrenses de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor”.

Salvo melhor juízo, parece exsurgir que regras de experiência somente contariam favoravelmente para as conclusões em prol do raciocínio pela invalidade das provas.

Mas prosseguiu o STJ: “se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituem corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista, justifique a medida”, de modo que “a violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência”.

Em síntese, porque a abordagem foi de uma pessoa “em atitude suspeita”, o ato de produção das provas foi inconstitucional e inconvencional. De fato, correta a decisão quanto à conclusão, pois, da análise detalhada dos fatos concretos, vê-se que não havia nenhum elemento que justificasse a abordagem senão a mera “atitude suspeita” do averiguado, havendo aqui, ao que entendemos, identidade com o Caso Tumbeiro vs Argentina. Não pelos fundamentos, de certa forma já “ampliados”, mas diante do fato concreto comparado com os utilizados como base para o controle convencional.

8. Desdobramentos no âmbito do STJ.

A partir desses julgados acima, inúmeros outros foram proferidos pelo STJ, mesmo que originariamente proferidos por órgão fracionário, a 6ª Turma. A remissão é reiterada, bastando pesquisa no sítio próprio para tal conclusão.

Há dois grandes problemas em nossa compreensão que precisam ser abordados nesse momento.

Sem adentrar no mérito do tópico a seguir, fato é que o STJ estabeleceu suas premissas quanto à referibilidade de standard de provas (expressão muito relevante e corrente quando se fala numa concepção racionalista da prova), sem qualquer modulação, conferindo-se efeitos retroativos a todos os demais casos que, até então, eram considerados a partir de outros standards.

Em nossa compreensão, na linha do que faz o STF normalmente para situações dessa natureza, em que há mudança drástica na jurisprudência, há modulações para que sejam adotados esses novos padrões interpretativos aos casos futuros (tal como no caso de lei nova, mediante a aplicação do tempus regit actum pelo prisma processual). É o que se vê, exemplificativamente, no HC nº 127.900-AM. Nessa situação, corretamente e na linha do que já sustentávamos em doutrina com Eugênio Pacelli, o Supremo Tribunal assentou que interrogatório deveria ser sempre o último ato do processo, independentemente de regramentos especiais, porém assentou expressamente que incidiria somente nas ações penais cuja instrução não tivesse sido encerrada até 11.3.2016, data do julgamento (v.g. . Agravo Regimental no HC nº 246.359, 1ª Turma, publicado no DJ em 14.11.2024). Na mesma linha, vê-se o entendimento também do STJ (v.g. Recurso Especial nº 2.091.667-MG, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Daniela Teixeira, julgado em 21.5.2024, publicado no DJ em 28.5.2024).

Mas no caso desse tema em discussão, não houve qualquer modulação, aplicando-se efeitos retroativos, que, por sua vez, ensejou muitos outros julgamentos pelo STJ. O que se pode verificar em inúmeras decisões posteriores a esses paradigmas é que foram sendo agregadas outras condições para a validade da busca sem mandado, mesmo que contrariamente ao que decidido pelo STF.

Vejamos.

No Recurso Especial nº 2.818.156-RS (Rel. Min. Rogério Schietti, decisão unânime, julgado em 11.3.2025, publicado no DJ em 27.3.2025), o STJ assentou que, “na espécie, o que motivou a busca pessoal foi o fato de o acusado estar em via pública em local conhecido por ser ponto de tráfico de drogas e ter mudado bruscamente de direção ao avistar os policiais, circunstância que, no entanto, não configura, por si só, fundada suspeita de posse de corpo de delito apta a validar a revista, conforme entendimento consolidado nesta Corte Superior4. Do voto-condutor, extrai-se conclusão expressa no sentido de ser de relevo destaque que ”a descrição fática do caso ora em exameé muito similar à situação que foi submetida ao julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso Fernández Prieto & Tumbeiro v. Argentina (2020) […]Deveras, enquanto a revista ao automóvel do senhor Fernandez Prieto foi considerada nula porque baseada apenas na mera descrição genérica de que os policiais avistaram um veículo à noite em uma região erma com “três sujeitos no seu interior em atitude suspeita”, a abordagem ao senhor Tumbeiro, também reputada incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos pela Corte, fora assim justificada: “ao observar a presença da polícia, mostrou-se extremamente nervoso e hesitante, ao mesmo tempo que tentava evitar passar pelo caminho da viatura policial”.

Dizemos nós: as situações podem ter nuances de similitude, mas possuem dois detalhes que os distinguem a não justificar, em nossa compreensão, a ampliação do paradigma invocado: além de o Sr. Tumbeiro não estar num local conhecido como ponto de tráfico de drogas, também não mudou bruscamente de direção ao avistar os policiais, apenas apresentou certa hesitação em cruzar com os policiais e um “posterior nervosismo”.

Veja-se ainda que, em 2024, mas em sentido diametralmente oposto, o mesmo órgão fracionário do STJ já assentara serem válidas as provas em caso que houve “a mudança repentina de direção do acusado ao avistar os policiais militares, sendo revistado após desdobramento da ação policial em via pública(Habeas Corpus nº 884.466-SP, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 7.5.2024, publicado no DJ em 15.5.2024)..

Em 18.4.2024, julgado da 3ª Seção, de certo modo agora se amoldando ao que já consignado pelo STF quando ocorrente a fuga de alguém. Eis |excertos da ementa, bastante elucidativos ao que interessa:

[…]6. O cerne da controvérsia em debate é saber se a conduta de fugir correndo repentinamente ao avistar uma guarnição policial preenche ou não o requisito de fundada suspeita de corpo de delito para uma busca pessoal em via pública, nos termos do art. 244 do CPP.

[…] 11. É possível cogitar quatro motivos principais para que alguém empreenda fuga ao avistar uma guarnição policial: a) estar praticando crime naquele exato momento (flagrante delito); b) estar na posse de objeto que constitua corpo de delito (o que nem sempre representa uma situação flagrancial); c) estar em situação de descumprimento de alguma medida judicial (por exemplo, medida cautelar de recolhimento noturno, prisão domiciliar, mandado de prisão em aberto etc.) ou cometendo irregularidade administrativa (v. g. dirigir sem habilitação); d) ter medo de sofrer pessoalmente algum abuso por parte da polícia ou receio de ficar próximo a eventual tiroteio e ser atingido por bala perdida, sobretudo nas comunidades periféricas habitadas por grupos vulneráveis e marginalizados, em que a violência policial e as intensas trocas de tiros entre policiais e criminosos são dados presentes da realidade.

12. Com base nessas premissas, diante da considerável variabilidade de possíveis explicações para essa atitude, entende-se que fugir correndo repentinamente ao avistar uma guarnição policial não configura, por si só, flagrante delito, nem algo próximo disso para justificar que se excepcione a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Trata-se, todavia, de conduta intensa e marcante que consiste em fato objetivo – não meramente subjetivo ou intuitivo –, visível, controlável pelo Judiciário e que, embora possa ter outras explicações, no mínimo gera suspeita razoável, amparada em juízo de probabilidade, sobre a posse de objeto que constitua corpo de delito (conceito mais amplo do que situação de flagrante delito).[…]

16. Assim, à luz de todas essas ponderações, conclui-se que fugir correndo repentinamente ao avistar uma guarnição policial configura motivo idôneo para autorizar uma busca pessoal em via pública, mas a prova desse motivo, cujo ônus é do Estado, por ser usualmente amparada apenas na palavra dos policiais, deve ser submetida a especial escrutínio, o que implica rechaçar narrativas inverossímeis, incoerentes ou infirmadas por outros elementos dos autos.

17. O exame destes autos indica que o réu, ao avistar uma viatura policial que fazia patrulhamento de rotina na região dos fatos, correu, em fuga, para um terreno baldio, o que motivou a revista pessoal, na qual foram encontradas drogas. Diante das premissas estabelecidas neste voto e da ausência de elementos suficientes para infirmar ou desacreditar a versão policial, mostra-se configurada a fundada suspeita de posse de corpo de delito a autorizar a busca pessoal, nos termos do art. 244 do CPP.

18. Ordem denegada.(Habeas Corpus nº 877.943-MS, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 18.4.2024, publicado no DJ em 15.5.2024)

Mesmo após decisão do STF (e bastante similar aqui sim ao caso abaixo) e de unificado o entendimento no âmbito do STJ perante a 3ª Seção, resta complexo e difícil compreender as razões pelas quais, em julgado de 19.2.2025, a 6ª Turma do STJ novamente decidiu – em sentido contrário – que “a fuga do indivíduo ao avistar guarnição policial não constitui fundada razão para a busca domiciliar, mesmo que em direção à própria residência. […] 3. No caso concreto, o ingresso domiciliar, sem mandado judicial, deu-se em virtude de motivos não admitidos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça como autorizadores da diligência, quais sejam, fuga do paciente para o interior da residência ao avistar a viatura policial, portando mochila nas costas, em comunidade conhecida pela traficância” (Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 871.930-RJ, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo, publicado no DJ em 21.2.2025; idêntica conclusão já se tomara no Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 913.941-DF, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo, julgado em 11.12.2024, publicado no DJ em 16.12.2024).

Há outro caso em que não estava presente apenas a fuga, mas um elemento complementar. Está no julgado que a busca pessoal foi amparada no fato de o acusado, ante a aproximação dos guardas civis municipais, ter corrido e tentado se desvencilhar de algo e, apenas quando detido, encontrou-se, em sua posse, uma pequena porção de entorpecentes e R$ 288,00 (duzentos e oitenta e oito reais), ato contínuo, os guardas foram levados até algumas casas abandonadas, onde foram localizados mais entorpecentes. 5. A descoberta posterior não retifica ou justifica as diligências anteriores, incidindo nulidade que macula, igualmente, as provas delas decorrentes. Não restando prova da materialidade do delito de tráfico de drogas com a exclusão das evidências assim obtidas, é de rigor a absolvição” (Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 876.279-SP, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo, julgado em 12.12.2024, publicado no DJ em 13.12.2024). A dissonância com o entendimento do próprio STJ (3ª Seção) e do STF é patente.

Noutro feito não houve fuga, mas o agente tentou se esconder da polícia e demonstrou muito nervosismo. Mesmo assim o STJ anulou as provas, como se vê:

[…] 3. De acordo com o que consta dos autos, a abordagem feita pelos policiais somente ocorreu em razão de atitude suspeita do paciente que demonstrou nervosismo exacerbado ao ver a guarnição policial e tentou se esconder dentro do carro se agachando e a suspeita foi confirmada, uma vez que foram encontradas uma arma com dez cartuchos intactos e uma barra de maconha.

4. Nesse contexto, a partir da leitura dos autos, verifica-se que foi constatada a existência de indícios prévios da prática da traficância, a autorizar a atuação policial, não havendo falar em nulidade das buscas pessoal, veicular e domiciliar.

5. Agravo regimental desprovido. (Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 943.704-MG, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 12.02.2025, publicado no DJ em 14.02.2025)

A respeito de fundadas razões – e não envolvendo fuga – , traz-se à colação discussão acerca de outra decisão, agora no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n° 2.783.836-SP (STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, julgado em 04.02.2025, publicado no DJ em 13.02.2025). Consta da ementa que a abordagem policial foi feita sem a apresentação de fundadas razões, havendo “depoimentos conflitantes da acusação e da defesa”. Esse foi o motivo para se reconhecer a carência de comprovação da devida autorização para o ingresso em domicílio. Ocorre que, ao se analisar o voto-condutor, ele traz dados essenciais para certificar que os policiais verificaram, pela janela da casa, a existência de droga no seu interior sobre uma cama (o que foi totalmente desconsiderado). Está no voto: “verifico a presença de manifesta ilegalidade, porquanto se tem que não foi demonstrada a necessária justa causa, notadamente levando em consideração os depoimentos conflitantes dos policiais e da testemunha Sérgio Luiz, bem como a não comprovação pelos policiais militares da autorização da referida testemunha para o ingresso no domicílio”. Além de se ter feito um verdadeiro reexame de provas, com violação da Súmula 7, STJ (e não revaloração jurídica da prova), pois elas foram analisadas e tidas como conflitantes, o que chama a atenção no mesmo voto (pela remissão à decisão do tribunal inferior) é que seria “irrelevante o fato de a Polícia Militar não ter localizado a gravação das imagens, contendo a autorização de Sérgio para o ingresso ao imóvel, uma vez que, como já dito, os policiais militares, pela janela, viram que havia considerável quantidade de drogas em cima da cama e, dessa forma, no local estava ocorrendo crime de natureza permanente. Ou seja, tornou-se despicienda a autorização de Sérgio para o ingresso ao imóvel do apelado, independentemente de este ter ou não legitimidade para tanto”.

Atente-se que os policiais relataram que viram as drogas dentro da casa pela janela. Mesmo assim as provas foram consideradas ilícitas, pois os depoimentos entre as testemunhas de acusação e defesa eram “conflitantes”. Noutras palavras, uma dúvida em reexame de provas indevido, mesmo diante do fato não negado pela defesa de que os policiais viram a droga no interior da casa, foi motivo para a absolvição. E nem se diga, eventualmente, que o caso era de revaloração jurídica (tecnicamente, não é revaloração jurídica, mas exame comparativo de provas). Além disso encontra-se decisão publicada um dia antes desse caso ora sob análise rechaçando tal hipótese de reanálise probatória em sede de recurso especial: Afastar os fundamentos utilizados pelo Tribunal de Justiça, para decidir pela ilegalidade da prova, como requer a defesa, importa revolvimento de matéria fático-probatória, vedado em recurso especial, segundo óbice da Súmula 7/STJ” (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n° 2.766.678 – DF, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares Da Fonseca, julgado em 10.2.2025, publicado no DJ em 12.2.2025).

Veja-se esse julgado a seguir em que a polícia teve notícia de um arrombamento de uma casa (fato que foi confirmado). Está na decisão que “no caso em tela, os agentes policiais alegaram ter recebido denúncia acerca de arrombamento de uma casa, o que motivou o ingresso dada a visualização de que a casa estava vazia e com uma janela quebrada, ocasião em que encontraram diversos itens oriundos de contrabando e descaminho”. O STJ entendeu que não se poderia falar no caso em “encontro fortuito de provas na presente hipótese, porquanto bem delineado no acórdão hostilizado que os itens visualizados de plano não denotariam prática de ilícitos, tratando-se de “receptadores de sinal de antena de TV, pen drives, cartões de memória, videogames”, e há expressa menção a uma busca sob a cama do casal, bem como boletos dentro de uma estante na sala, demonstrando ter sido realizada verdadeira varredura no local, fugindo ao escopo da atuação policial que seria de averiguar possível arrombamento e invasão à residência”. Além disso, “os cigarros oriundos de contrabando foram localizados sob uma lona em um corredor, mais um indício da realização de verdadeira busca domiciliar sem mandado judicial ou flagrante delito evidente, em claro desvio de finalidade” (Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus n° 119.140-MG, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, julgado em 27.11.2024, publicado no DJ em 13.12.2024).

Se o mote acima foi a invalidade da “visualização” da droga do exterior da casa para dentro dela por uma janela”, difícil compreender a dissonância de raciocínio desse caso acima com o abaixo (embora não tratando de drogas), da mesma relatoria e com não aproximadamente um mês entre elas (sem qualquer distinguish aparente), em que a visualização foi tida com válida: “No caso, não há violação ao art. 157 do CPP, porquanto os policiais possuíam informações prévias de que o local funcionaria como ponto de tráfico de drogas e, ao se dirigirem para lá, puderam visualizar, ainda da via pública, ligação elétrica indicativa do delito de furto de energia no imóvel em questão. Tais circunstâncias consubstanciam fundadas razões para a entrada no domicílio. Ademais, após adentrarem o imóvel, visualizaram arma de fogo em seu interior, o que motivou as demais buscas realizadas. Encontram-se hígidas, em vista disso, as provas produzidas”. Nesse feito, reconheceu-se a “existência de situação emergencial que inviabilizaria o prévio requerimento de mandado judicial, evidenciando-se a existência de razões suficientes para mitigar a garantia constitucional da inviolabilidade de domicílio, estando atendidas a contento as premissas jurisprudenciais estabelecidas pelos tribunais superiores quanto à questão da entrada forçada de agentes de segurança em domicílio, afastando-se a ilicitude de prova apontada pela defesa. (Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 814.501-SC, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, julgado em 16.10.2024, publicado no DJ em 23.10.2024).

Inclusive a 5ª Turma do STJ considerou válida a entrada forçada em domicílio num local em que, após uma denúncia anônima por redes sociais, puderam visualizar por intermédio de residência de um vizinho do local que vários cães estavam em situação de maus tratos, negando a pretensão de anulação das provas (Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus n° 185.273-PR , STJ, 5º Turma, Rel. Messod Azulay Neto, julgado em 22.10.2024, publicado no DJ em 30.10.2024).

Totalmente também dissonante do “Caso Tumbeiro’, outra decisão do final de 2024 do STJ em que se anularam as provas, com absolvição do réu, diante das seguintes circunstâncias:

[…]5. No caso, a abordagem do paciente ocorreu em razão de ser conhecido dos meios policiais pela prática do crime de tráfico de drogas, estava em local conhecido como ponto de venda de entorpecentes, e teria apresentado atitude suspeita, ao manter as mãos fechadas como quem tenta esconder algo ilegal, tendo sido apreendido 51,22g de cocaína.

6. Inexistem fundadas razões para a busca efetuada, haja vista que a medida invasiva ocorreu apenas em razão de impressões subjetivas dos agentes policiais, sem a indicação de dado concreto sobre a existência de justa causa para autorizar a medida invasiva, o que configura a ilicitude da prova, e as dela decorrentes, nos termos do art. 157, caput, e § 1º, do CPP.

7. A ilicitude da busca pessoal e das provas dela derivadas implica a nulidade das provas que sustentam a acusação, devendo o paciente ser absolvido por falta de justa causa para a condenação. Habeas corpus concedido (Habeas Corpus n° 801.048-SP, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Daniela Teixeira, julgado em 7.11.2024, publicado no DJ em 11.11.2024)

No “Caso Tumbeiro”, o abordado não era conhecido dos órgãos policiais por práticas anteriores de drogas, bem assim não estava em local sabido e demonstrado que era destinado para a prática dos crimes.

Tanto há dissonância com o caso da Corte IDH, bem assim da própria compreensão do STF acerca do tema, que, em 4.5.2025, foi provido Recurso Extraordinário 1.547.657 (Rel. Min. Cármen Lúcia) contra o acórdão acima descrito para restabelecer a sentença condenatória, afastando-se a anulação das provas. Na decisão, colhe-se expressamente que “as informações do processo revelam haver elementos fáticos a justificar a atuação policial, ressaltando-se que a abordagem foi realizada pois o recorrido “é conhecido nos meios policiais pela prática de tráfico de drogas, estava em um local conhecido como ponto de venda de entorpecentes, e apresentou atitude suspeita, mantendo as mãos fechadas como quem tenta esconder algo ilegal”.

Importante se ver, ainda, que sobejam decisões que se revelam conflitantes tanto com os paradigmas do STF, como dentro do próprio STJ, como se vê, novamente de forma exemplificativa, e encerrando o presente tópico:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. BUSCA VEICULAR. ABORDAGEM DE VEÍCULO POR ATITUDE SUSPEITA DO MOTORISTA. NERVOSISMO. TRATAMENTO JURÍDICO SEMELHANTE AO DA BUSCA PESSOAL. EXIGÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA NÃO SATISFEITA. PRECEDENTES. NULIDADE. PROVAS ILÍCITAS DA BUSCA VEICULAR E POSTERIOR BUSCA DOMICILIAR. APREENSÃO DE 4.770 G DE MACONHA E 160 G DE COCAÍNA. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE.

1. Agravo regimental improvido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n° 2.285.907-GO, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 2.4.2025, publicado no DJ em 4.4.2025)

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. PROVA NULA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

2. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). No mesmo sentido, neste STJ: REsp n. 1.574.681/RS.

3. No caso concreto, depois de busca pessoal na qual foi encontrada certa quantidade de drogas com o acusado, os policiais se dirigiram até a residência dele para procurar por mais entorpecentes.

4. Entretanto, a mera apreensão de drogas com o réu em via pública não autoriza, por si só, a realização de busca no interior da residência dele, porque não permite presumir a existência de mais objetos ilícitos dentro do lar, salvo quando há algum indicativo concreto de que a casa está sendo usada de base para a prática do tráfico em via pública naquele momento. Não é, porém, a hipótese dos autos, em que nada de concreto que demonstrasse o uso da residência foi constatado previamente pelos policiais.

5. Como decorrência da proibição das provas ilícitas por derivação (art. 5º, LVI, da Constituição da República), é nula a prova derivada de conduta ilícita, pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão das referidas substâncias.

6. Agravo regimental não provido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n° 2.322.594-SP, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 2.4.2025, publicado no DJ em 4.4.2025)

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL. LEGALIDADE. FUGA REPENTINA AO AVISTAR GUARNIÇÃO POLICIAL. FUNDADA SUSPEITA DE POSSE DE CORPO DE DELITO. CADEIA DE CUSTÓDIA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. MINORANTE DO ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006. AFASTAMENTO. ATOS INFRACIONAIS. POSSIBILIDADE. DEDICAÇÃO A ATIVIDADES CRIMINOSAS. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. Segundo o disposto no art. 244 do Código de Processo Penal, “A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”.

2. A Terceira Seção desta Corte Superior de Justiça, por ocasião do julgamento do HC n. 877.943/MS (Rel. Ministro Rogerio Schietti), decidiu que a conduta de fugir correndo repentinamente ao avistar uma guarnição policial preenche o requisito de fundada suspeita de corpo de delito para a realização de uma busca pessoal em via pública, nos termos do art. 244 do CPP.

3. No caso concreto, os autos evidenciam que a revista pessoal foi precedida de fundada suspeita da posse de corpo de delito, uma vez que o réu empreendeu fuga repentinamente da polícia, com uma sacola plástica, oportunidade em que foram encontradas drogas em sua posse.

4. Quanto à quebra da cadeia de custódia, constou do acórdão recorrido que “não há qualquer irregularidade na abordagem policial ou na custódia das substâncias entorpecentes apreendidas, que foram devidamente discriminadas no auto de exibição e apreensão (fls. 09) e no laudo de exame químico toxicológico (fls. 45/47)”. Assim, o Tribunal de origem enfrentou a tese do recorrente, ainda que sucintamente. Ademais, o reconhecimento da quebra da cadeia de custódia dependeria do revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, o que é inviável na via recursal eleita (Súmula n. 7 do STJ).[…]

8. Agravo regimental não provido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n° 2.198.300-SP, STJ,6ª Turma,Rel.Min.Rogerio Schietti Cruz, julgado em 2.4.2025, publicado no DJ em 4.4.2025)

9. Uma parcial “correção de rumo” quando se trata de abordagens de rotina em estradas e vias públicas.

Não foram poucos os casos em que, seguindo a linha dos parâmetros (alongados) fixados nos julgados mencionados, o Superior Tribunal de Justiça anulou as provas decorrentes de apreensões e prisões realizadas em fiscalizações de rotina e aleatórias pelas polícias administrativas, com a Polícia Rodoviária Federal. Entretanto, não sem danos de anulações de provas de forma indevida em muitos feitos, o entendimento foi revisto para se fixar a seguinte compreensão, mencionando-se duas decisões (embora ambos tratassem de abordagens feitas em ônibus):

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. PRELIMINAR DE NULIDADE. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 240, § 2.º, E 244, AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DROGAS ENCONTRADAS NAS BAGAGENS DE PASSAGEIROS DO ÔNIBUS VISTORIADAS PELA POLÍCIA RODOVIÁRIA, EM FISCALIZAÇÃO DE ROTINA. INSPEÇÃO DE SEGURANÇA QUE NÃO SE CONFUNDE COM BUSCA PESSOAL (NATUREZA PROCESSUAL PENAL). LEGÍTIMO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA. LICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. DOSIMETRIA. CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA. QUANTIDADE E NATUREZA DAS DROGAS APREENDIDAS. CIRCUNSTÂNCIAS QUE, POR SI SÓS, NÃO PERMITEM AFERIR A DEDICAÇÃO DO ACUSADO À ATIVIDADE CRIMINOSA. REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA. CABÍVEL O SEMIABERTO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR SANÇÕES RESTRITIVAS DE DIREITOS. INVIABILIDADE. PRECEDENTES. ORDEM DE HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONCEDIDA.

1. A partir do julgamento do RHC n.º 158580/BA, da relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, a Sexta Turma aprofundou a compreensão acerca do instituto da busca pessoal, analisando de forma exaustiva os requisitos do art. 244 do Código de Processo Penal. A análise do caso concreto revela a necessidade de se atentar para a distinção existente entre a busca pessoal prevista na lei processual penal e outros procedimentos que não possuem a mesma natureza, os quais, a rigor, não exigem a presença de “fundada suspeita”.

2. A denominada “busca pessoal por razões de segurança” ou “inspeção de segurança”, ocorre rotineiramente em aeroportos, rodoviárias, prédios públicos, eventos festivos, ou seja, locais em que há grande circulação de pessoas e, em consequência, necessidade de zelar pela integridade física dos usuários, bem como pela segurança dos serviços e instalações.

3. Embora a inspeção de segurança também envolva restrição a direito fundamental e possa ser alvo de controle judicial a posteriori, a fim de averiguar a proporcionalidade da medida e a sua realização sem exposição vexatória, o principal ponto de distinção em relação à busca de natureza penal é a faculdade que o indivíduo tem de se sujeitar a ela ou não. Em outras palavras, há um aspecto de contratualidade, pois a recusa a se submeter à inspeção apenas irá obstar o acesso ao serviço ou transporte coletivo, funcionando como uma medida de segurança dissuasória da prática de ilícitos. Doutrina. 4. A título exemplificativo, destaco que a inspeção de segurança em aeroportos decorre de cumprimento de diretriz internacional, prevista no Anexo 17 da Convenção da Organização Internacional de Aviação Civil (OACI), da qual o Brasil é signatário. O Decreto n.º 11.195/22 regulamenta a questão e prevê expressamente que a inspeção de passageiros e bagagens é de responsabilidade do operador de aeródromo, sob supervisão da Polícia Federal (art. 81). Ou seja, delegase essa possibilidade ao agente privado, sendo a atuação policial também prevista, de forma subsidiária e complementar.

5. Nesse contexto, se a busca ou inspeção de segurança– em espaços e transporte coletivos – pode ser realizada por agentes privados incumbidos da segurança, com mais razão pode – e deve – ser realizada por agentes públicos que estejam atuando no mesmo contexto, sem prejuízo do controle judicial a posteriori acerca da proporcionalidade da medida, em ambos os casos.

6. O contexto que legitima a inspeção de segurança em espaços e meios de transporte de uso coletivo é absolutamente distinto daquele que ampara a realização da busca pessoal para fins penais, na qual há que se observar a necessária referibilidade da medida (fundada suspeita de posse de objetos ilícitos), conforme já muito bem tratado no referido RHC n.º 158.580/BA, da relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz.

7. No caso concreto, policiais rodoviários federais, em fiscalização na Rodovia Castelo Branco, abordaram ônibus que fazia o trajeto de Dourados-MS para São Paulo-SP. A inspeção teve início a partir dos passageiros que se situavam no final do veículo, momento em que selecionaram para inspeção aleatória de bagagem a Paciente e o adolescente que viajava ao seu lado.

8. Os agentes públicos acrescentaram que a seleção se deu a partir de análise comportamental (nervosimo visível e troca de olhares entre um adolescente viajando sozinho e outra passageira que afirmou não conhecer). Afirmaram ainda que informaram à Paciente quanto ao direito de permanecer em silêncio e, em seguida, iniciaram a vistoria das bagagens, localizando cerca de 30kg de maconha, divididos em tabletes, tanto nos pertences da Paciente, como nos do adolescente que viajava ao seu lado, embalados da mesma forma.

9. Assim, forçoso concluir que a inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros do ônibus, em fiscalização de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal, teve natureza administrativa, ou seja, não se deu como busca pessoal de natureza processual penal e, portanto, prescindiria de fundada suspeita. Dito de outro modo, se a bagagem dos passageiros poderia ser submetida à inspeção aleatória na rodoviária ou em um aeroporto, passando por um raio-X ou inspeção manual detalhada, sem qualquer prévia indicação de suspeita, por exemplo, não há razão para questionar a legalidade da vistoria feita pelos policiais rodoviários federais, que atuaram no contexto fático de típica inspeção de segurança em transporte coletivo.

10. Ainda que assim não se entenda, penso que a busca do caso concreto também seria capaz de preencher os requisitos do art. 244 do Código de Processo Penal. Com efeito, penso que se pode ter por fundada a suspeita que decorre da troca de olhares nervosos entre um adolescente viajando sozinho e uma outra passageira que afirmou desconhecer, sobretudo quando se considera que o ônibus partiu de localidade conhecida como um dos mais relevantes pontos de entrada e distribuição de drogas no país (NUNES, MARIA. Dinâmicas Transfronteiriças e o avanço da violência na fronteira sul-mato-grossense. […] 14. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida para, reformando o acórdão impugnado e a sentença condenatória, reduzir as sanções da Paciente para 02 (dois) anos, 05 (cinco) meses e 19 (dezenove) dias de reclusão, a ser cumprida em regime inicial semiaberto, e 247 (duzentos e quarenta e sete) dias-multa, no mínimo legal. (Habeas Corpus nº 625.274-SP, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 17.10.2023)

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. BUSCA EM ÔNIBUS DE PASSAGEIROS. REGIÃO DE FRONTEIRA INTERNACIONAL. FISCALIZAÇÃO DE ROTINA. LEGÍTIMO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA. LICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. Ao aperfeiçoar seu entendimento jurisprudencial, este Superior Tribunal, no julgamento do HC n. 625.274/SP (relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 17/10/2023, DJe de 20/10/2023), firmou a orientação de que prescinde de fundada suspeita a atividade de fiscalização decorrente do regular exercício do poder de polícia do Estado, como as operações padronizadas de monitoramento da circulação de pessoas e de veículos que ocorrem em portos, aeroportos (exemplo: raio-X em bagagens) e rodovias (ilustrativamente: fiscalizações de caminhões de carga, de ônibus e de demais veículos que transportam passageiros) que não impedem o encontro fortuito de provas de eventual infração penal. Precedentes.

2. No caso, os smartphones encontrados nas bagagens da passageira do ônibus vistoriado, de origem estrangeira e desacompanhados de documentos de regular introdução no país, ocorreu em fiscalização de rotina, que dispensa fundada suspeita ou prévio indício do cometimento de crime e decorre do legítimo exercício do poder de polícia, diante da necessidade de monitoramento de transportes que circulam em região de fronteira internacional. Ademais, primeiro foi encontrada a mercadoria irregular e depois se identificou a quem ela pertencia, circunstância que reforça a ausência de subjetivismo e de desproporcionalidade na conduta do agente público. Assim, fica afastada a tese de ilicitude das provas obtidas.

3. Agravo regimental não provido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n° 2.624.125-PR, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 24.9.2024, publicado no DJ em 27.9.2024)

Em nossa compreensão, evidente que a validade das provas nesses casos não deve ser restringir a fiscalizações em ônibus, pois, do contrário, estaríamos retirando a possibilidade do exercício do poder de polícia em estradas e locais públicos inerentes à atividade fiscalizatória. Portanto, há se distinguir fiscalizações de rotina, absolutamente aleatórias e válidas, de eventuais ações que caracterizem procedimentos discriminatórios (antes abordados). Tanto que o próprio STJ reconheceu que :

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. CRIMES DE CORRUPÇÃO ATIVA E CONTRABANDO. NULIDADE DA BUSCA PESSOAL E VEICULAR. INOCORRÊNCIA. FUNDADA SUSPEITA PARA A ABORDAGEM DEVIDAMENTE COMPROVADA. ART. 244 DO CPP. PROCEDIMENTO DE ROTINA. CIGARROS DE ORIGEM ESTRANGEIRA ESCONDIDOS SOB UM LENÇOL NO INTERIOR DO VEÍCULO. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. Como é de conhecimento, a busca pessoal é regida pelo art. 244 do Código de Processo Penal. Exige-se a presença de fundada suspeita de que a pessoa abordada esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papeis que constituam corpo de delito, ou, ainda, quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

2. Somado a isso, Ressalvadas as hipóteses em que o automóvel é utilizado para fins de habitação, equipara-se a busca veicular à busca pessoal, sem exigência de mandado judicial, sendo suficiente a presença de fundada suspeita de crime (AgRg no RHC n. 180.748/SP, Relator Ministro RIBEIRO DANTAS, Quinta Turma, julgado em 14/8/2023, DJe de 16/8/2023).

3. No caso, conforme destacado pelas instâncias ordinárias, o paciente foi abordado durante operação de rotina de fiscalização de trânsito promovida por policiais militares, com o intuito de averiguar a ocorrência de infrações administrativas de trânsito e crimes que supostamente ocorriam em rodovia no Estado de Minas Gerais. Com efeito, durante a apresentação de documentos pelo paciente, os agentes estatais visualizaram suposta carga encoberta por lençóis no banco traseiro do automóvel. Ao perguntar o que se tratava, o paciente teria dito que eram roupas, contudo foram encontrados cigarros de origem paraguaia, da marca “Madison Classic”. No total, foram encontrados dentro do veículo 5.000 (cinco mil) maços de cigarros. Nesse panorama, apesar de estar com os documentos em ordem, o nervosismo do acusado (ciente de que se tratava de uma operação de fiscalização rotineira de trânsito) e o lençol ocultando os cigarros no banco traseiro fortaleceram a suspeita de que estaria na posse de elementos de corpo de delito.

4. Assim, inexiste ilegalidade na abordagem realizada pela polícia, pois a busca pessoal e veicular foi exercida dentre dos limites da atuação policial ostensiva e preventiva.

5. Nessa linha de intelecção, A Constituição que assegura o direito à intimidade, à ampla defesa, ao contraditório e à inviolabilidade do domicílio é a mesma que determina punição a criminosos e o dever do Estado de zelar pela segurança pública. O policiamento preventivo e ostensivo, próprio das Polícias Militares, a fim de salvaguardar a segurança pública, é dever constitucional (RHC 229514 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02-10- 2023, PROCESSO ELETRÔNICO, DJe-s/n DIVULG 20-10-2023, PUBLIC 23-10-2023).

6. Agravo regimental a que se nega provimento.(Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 898.279-MG, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, sessão virtual de 23.4.2024 a 29.4.2024, publicado no DJ em 2.5.2024)

DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. BUSCA PESSOAL E VEICULAR. FUNDADA SUSPEITA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. Agravo regimental interposto contra a decisão monocrática que não conheceu do recurso especial, mantendo o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que não identificou nulidade em abordagem policial que resultou na apreensão de mercadorias estrangeiras desacompanhadas de documentação fiscal.

2. A discussão consiste em saber se a abordagem policial foi realizada com base em fundada suspeita, justificando a busca pessoal e veicular.

3. A busca pessoal e veicular realizada pelos policiais encontra respaldo nos arts. 240, § 2º, e 244 do Código de Processo Penal. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça estabelece que a busca pessoal e veicular deve ser precedida de fundada suspeita, baseada em um juízo de probabilidade descrito com precisão e justificado pelos indícios e circunstâncias do caso concreto.

4. Na hipótese, a abordagem foi considerada legal, pois não decorreu de mera intuição dos policiais, mas de uma fiscalização de rotina em rodovia federal, na qual o condutor do veículo parou e abriu o porta-malas espontaneamente, permitindo a visualização das mercadorias fruto de descaminho.

5. O acolhimento da tese defensiva exigiria amplo revolvimento probatório, o que não se coaduna com o escopo do recurso especial, nos termos da Súmula n. 7/STJ.

6. Agravo regimental não provido. (Agravo Regimental no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 2.802.640-RS, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Otávio De Almeida Toledo, julgado em 25.4.2025, publicado no DJ em 28.4.2025)

10. Reformas de decisões do STJ pelo STF pelo descumprimento dos parâmetros fixados em sede de repercussão geral.

Embora já noticiados alguns casos anteriormente, são muitos julgados atuais do Supremo Tribunal Federal em que são reformadas decisões do STJ exatamente por se reconhecer que a Corte Superior ampliou e extrapolou os requisitos fixados no RE nº 603.616, o que implica também desconformidade com o entendimento da Corte IDH, mesmo que, eventualmente, por fundamentos pouco diversos. Vejamos mais alguns casos, também meramente exemplificativos, a partir de suas ementas, que igualmente refletem os temas que estavam sendo debatidos:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PACIENTE PRESO EM FLAGRANTE POR SUPOSTA PRÁTICA DO CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS (ART. 33 DA LEI N. 11.343/2006). PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA O ATO. ATUAÇÃO POLICIAL EM SINTONIA COM A TESE FIXADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO RE 603.616/RO JULGADO SOB A SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL (TEMA 280). NULIDADE DA CONFISSÃO INFORMAL. TESE NÃO SUSCITADA NAS INSTÂNCIAS ANTECEDENTES. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO PREVISTA NO ART. 40, III, DA LEI N. 11.343/2006. INCIDÊNCIA NO CASO. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

1. É de considerar-se legítima a atuação dos policiais militares que executaram a prisão em flagrante do acusado, uma vez que os referidos agentes públicos, durante uma ronda de rotina, perceberam quando o paciente, sem nenhum motivo que justificasse o seu comportamento evasivo, apressou-se para ingressar em um automóvel que estava estacionado. Nesse momento, os policiais decidiram abordar o suspeito e realizar as buscas pessoal e veicular, logrando encontrar, no veículo, 140 papelotes de cocaína, com peso de 122,66 gramas; e 520 porções de crack, com peso de 127,93 gramas. Em seguida, depois de o paciente confessar que havia retirado as drogas em uma residência próxima, os policiais dirigiram-se até o local indicado, onde puderam avistar, por uma janela, a existência de diversos entorpecentes dentro do imóvel. Nessa oportunidade, entraram no local e flagraram o corréu na posse e guarda de 2 tijolos de crack, com peso de 2.044,76 gramas; 2 tijolos de crack, com peso de 2.044,2 gramas; 2 pedras de crack, com peso de 2.034,85 gramas; 2 tijolos de crack, com peso de 2.136,5 gramas; 2 tijolos de crack, com peso de 2.065,8 gramas; 65 pedras de crack, com peso de 1.799,31 gramas; 1.825 pedras de crack, com peso de 448,87 gramas; 15 porções de maconha, com peso de 1.509,18 gramas; 1 porção de cocaína, com peso de 964,03 gramas; 3 porções de crack, com peso de 1.990,68 gramas; 1 porção de crack, com peso de 710,76 gramas; 2 porções de cocaína, com peso de 1.986,54 gramas; 1 porção de cocaína, com peso de 1.009,14 gramas; 1 porção de cocaína, com peso de 1.519,23 gramas; e 2 porções de cocaína, com peso de 1.920,53 gramas.

2. Essas circunstâncias constituem elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para legitimar a prisão em flagrante.

3. Considerando que o art. 240 do Código de Processo Penal abarca tanto a busca domiciliar quanto a busca pessoal, nele elencando as hipóteses de sua incidência, é possível aplicar-se, no caso, o mesmo entendimento sedimentado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE 603.616/RO, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, julgado sob a sistemática da Repercussão Geral (Tema 280).

[…] 6. Agravo regimental improvido. (Agravo Regimental em Habeas Corpus nº 244.768, STF, 1ª Turma, Rel. Min.Cristiano Zanin, julgado em 30.8.2024, publicado no DJ em 4.9.2024)

[…] PACIENTE CONDENADO PELO CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. BUSCA VEICULAR REALIZADA PELA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL (PRF). PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA O ATO. […]

I – É de considerar-se legítima a atuação dos policiais rodoviários que executaram a prisão em flagrante do acusado, especialmente porque os referidos agentes públicos agiram depois de perceberem que ele apresentava nervosismo incomum diante da abordagem de rotina realizada por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

II – Essa circunstância é elemento mínimo a caracterizar fundadas razões (justa causa) para os policiais fazerem uma revista mais minuciosa e aparelhada no caminhão, momento em que lograram encontrar quase 360kg de cocaína. De resto, a vistoria realizada pelos agentes decorre da própria função de patrulhamento e policiamento ostensivo atribuídos à PRF, não havendo falar-se, portanto, em conduta desprovida de previsão legal e em desacordo com a Constituição de 1988.

III – Considerando que o art. 240, do Código de Processo Penal, abarca tanto a busca domiciliar quanto a busca pessoal, nele elencando as hipóteses de sua incidência, é possível aplicar-se, na espécie, o mesmo entendimento sedimentado pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal no RE 603.616/RO, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, julgado sob a sistemática da Repercussão Geral (Tema 280). Precedentes. […] (Habeas Corpus nº 231.111, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Cristiano Zanin, sessão virtual de 29.9.2023 a 6.10.2023, publicado no DJ em 13.10.2023)

[…] INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO. FUNDADAS RAZÕES PARA O INGRESSO NO IMÓVEL DEVIDAMENTE COMPROVADAS A POSTERIORI. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DIVERGÊNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STF. JUSTA CAUSA CONFIGURADA. INTERPRETAÇÃO DO TEMA Nº 280 DA REPERCUSSÃO GERAL. PROVIMENTO DO AGRAVO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGRAVO INTERNO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

1. O entendimento adotado no acórdão impugnado não está alinhado à orientação do Plenário desta Suprema Corte, firmada no julgamento do RE 603.616-RG (Tema nº 280 da repercussão geral), na qual fixada a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

2. Na hipótese, a atuação policial foi lícita, pois iniciou-se com a abordagem de um sujeito que estava em atitude suspeita, tendo sido encontrados um revólver 38, entorpecentes (crack e cocaína), dinheiro e aparelho celular. Ainda, a entrada na residência pelos agentes policiais se deu mediante justa causa, com amparo em elementos que indicavam a suspeita de situação autorizadora do ingresso no domicílio sem mandado judicial, razão pela qual se verifica divergência entre o acórdão recorrido e a tese firmada no referido Tema 280. Durante a busca, foram apreendidos entorpecentes, material para embalagem, dinheiro em espécie, valorada em R$ 10.000,00 e uma arma de fogo de uso restrito, em condições de uso e funcionamento.

3. Nessas circunstâncias, esta Suprema Corte tem entendido que estão presentes fundadas razões que indicam situação de flagrante delito a autorizar a atuação dos agentes públicos. Precedentes.

4. Agravo interno conhecido e não provido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.537.663, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Flávio Dino, julgamento encerrado em 24.4.2025)

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO. FUNDADAS RAZÕES PARA O INGRESSO NO IMÓVEL DEVIDAMENTE COMPROVADAS A POSTERIORI. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DIVERGÊNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STF. JUSTA CAUSA CONFIGURADA. INTERPRETAÇÃO DO TEMA Nº 280 DA REPERCUSSÃO GERAL. PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGRAVO INTERNO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

1. O entendimento adotado no acórdão impugnado não está alinhado à orientação do Plenário desta Suprema Corte, firmada no julgamento do RE 603.616-RG (Tema nº 280 da repercussão geral), na qual fixada a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

2. Na hipótese, a entrada na residência pelos agentes policiais se deu mediante justa causa, com amparo em elementos que indicavam a suspeita de situação autorizadora do ingresso no domicílio sem mandado judicial. Apreensão na via pública e no domicílio de cocaína e maconha, com fundados indícios de tráfico.

3. Nessas circunstâncias, esta Suprema Corte tem entendido que estão presentes fundadas razões que indicam situação de flagrante delito a autorizar a atuação dos agentes públicos. Precedentes.

4. Agravo interno conhecido e não provido. (Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n° 1.533.298, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Flávio Dino, julgado em 04.04.2025, publicado no DJ em 19.04.2025)

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO. FUNDADAS RAZÕES PARA O INGRESSO NO IMÓVEL DEVIDAMENTE COMPROVADAS A POSTERIORI. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DIVERGÊNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STF. JUSTA CAUSA CONFIGURADA. INTERPRETAÇÃO DO TEMA Nº 280 DA REPERCUSSÃO GERAL. PROVIMENTO DO AGRAVO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGRAVO INTERNO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

1. O entendimento adotado no acórdão impugnado não está alinhado à orientação do Plenário desta Suprema Corte, firmada no julgamento do RE 603.616-RG (Tema nº 280 da repercussão geral), na qual fixada a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

2. Na hipótese, a atuação policial foi lícita, pois iniciou-se com uma denúncia específica sobre tráfico de drogas, recebida via Disque-Denúncia, que levou os policiais ao local, onde visualizaram os acusados separando drogas em flagrante delito. A tentativa de destruir as provas e a fuga de um dos acusados justificaram a entrada na residência e a realização da busca domiciliar, sem a necessidade de mandado judicial, em razão da flagrância e da urgência na preservação das evidências. Durante a busca, foram apreendidas dentro da residência 22 (vinte e duas) porções de maconha, com massa bruta total de aproximadamente 9,72 kg (nove quilogramas e setenta e duas gramas), além de outras 13 (treze) porções de cocaína, com massa bruta de aproximadamente 130,46 g (cento e trinta gramas e quarenta e seis miligramas), razão pela qual se verifica divergência entre o acórdão recorrido e a tese firmada no referido Tema 280.

3. Nessas circunstâncias, esta Suprema Corte tem entendido que estão presentes fundadas razões que indicam situação de flagrante delito a autorizar a atuação dos agentes públicos. Precedentes.

4. Agravo interno conhecido e não provido. (Agravo Regimental em Recurso Extraordinário com Agravo n° 1.533.744, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Flávio Dino, julgado em 11.4.2025, publicado no DJ em 24.4.2025)

[…] PROCESSUAL PENAL. PACIENTE CONDENADA PELOS CRIMES DE TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS E DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO (ARTS. 33 E 35 DA LEI N. 11.343/2006). PRESENÇA DE FUNDADAS RAZÕES (JUSTA CAUSA) PARA O ATO. ATUAÇÃO POLICIAL EM SINTONIA COM A TESE FIXADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO — RE 603.616/RO JULGADO SOB A SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL (TEMA 280). […]

I. Caso em exame

1. Paciente condenada à pena total de 8 anos de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática dos crimes de tráfico ilícito de drogas e de associação para o tráfico, previstos nos arts. 33 e 35 da Lei n. 11.343/2006.

[…] 7. Considerando que o art. 240 do Código de Processo Penal abarca tanto a busca domiciliar quanto a busca pessoal, nele elencando as hipóteses de sua incidência, é possível aplicar, no caso, o mesmo entendimento sedimentado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE 603.616/RO, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, julgado sob a sistemática da Repercussão Geral (Tema 280).

8. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que: “[s]e um agente do Estado não puder realizar abordagem em via pública a partir de comportamentos suspeitos do alvo, tais como fuga, gesticulações e demais reações típicas, já conhecidas pela ciência aplicada à atividade policial, haverá sério comprometimento do exercício da segurança pública(RHC 229.514 AgR/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 23/10/2023). […] (Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 253.262, 1ª Turma, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgamento encerrado em 11.4.2025)

Registra-se que, nesse último caso, não houve reforma de decisão do STJ, denegando-se a pretensão de reforma do julgado, pois se reconheceu estar em sintonia com os parâmetros fixados pelo STF.

10. Conclusões.

A longa análise de julgados, com inúmeras citações, fez-se necessária em nossa compreensão para demonstrar a ausência de sintonia dos julgados do STJ com o entendimento do STF – e também da Corte IDH – a respeito da validade das provas em face da interpretação conferida especialmente ao disposto no art. 244 do CPP, bem assim aos parâmetros da interpretação da Corte IDH para situações de abordagens meramente exploratórias.

Em julgados pelo STJ, encontramos nítida ampliação (sem competência constitucional para tanto) dos requisitos reconhecidos como necessários para a validez das provas, bem assim, noutros, uma total ausência de aderência ao que decidido pela Corte IDH no julgamento do “Caso Fernández Prieto y Tumbeiro”.

Reiteramos o reconhecimento de que existem excessos em abordagens realizadas e é preciso haver o devido ajuste. Entretanto, e seguindo o que assentado pela Corte Suprema brasileira (sem qualquer dissenso com os parâmetros convencionais reconhecidos na jurisprudência), não pode haver um sério comprometimento do exercício da segurança se um agente do Estado não puder realizar abordagem em via pública a partir de comportamentos suspeitos do alvo, tais como fuga, gesticulações e demais reações típicas, já conhecidas pela ciência aplicada à atividade policial”.


Se devidamente demonstradas e/ou coerentes com os casos postos a julgamento, desconsiderar esses elementos, notadamente impedir as técnicas policiais típicas e estudadas pelas polícias na averiguação de fatos sob fundada suspeita (ou então em decorrência de fiscalizações de rotina e aleatórias (sem cunho discriminatório ou que caracterize fishing expedition) poderá ensejar exatamente a presença dos elementos que implicaram quase duas dezenas de condenações do Brasil na Corte IDH, que é a adoção de todas as formas e técnicas de apuração probatória (lícitas, por óbvio) para a responsabilização eventual dos agentes criminosos (Remetemos às anotações feitas em nossa obra em coautoria com Frederico Valdez Pereira “As obrigações processuais penais positivas segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos”. 5ª ed, revista, ampliada e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2025).

O grande problema não é a vedação de provas ilícitas, o que parece ser indiscutível, mas a interpretação ampliativa e desprotetiva do conceito do que sejam provas obtidas por meios ilícitos, quando, em verdade, elas estão de acordo com o entendimento do guardião maior da Constituição e conforme o controle de convencionalidade, especialmente na sentença originariamente analisada.

São as nossas considerações, salvo melhor juízo.

1 E as gravações das câmeras corporais teriam absoluta validade como provas não apenas da higidez da abordagem, mas também como provas dos crimes. Fizemos esse registro diante de entendimentos – minoritários, é verdade, e para nós sem sentido lógico-jurídico algum – no sentido de que as provas seriam aproveitáveis unicamente como demonstração de que não teria havido abuso nas abordagens, mas não como elemento de convicção judicial (provas em si) da prática criminosa.

2 Veja-se que todo habeas corpus tem – ou deveria ter – uma cognição limitada para análise de provas, mesmo que se argumente em valoração jurídica das provas

3 A pesca probatória “somente se caracteriza quando se pretende investigar genericamente algumas pessoas e não fatos, de maneira especulativa, ou seja, obter qualquer dado aleatório, independentemente da investigação instaurada ou infração penal existente” (Reconsideração de Despacho na Petição nº 12.100, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Alexandre de Moraes, publicado no DJ em 11.4.2025).

4 Mesmo raciocínio e fundamentos, reproduzidos textualmente, foram assentados ulteriormente noutro processo: “Na espécie, o que motivou a busca pessoal foi o fato de o acusado estar em via pública em local conhecido por ser ponto de tráfico de drogas e ter mudado de direção ao avistar os policiais, circunstância que, no entanto, não configura, por si só, fundada suspeita de posse de corpo de delito apta a validar a revista, conforme entendimento consolidado nesta Corte Superior”. […] (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n° 2.862.494-RS, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 11.04.2025, publicado no DJ em 15.04.2025)

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