Publicada em 2.9.2021 (com vigência após 90 dias da publicação, conforme seu art. 5º), a Lei nº 14.197/2021 revogou a Lei nº 7.170/83 (que tratava dos chamados “crimes contra a segurança nacional”, por isso conhecida como Lei de Segurança Nacional), inserindo agora vários dispositivos no Código Penal no agora Título XII (com 4 capítulos), passando a regular os denominados “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”.
A pretensão não é analisar os tipos penais separadamente, mas a competência processual para o julgamento do crimes, eventuais recursos e até habeas corpus.
Conforme o art. 109, IV, CF/88, compete aos juízes federais processar e julgar “os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.
A questão central a ser respondida inicialmente é: os crimes previstos na nova lei são crimes políticos ?
Para nós a resposta é afirmativa.
Conforme defendemos na companhia de Eugênio Pacelli nos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (2021, 13ª ed, p. 205 e seguinte), os crimes políticos seriam aqueles definidos na Lei nº 7.170/83 (fizemos ressalvas expressas quanto à inconstitucionalidade de alguns dispositivos, como os dos arts. 23 e 25 da referida lei).
Extrai-se de decisões do Supremo Tribunal Federal (v.g. RC n. 1473-SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJ 18.12.2017), que “crimes políticos, para os fins do artigo 102, II, b, da Constituição Federal, são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais e, por conseguinte, definidos na Lei de Segurança Nacional, presentes as disposições gerais estabelecidas nos artigos 1º e 2º do mesmo diploma legal. 2. “Da conjugação dos arts. 1º e 2º da Lei nº 7.170/83, extraem-se dois requisitos, de ordem subjetiva e objetiva: i) motivação e objetivos políticos do agente, e ii) lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito. Precedentes” (RC 1472, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Rev. Ministro Luiz Fux, unânime, j. 25/05/2016).
No julgamento retromencionado (bem assim na RC n. 1472), ficou claro que, para o enquadramento de determinadas condutas na LSN, era fundamental a presença desses dois requisitos.
Inseridos no Código Penal, o Capítulo I tratou dos “crimes contra a soberania nacional” (art. 359-I – atentado à soberania; art. 359-J, atentado à integridade nacional; e art. 359-H, espionagem); o Capítulo II, dos “crimes contra as instituições democráticas (art. 359-L, abolição violenta do estado democrático de direito; e art. 359-M, golpe de estado); o Capítulo III, dos “crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral” (art. 359-N, interrupção do processo eleitoral; e art. 359-P, violência política; vetados os arts. 359 O e Q); e o Capítulo IV, dos “crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais” (art. 359-R, sabotagem – com fim específico de abolir o estado democrático de direito).
Embora com nova conformação legislativa, todos eles trazem desde a origem o tratamento como crimes que atinjam os requisitos que então foram estipulados pelo STF como essenciais para a tipificação na LSN.
Noutras palavras, havendo o enquadramento de condutas nos tipos penais retromencionados, a competência, necessariamente, será da Justiça Federal (algo similar ao que ocorre com os crimes contra o sistema financeiro nacional, art. 109, V, CF/88 c/c art. 26 da Lei nº 7.492/86).
Fixadas as primeiras premissa e conclusões, remanescem dois outros tópicos que achamos relevantes abordar nesse momento.
Das decisões proferidas pelos juízes federais no julgamento de referidos feitos, qual o recurso cabível ?
Vamos reiterar o que já dito em nossos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (2021, 13ª ed, p. 205), no ponto inalterado processualmente: “Tais delitos submetem-se à competência da Justiça Federal e poderão ser objeto de recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal (art. 102, II, b)”. É que, “nos termos do art. 108, da Constituição, cabe aos Tribunais Regionais Federais o julgamento, em grau de recurso, das decisões proferidas pelos juízes federais (art. 108, II), texto esse perfeitamente compatível com a previsão de cabimento de recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal. Assim, este último recurso (o ordinário) será cabível apenas da decisão dos Tribunais Regionais Federais. Justificada a escolha do constituinte pela existência de três níveis de apreciação ordinária da matéria, exatamente em razão das particularidades que envolvem os crimes políticos”.
Ou seja, o recurso será ordinário ao STF (item reajustado após publicação originária, que seguia essa linha de argumentação).
Já em relação a habeas corpus (ação autônoma de impugnação que não pode ser enquadrada tecnicamente como recurso), acorremos uma vez mais às nossas conclusões na mesma obra (op. Cit., item 650.11, p. 1864 e seguintes).
Com efeito, na forma do que estipulado no art. 108, I, d, CF, compete ao respectivo Tribunal Regional Federal o julgamento de habeas corpus contra ato de Juiz Federal.
Fixada esta premissa, não se pode olvidar que há inúmeros precedentes do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a competência da Corte Suprema para o julgamento (de modo originário) de writs que postulavam o trancamento de ações penais recebidas ou o afastamento de prisões cautelares determinadas por juízes de primeiro grau em causas da então Lei de Segurança Nacional (vide, exemplificativamente, Habeas Corpus nº 73.451-RJ, STF, 2ª Turma, unânime, publicado no DJ em 6.6.1997, autoridade impetrada Juízo Federal da 13ª Vara do Rio de Janeiro; Habeas Corpus nº 78.855-RJ, STF, 1ª Turma, publicado no DJ em 26.5.2000, autoridade impetrada Juízo Federal da 13ª Vara do RJ), revogada pela Lei nº 14.197/2021.
Deflui dos julgados que as impetrações foram tidas por adequadas (foro competente) por força do disposto no art. 102, II, b, CF/88.
Contudo, crê-se que a competência, hodiernamente, contra atos de juízes federais em feitos criminais envolvendo tipificação nos crimes insertos pela Lei nº 14.197/2021 é (assim como defendemos quando vigente a Lei nº 7.170/83) também do Tribunal Regional Federal respectivo.
A Súmula 690 dispunha competir “originariamente ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de ‘habeas corpus’ contra decisão de turma recursal de Juizados Especiais Criminais”. O motivo de tal entendimento estava firmado noutra Súmula (640, STF), que assentava ser “cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçadas, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal”. Como o habeas corpus seria sucedâneo do recurso próprio, a competência seria do tribunal que tivesse competência para apreciar o recurso em relação ao qual se estava utilizando o writ como substitutivo: o Supremo Tribunal Federal, a quem compete julgar os recursos extraordinários das decisões das Turmas Recursais.
O posicionamento consubstanciado na Súmula 690, já dito, foi revogado pela decisão Plenária do Supremo Tribunal ao apreciar o HC nº 86.834 (publicado no DJ em 9.3.2007).
Nesse julgado, que firmou novo posicionamento jurisprudencial acerca da competência para a apreciação originária de habeas corpus, o Supremo Tribunal Federal partiu de outras premissas. Entendeu-se que, como os integrantes das turmas recursais dos juizados especiais estão submetidos, nos crimes comuns e de responsabilidade que eventualmente cometerem, à jurisdição do tribunal de justiça ou do Tribunal Regional Federal, incumbiria a cada qual, respectivamente, o julgamento dos habeas corpus contra ato das turmas recursais (entende-se que, pelo mesmo motivo e fundamento, também se se tratar de writ contra ato dos juízes de primeiro grau integrantes dos JEFs).
O fundamento basilar para a modificação do entendimento então consubstanciado na Súmula 690, STF, é o de que, ocorrendo a impetração de habeas corpus, tem-se como premissa um ato atacado, o qual pode, em tese, implicar a prática de um delito de abuso de autoridade. Se só aos Tribunais de Justiça (art. 96, III, CF) ou aos Tribunais Regionais Federais (art. 108, I, a, CF) compete processar os juízes a eles vinculados (independentemente da natureza do crime, se comum federal ou estadual, ressalvada apenas a competência da Justiça Eleitoral), decorreria desses dispositivos constitucionais sua competência para a apreciação dos writs.
Exatamente por esses fundamentos interpretativos mais recentes é que se entende que os precedentes anteriormente citados do STF acerca da competência para julgamento de HC envolvendo os então delitos da Lei de Segurança Nacional, agora tratados na Lei nº 14.197/2021 como “crimes contra o Estado Democrático de Direito”, não mais subsistem frente à nova compreensão da Suprema Corte acerca da competência para o julgamento de habeas corpus contra ato de juiz de primeiro grau. Até porque, como já dito na origem, a Constituição é expressa ao dispor que, contra ato de juízes federais, a competência para o julgamento de habeas corpus é do Tribunal Regional Federal respectivo (art. 108, I, d, CF).
Concluindo, mesmo que rápida e inicialmente, temos que:
- Os crimes inseridos no Código Penal pela Lei nº 14.197/2021 são necessariamente de competência federal;
- Das decisões proferidas pelos juízes federais, cabe o recurso ordinário ao STF (conclusão parcial reajustada após publicação originária);
- Compete aos respectivos tribunais regionais federais o julgamento de habeas corpus impetrado contra ato de juiz federal, mesmo envolvendo delitos agora previstos na Lei nº 14.197/2021.
Salvo melhor juízo, essa a análise prefacial a respeito dos temas propostos.
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