ADPF 779: legítima defesa da honra e a vedação de teses inconstitucionais no Tribunal do Júri.

ADPF 779: legítima defesa da honra e a vedação de teses inconstitucionais no Tribunal do Júri.

Por Carlos Gustavo Coelho de Andrade

Recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de medida cautelar relativa à ADPF 779, firmou entendimento pela inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra[1], por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, obstando às partes e o juízo de utilizarem, direta ou indiretamente, qualquer argumento que induza à referida tese, nas fases pré-processual ou processual penais e inclusive na sessão plenária do Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento,  referendando à unanimidade, em 12 de março de 2021,  liminar antes concedida pelo Min. Dias Toffoli.

A decisão do Min. Dias Toffoli[2] consignava que a tese da legítima defesa da honra consistia em recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel usado pelas defesas para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes, contribuindo para a naturalização da cultura da violência contra as mulheres no país, estando em desacordo com os arts. 1º, III, art. 3º, I, IV, art. 5º, caput e I da CF, e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.  Haveria, pois, uma “prevalência da dignidade da vida humana, da vedação a todas as formas de discriminação, do direito à igualdade e à vida sobre a plenitude de defesa”.

O Min. Alexandre de Moraes ressaltou a existência de mandado constitucional de criminalização de qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI) afirmando que o Estado não podia tolerar o discurso discriminatório e a impunidade daqueles envolvidos, sob pena de ofensa ao princípio da vedação de proteção insuficiente.[3]

O Min. Gilmar Mendes ressaltou a necessidade e validade de limitações argumentativas às partes na Justiça criminal de um Estado Democrático de Direito, recordando que o art. 478 do CPP já traz inúmeras vedações argumentativas (como o óbice ao argumento de autoridade a partir de decisões judiciais e a referências ao silêncio do acusado).[4]

Considerou-se, pois, que a impunidade de feminicídios pelo uso da tese de legítima defesa da honra, reconhecida como odiosa, machista e discriminatória, trazia proteção deficiente ao bem jurídico vida, violava a isonomia, a dignidade humana e os mandados de criminalização de condutas discriminatórias e da violência doméstica, além de compromissos internacionais assumidos pelo país.

 É preciso, porém, analisar a questão das teses defensivas inconstitucionais no Tribunal do Júri em toda sua envergadura.  Diante do dever estatal de tutela, inclusive penal, do direito à vida, da vedação de discriminações odiosas e de proteção deficiente e frente a homicídios e violações de direitos humanos são reconhecidos mandados implícitos de criminalização, oriundos da norma constitucional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), cristalizados na jurisprudência do STF e de Cortes internacionais como a Corte Interamericana e a Corte Europeia de Direitos Humanos.

Nesse contexto, a arguição, direta ou indireta, da legítima defesa da honra não é a única tese manifestamente inconstitucional e contrária aos direitos humanos veiculada no âmbito do Tribunal do Júri visando alcançar absolvições ilegítimas, aproveitando-se da falta de fundamentação dos veredictos e do sistema da íntima convicção.

Ao revés, é comum o uso de argumentos retóricos que buscam imputar às vítimas a causa de suas mortes e que induzem discriminações odiosas, direta ou sub-repticiamente, acerca do valor e da proteção jurídica que deve ser concedida à vida de cada pessoa.   

É de se refutar veementemente o uso de tais expedientes.   Não é compatível com o Estado Democrático de Direito a sustentação em plenário – assim como nas demais fases processuais e pré-processuais – da legitimidade de execuções sumárias e arbitrárias e do assassinato em decorrência das condições da vítima: seja por sua cor, etnia, religião, nacionalidade, procedência, opção sexual, por sua profissão, por dispor de antecedentes criminais ou infracionais, por se tratar de pessoa em situação de rua ou com deficiência física ou mental, por sua classe social, por residir em área controlada por facção rival ou por suas convicções político-ideológicas.

Decorre como corolário dos mandados implícitos de criminalização que se restrinja ou impeça a impunidade de graves atentados contra direitos fundamentais por meio de causas justificantes ou exculpantes contrárias à Constituição ou ao DIDH (violando obrigações positivas em matéria penal), e/ou excessivamente amplas e vagas, que permitam seu uso arbitrário pela autoridade judiciária (ou pelos jurados).   Não seriam constitucionais nem de conformidade com o Direito Internacional, lei ou decisão judicial que considerassem lícito o homicídio de pessoa desarmada e imobilizada, a tortura para a instrução criminal ou segurança nacional, a legítima defesa da honra ou homicídio por homofobia ou racismo, ou admitissem tese de inexigibilidade de conduta diversa nesses casos.[5]

Na sessão plenária do júri, é dever do magistrado-presidente, na forma do art. 497, III, do CPP, coibir a sustentação deste tipo de teses, contrárias à Constituição e à Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como, ao explicar os quesitos, esclarecer os jurados leigos sobre os contornos jurídicos das causas justificantes e exculpantes, alertando-os acerca de eventuais normas constitucionais ou de DIDH que delimitem tais causas, ainda que possam os jurados absolver o acusado por diversos outros motivos, como p.ex. a falta de provas suficientes, a partir de sua íntima convicção e dos debates em plenário).[6]   Como dissemos alhures:

(…) no âmbito do Tribunal do Júri deve ser coibida pelo magistrado presidente a sustentação de teses acerca de causas justificantes ou exculpantes manifestamente contrárias aos direitos humanos assegurados na CADH, intervindo para impedir abusos (art. 497, III, do CPP).  Pense-se, como exemplo, em teses de licitude de homicídio de pessoas com antecedentes criminais ou suspeitas de crimes, mendigos, adolescentes infratores, ou integrantes de determinada raça, etnia, grupo religioso ou social, ou mesmo em decorrência de traição em relacionamento amoroso (legítima defesa da honra).[7]

Ao julgar a ADPF 779, o Plenário do Supremo Tribunal Federal expressamente acolheu a tese de que a plenitude de defesa no Tribunal do Júri (CF, art. 5º, XXXVIII, a) não é princípio absoluto e ilimitado, devendo ser integrado aos demais princípios, regras e valores trazidos pelo texto constitucional, inclusive com os influxos provenientes do Direito Internacional dos Direitos Humanos e das respectivas Cortes internacionais.  

A decisão é acertada, e em verdade o raciocínio sempre foi usado para coibir ilícitos, falta de decoro, ou até mesmo a simples juntada extemporânea de documentos.   Em verdade, o argumento de que tais limites prejudicam a plenitude de defesa é falacioso, eis que a sustentação de teses manifestamente inconstitucionais ou inconvencionais em plenário, ao revés, acaba sendo prejudicial ao defendente, independente do reconhecimento da respectiva nulidade.  Ainda que a pretexto de buscar a empatia de possíveis jurados alinhados à extrema direita ideológica, poderia o advogado saudar Heil Hitler em plenário? Seria a vedação – constitucional e internacional – desta tática defensiva realmente prejudicial à plenitude de defesa?  A vedação da apologia e defesa da licitude de execuções sumárias de grupos de extermínio contra menores infratores, moradores de rua ou em razão de religião ou local de residência seria mesmo contrária à plenitude de defesa?  Parece-nos que, ao contrário, a imposição de limites a absurdos argumentativos ainda veiculados, direta ou indiretamente, em plenários de júri, contribui para a valorização da retórica defensiva, direcionando-a para as provas dos autos e construções jurídicas e até metajurídicas – mas conformes à Constituição e o DIDH.

Por outro lado, não obstante o acerto da decisão do Plenário do STF na ADPF 779, reconhecendo a impossibilidade da sustentação em plenário de tese defensiva inconstitucional, como a legítima defesa da honra, sob pena de nulidade do julgamento, mantém-se imprescindível a existência de um sistema de freios e contrapesos quanto à valoração da prova, apto a impedir tanto condenações injustas quanto a impunidade arbitrária[8], tal como aquele estipulado pelo art. 593, III, d, e §3º, do CPP.

Com efeito, como asseverou o Ministro Edson Fachin em seu voto, também o julgamento pelo Tribunal do Júri deve guardar um mínimo de racionalidade e objetividade, não podendo constituir um jogo de dados.    Assim,  deve o Tribunal, em recurso de apelação, poder identificar a causa da absolvição, sua compatibilidade com o ordenamento jurídico e, ainda, se há respaldo mínimo nas provas produzidas, não podendo a decisão implicar, por exemplo, a concessão de perdão a crimes hediondos (art. 5º, XLIII, da CRFB) ou a aplicação de tese incompatível com a Constituição e em contrariedade à jurisprudência do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ainda que não explicitada nos autos.[9]

Como alertou o Ministro Luiz Fux, a interpretação de que o art. 483, III, §2º, do CPP impediria recurso de mérito contra absolvições arbitrárias tornaria na prática ineficaz a recente decisão do Plenário do STF na ADPF 779, na medida em que ainda que não se articule, direta ou indiretamente, a tese da legítima defesa da honra, nada impede que os jurados a acolham, mesmo que em decisão manifestamente contrária à prova dos autos, deliberando arbitrariamente pela absolvição do réu, por entenderem ter sido o fato praticado para defender sua honra.    Vale dizer, a decisão da ADPF 779 pouco socorrerá a vítima caso não seja juridicamente possível o confronto do veredicto absolutório com a prova dos autos, porquanto a decisão dos jurados se dá por íntima convicção e independe das teses expressamente sustentadas.

Percebe-se, pois, que a possibilidade de nulidade do julgamento em caso de expressa veiculação de tese inconstitucional, ainda que seja positiva, não seria capaz de evitar a legitimação arbitrária do feminicídio ou de execuções sumárias caso prevalecesse o entendimento – em discussão no tema 1087 de repercussão geral, de que a soberania dos veredictos impede recurso de mérito contra absolvição manifestamente contrária à prova dos autos.    Como afirmou o Min. Luís Roberto Barroso na ADPF 779:

4. Embora relevantíssimo, o voto do Relator, a meu ver, ainda permitirá uma brecha para a utilização da tese da ‘legítima defesa da honra’.

5. (…) o argumento poderá, ainda que sub-repticiamente, ser levado em consideração pelos jurados para conceder ao acusado uma absolvição genérica.

6. Para remediar casos como esse é importante que o Tribunal deixe claro (…) o cabimento da apelação fundada na decisão do Tribunal do Júri contrária à prova dos autos, submetendo-se o réu a novo julgamento – em todos os casos de feminicídio”[10]

Enfim, mais que tratar da legítima defesa da honra, a decisão unânime do Plenário do STF na ADPF 779 consagrou a existência de limites à arguição de teses inconstitucionais e contrárias ao DIDH – mesmo diante da plenitude de defesa do Tribunal do Júri (CRFB, art. 5º, XXXVIII, a).    Assim, a sustentação destas teses é apta a provocar a nulidade do julgamento, sem prejuízo de que seu eventual acolhimento pelos jurados, ainda que espontâneo, resultando em absolvição manifestamente contrária à prova dos autos, deva poder ser objeto do recurso de mérito, conforme sistema de freios e contrapesos trazido pelo art. 593, III, d, e §3º, do CPP.   É preciso reiterar que:

A Constituição e as convenções internacionais de direitos humanos (como a Convenção Americana de Direitos Humanos e todo seu corpus juris) não autorizam a impunidade, por mera empatia com quem mata, de chacinas como as da Candelária e Vigário Geral, de torturas conexas a homicídios, de assassinatos como os de Chico Mendes, Dorothy Stang, Marielle Franco, ou da Juíza Patrícia Acioli, homicídios decorrentes de pistolagem, execuções sumárias de moradores pelos tribunais do narcotráfico ou milícias, crimes de ódio praticados por motivos homofóbicos, racistas, de intolerância religiosa ou outros motivos torpes ou fúteis, execuções de policiais militares, de políticos, lideranças camponesas e homicídios de trabalhadores sem-terra, adolescentes infratores, detentos e pessoas em situação de rua, ou  mesmo de qualquer cidadão ou ser humano em território brasileiro.

Impedir-se que o Tribunal de 2º grau possa conhecer recurso de mérito contra veredicto absolutório manifestamente contrário à prova dos autos significa outorgar aos jurados uma livre e arbitrária faculdade de tornar impunes tais fatos, por sua mera vontade ou empatia com os homicidas (ou antipatia e aversão às vítimas).   

Negar a possibilidade de recurso pro societate é permitir que mundividências ocultas sob o manto da íntima convicção, conscientes ou não, agraciem com impunidade, dentre outros, homicídios praticados contra grupos vulneráveis, minorias, contra pessoas com antecedentes criminais, ou mesmo contra vítimas em posição de destaque político, jurídico e social. [11]

Verifica-se, pois, que ainda que a decisão seja um avanço, e deva, por corolário lógico, ser estendida a vedação e a nulidade a todas as teses manifestamente inconstitucionais e contrárias ao DIDH suscitadas com vistas à absolvição, considerá-la suficiente para impedir discriminações odiosas e defender o direito à vida, esquecendo da imperiosa necessidade de se poder realizar o confronto dos veredictos absolutórios com a prova dos autos, seria o caminho mais rápido para a impunidade arbitrária de feminicídios, crimes hediondos, execuções sumárias e violações de direitos humanos.    Neste caso, o entendimento firmado pela ADPF 779 acabaria se constituindo mais em um pretexto para legitimar a impunidade destes fatos (apenas porque não expressamente veiculada a tese inconstitucional, ainda que claramente acolhida pelos jurados, resultando em absolvição totalmente dissociada da prova dos autos), do que em instrumento para a proteção dos direitos humanos.

É de se esperar que o Supremo Tribunal Federal saiba evitar tais rumos, afinal:

Com as devidas vênias aos entendimentos diversos, o dia em que a íntima convicção puder coonestar, de forma manifestamente contrária à prova dos autos e impassível de controle pelo Tribunal ad quem, sentimentos empáticos àqueles que ceifaram dolosamente a vida alheia, o Tribunal do Júri se converteria em órgão de legitimação do extermínio das vidas antipáticas às visões dos julgadores leigos: seja por terem antecedentes criminais, seja por serem usuárias de drogas, por serem partidárias de ideologias diversas, por serem policiais, camponeses ou políticos.   Legitimar-se-ia a homofobia, o feminicídio, o assassinato e a pistolagem, pela mera vontade ou simpatia de quatro dos jurados com os agressores.[12]

Evidentemente tal situação não se coaduna com a Constituição brasileira, nem com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, como esperamos reconheça o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da questão, afeta ao tema 1087 de repercussão geral, reiterando os fundamentos expressos em 12 de março de 2021, à unanimidade, na ADPF 779, quanto à inconstitucionalidade de discriminações odiosas e da desproteção penal do direito à vida.


[1] Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)

[2] http://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5278566

[3] http://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5281904

[4] http://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5282543

[5] ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Mandados implícitos de criminalização: a tutela penal dos direitos humanos na Constituição e na Convenção Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 375-376.

[6] ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Mandados implícitos de criminalização: a tutela penal dos direitos humanos na Constituição e na Convenção Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 377.

[7] ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de.  Obrigações positivas em matéria penal: efeitos e limites da Jurisprudência Interamericana em caso de violações de direitos humanos.  Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 77, jul./set. 2020, p.81. Disponível em <Artigo das Pags 57-91 – MPRJ>.

[8] Sobre impunidade arbitrária e violação do art. 25 da CADH – dever estatal de prover recurso efetivo para tutela dos direitos humanos das vítimas e familiares, vide <Arbitrariedade da absolvição pelo “quesito genérico”, a Corte Interamercana de Direitos Humanos e as vítimas. – Professor Douglas Fischer – PDF (temasjuridicospdf.com)>

[9] http://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5285338

[10] http://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5288789

[11] Júri e absolvição contra a prova dos autos: clemência absoluta ou arbítrio? – Professor Douglas Fischer – PDF (temasjuridicospdf.com)

[12] Júri e absolvição contra a prova dos autos: clemência absoluta ou arbítrio? – Professor Douglas Fischer – PDF (temasjuridicospdf.com)

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