Competência do STF para julgar parlamentares federais, denúncias e crimes contra a honra: precedentes do stf

Vamos já deixar claro que não iremos fazer qualquer análise de recente denúncia apresentada contra parlamentar por suposto crime contra a honra. Muito menos valoraremos o conteúdo do tema subjacente. Não nos cabe isso, nem para defender, nem para criticar.

A questão aqui é outra, meramente acadêmica, informativa e comparativa.

Apenas vamos relembrar o entendimento do STF a respeito do assunto, com destaque que a prerrogativa é do autor do fato, jamais da vítima.

As conclusões e comparações podem ser feitas individualmente, da forma mais democrática possível.

Em primeiro lugar, calha referir que, na Questão de Ordem na Ação Penal nº 937, o STF fixou duas teses:

“(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo E relacionados às funções desempenhadas;

e

(ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”, com o entendimento de que esta nova linha interpretativa deve se aplicar imediatamente aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme precedente firmado na Questão de Ordem no Inquérito 687 (Rel. Min. Sydney Sanches, j. 25.08.1999)…”

Portanto, para a configuração da competência por prerrogativa de função a ensejar competência do STF, a primeira tese relativaà nova interpretação das disposições constitucionais exige a implementação de duas condições essenciais:

a) o crime tenha sido praticado durante o exercício do cargo (o STF entende que se houver reeleição – sem intervalo – para o mesmo mandato ou houver sucessão de mandatos cruzados – por exemplo, de deputado federal para senador-, em que não há interrupção do “mesmo foro”, há a perpetuação da competência). ;

b) o crime tenha relação com o exercício das funções do cargo.

Salvo melhor juízo, fomos nós quem, em doutrina, levantamos pela primeira vez essa discussão no Brasil, embora não acolhida em tão largo espectro pelo STF (síntese aqui, com referência a texto publicado em 2013, muito antes do entendimento do STF na AP 937: https://temasjuridicospdf.com/prerrogativa-de-foro-e-competencia-penal-originaria-doutrina-e-jurisprudencia/)

A segunda tese trata de hipótese de prorrogação da competência, em razão do estágio processual (ter sido publicado o despacho de intimação para oferecimento das alegações finais).

Noutras palavras, uma denúncia que eventualmente atribua suposto crime cometido antes do início do mandato parlamentar NÃO é de competência do STF, conforme a orientação da própria Suprema Corte.

Superada essa questão, e especificamente sobre a ótica da tipicidade de crimes contra a honra, há um julgado paradigmático do STF:

“PENAL. QUEIXA-CRIME. CALÚNIA E DIFAMAÇÃO. DOLO. AUSÊNCIA. MERA INTERPRETAÇÃO PESSOAL DE FATOS PÚBLICOS. ANIMUS NARRANDI. FALTA DE JUSTA CAUSA. REJEIÇÃO DA QUEIXA-CRIME. 1. A queixa crime reclama a subsunção do fato concreto ao tipo penal previsto na norma abstrata como pressuposto lógico do juízo de tipicidade aferível no ato de recebimento. 2. (a) A persecução penal, a partir da superação do paradigma causal da ação pelo da “ação final”, legitima-se quando presentes indícios do elemento subjetivo do tipo, consistente na vontade livre e consciente de produzir o resultado violador do bem jurídico tutelado pela norma penal. (b) Os crimes contra a honra pressupõem que as palavras atribuídas ao agente, além de se revelarem aptas a ofender, tenham sido proferidas exclusiva ou principalmente com esta finalidade, sob pena de criminalizar-se o exercício da crítica, manifestação do direito fundamental à liberdade de expressão. (c) A jurisprudência desta Corte consolidou-se no sentido de que, para a incidência dos tipos penais referentes à calúnia, à difamação e à injúria, o mero animus narrandi não configura o dolo imprescindível à configuração de tais delitos. RHC 81.750/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe de 09-08-2007.3. (a) In casu, o querelante havia concedido uma entrevista em rede de televisão, na qual narrou a prática de conjunção carnal com uma mulher desacordada. (b) O querelado compartilhou o vídeo da entrevista do querelante através do Facebook, acompanhado de uma análise escrita na qual classifica a conduta em questão como caracterizadora do crime de estupro e, ainda, quanto a outro trecho da entrevista concedida pelo querelante, como revelador de preconceito contra religiões de matriz africana. (c) Extrai-se que o parlamentar-querelado expressou indignação com a “aventura sexual” narrada pelo querelante, a qual, no seu entender, configuraria um ato de violência sexual, aprovado, ao que lhe pareceu, pela plateia e pelo apresentador. (d) Infere-se que parlamentar-querelado criticou também o paradigma cultural da sociedade, em conformidade com a ideologia política pela qual milita o querelado. (e) Não se ignora a existência de expressão que poderia ser considerada como portadora de conteúdo negativo, a agravar a dignidade do destinatário, mormente quando, como no caso sub examine, há um histórico de animosidade e desavença entre as partes. Mas disso não decorre a possibilidade de inferir o propósito direto de ofender a honra do querelante, haja vista o conteúdo meramente narrativo do fato tido por criminoso, utilizando-se do próprio teor da entrevista concedida pelo querelante. (f) Neste sentido, consignou o d. Procurador-Geral da República “Como visto, a manifestação do querelado cingiu-se a tecer repúdio às declarações concedidas pelo próprio querelante em um programa de entrevista, no qual relatou diversos episódios de sua vida particular. Tais declarações tiveram ampla repercussão na mídia, o que levou o querelante, inclusive, a se pronunciar publicamente, posteriormente, desmentindo que se tratasse de história verídica e afirmando tratar-se de uma piada para atrair divulgação de sua peça teatral”. 4. Assenta-se, dessa forma, ser induvidosa a ausência de justa causa para o início da ação penal, porquanto ausente animus caluniandi ou difamandi. 5. Ex positis, rejeito a queixa-crime, nos termos do art. 395, III, do Código de Processo Penal (Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: […] III – faltar justa causa para o exercício da ação penal). (Pet 5.735/DF, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe 11-09-2017)

No precedente retromencionado (RHC nº 81.750), pede-se venia para ressaltar as seguintes lições do Ministro Celso de Mello:

[…] É preciso ter presente consoante adverte NELSON HUNGRIA (“Comentários ao Código Penal”, vol. VI/53, item n. 125, 5ª ed., 1982, Forense) – que, nos delitos de calúnia, difamação e injúria, não se pode prescindir, para efeito de seu formal reconhecimento, da vontade deliberada e positiva do agente, de vulnerar a honra alheia, eis que, em tais infrações penais, “é indispensável a vontade de injuriar ou difamar, a vontade referida ao eventus sceleris, que é, no caso, a ofensa à honra.

A jurisprudência dos Tribunais tem ressaltado, a partir do magistério expedido pela doutrina […] que as expressões eventualmente contemeliosas, quando proferidas em momento de exaltação ou no calor de uma discussão, bem assim o exercício, pelo agente, do direito de crítica ou de censura profissional, ainda que veemente, atuam como fatores de descaracterização do elemento subjetivo, peculiar aos tipos penais definidores dos crimes contra a honra. […]

Não por outra razão que também já restou reafirmado que:

[…] 21. O crime de calúnia somente se configura quando seja atribuída à vítima a prática de fato criminoso específico, com intenção de ofender sua reputação (INQ 2084, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 09/09/2005), por isso que, no caso sub examine, a inicial da Queixa-Crime deve ser parcialmente rejeitada, porquanto não narra de que maneira a afirmação do Deputado, de que teria sido chamado de “estuprador” pela Querelante, poderia ter ofendido a honra da Deputada Federal. 22.

Ex positis, à luz dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, recebo a denúncia pela prática, em tese, de incitação ao crime; e recebo parcialmente a queixa-crime, apenas quanto ao delito de injúria. Rejeito a Queixa-Crime quanto à imputação do crime de calúnia. […] (Inquérito n. 3.932-DF, STF, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 21.6.2016, publicado no DJ em 9.9.2016)

Sobre difamação, relembra-se igualmente:

INJÚRIA VERSUS DIFAMAÇÃO. A difamação pressupõe atribuir a outrem fato determinado ofensivo à reputação. Na injúria, tem-se veiculação capaz de, sem especificidade maior, implicar ofensa à dignidade ou ao decoro. QUEIXA-CRIME – INJÚRIA – RECEBIMENTO. Configurando injúria os fatos narrados na denúncia, cumpre o recebimento, dando-se seqüência à ação penal de natureza privada. (Inquérito n. 2.543, Plenário, Relator Ministro Marco Aurélio, Presidência do Ministro Gilmar Mendes, unânime, julgado em 19.6.2008)

Não esqueçamos ainda o que em doutrina é muito referido (Lopes Jr, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 7 ed, p. 358-359):

[…] a justa causa é um verdadeiro ponto de apoio (topos) para toda a estrutura da ação processual penal, uma inegável condição da ação penal, que, para além disso, constitui um limite ao (ab)uso do ius utprocedatur, ao direito de ação. […] o conceito de justa causa acaba por constituir numa condição de garantia contra o uso abusivo do direito de acusar. […] A acusação não pode, diante da inegável existência de penasprocessuais, ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente para, à luz do princípio da proporcionalidade, justificar o imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu. […] Sem dúvida, o ponto mais sensível na questão da inépcia diz respeito “à exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”. […] as condições da ação (prática de fato aparentemente criminoso; punibilidade concreta; legitimidade de parte e justa causa) são fundamentais.

Ainda sobre requisitos de uma denúncia criminal, igualmente esse julgado acima retromencionado é relevante, nessa parte da fundamentação:

“[…] Em suma, embora se defenda, no âmbito da filosofia política e da teoria constitucional anglo-americana, um amplo espaço de proteção à liberdade de expressão, que é considerada por muitos como um direito preferencial, é possível vislumbrar restrições a livres manifestações de ideias, inclusive mediante a aplicação da lei penal, nos seguintes casos: a) em atos, discursos ou ações que envolvam a pedofilia; b) nos casos de discursos que incitem a violência (fighting words); c) quando se tratar de discurso com intuito manifestamente difamatório, de forma dolosa (actual malice), dentre outras hipóteses circunstanciais que não interessam ao presente caso.

[…] Nessa linha, para que se examine a aptidão da peça acusatória inicial, deve-se fazer a leitura do disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, verbis :

“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

Ensina o clássico João Mendes de Almeida Júnior que a denúncia: “É uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com tôdas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando). (Segundo enumeração de Aristóteles, na Ética a Nincômaco, 1. III, as circunstâncias são resumidas pelas palavras quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando , assim referidas por Cícero (De Invent. I). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear as testemunhas e informantes”. (ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro, v. II. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1959, p. 183) – (excertos de voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes no Agravo Regimental na Petição nº 8.242-DF, de 3.5.2022)

Vamos realçar que não estamos emitindo juízos de valor, nem criticando absolutamente nada.

Estamos procurando apenas informar o leitor acerca da jurisprudência e doutrinas a respeito do assunto.

Caberá a cada um, com toda sua liberdade de crítica (ainda existente …), apreciar e tecer suas observações.

Salvo melhor juízo sempre.

Íntegra do texto em formato pdf aqui:

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