NÃO HÁ SIGILO EM APURAÇÕES E AÇÕES QUE ENVOLVAM DESVIOS DE
RECURSOS PÚBLICOS

Esse texto também foi publicado no site Migalhas em https://www.migalhas.com.br/depeso/366850/nao-ha-sigilo-em-acoes-que-envolvam-desvios-de-recursos-publicos no dia 26.5.2022

Em recentíssimo julgado, apreciando ação direta de inconstitucionalidade
contra o art. 78-B da Lei nº 10.233/2011 (que estabelecia sigilo como regra em
processos administrativos sancionadores), assentou expressamente que ”a regra no
Estado democrático de Direito inaugurado pela Constituição de 1988 é a
publicidade dos atos estatais, sendo o sigilo absolutamente excepcional. Somente
em regimes ditatoriais pode ser admitida a edição ordinária de atos secretos, imunes
ao controle social. O regime democrático obriga a Administração Pública a conferir
máxima transparência aos seus atos. Essa é também uma consequência direta de um
conjunto de normas constitucionais, tais como o princípio republicano (art. 1º,
CF/1988), o direito de acesso à informação detida por órgãos públicos (art. 5º,
XXXIII, CF/1988) e o princípio da publicidade (art. 37, caput e § 3º, II, CF/1988)”.
E prosseguiu destacando que “a Constituição ressalva a publicidade em
apenas duas hipóteses: (i) informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança
do Estado e da sociedade (art. 5º, XXXIII, parte final); e (ii) proteção à intimidade,
vida privada, honra e imagem das pessoas (arts. 5º, X e 37, § 3, II, CF/1988). Como
se vê, o sigilo só pode ser decretado em situações específicas, com forte ônus
argumentativo a quem deu origem à restrição ao direito fundamental à informação,
observado o princípio da proporcionalidade”. (Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 5.371-DF, STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, unânime, julgado na
sessão virtual de 18.2.2022 a 25.2.2022, publicado no DJ em 12.4.2022).
Importante ainda trazer em sede preliminar as sempre valiosas e lúcidas
lições do Ministro Celso de Mello, cabendo destaque (dentre tantos) o que assentado
no julgamento do Agravo Regimental no HC nº 119.535/SP, julgado em 22.10.2013,
publicado no DJ em 26.11.2013):

[…] Nada deve justificar, em princípio, a tramitação, em regime de sigilo, de
qualquer procedimento que tenha curso em juízo, pois, na matéria, deve prevalecer,
ordinariamente, a cláusula da publicidade.
Não custa rememorar, tal como sempre tenho assinalado nesta Suprema Corte,
que os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, não
podem privilegiar o mistério.
Na realidade, a Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e
coletivos (art. 5º), enunciou preceitos básicos cuja compreensão é essencial à
caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou, na
expressiva lição de NORBERTO BOBBIO (“O Futuro da Democracia”, p. 86, 1986,
Paz e Terra), como “um modelo ideal do governo público em público”.
A Assembleia Nacional Constituinte, em momento de feliz inspiração, repudiou
o compromisso do Estado com o mistério e com o sigilo, tão fortemente realçados sob
a égide autoritária do regime político anterior.
Ao dessacralizar o segredo, a Assembleia Constituinte restaurou velho dogma
republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade,
convertido, em sua expressão concreta, em fator de legitimação das decisões e dos atos
governamentais.
Isso significa, portanto, que somente em caráter excepcional os procedimentos
penais poderão ser submetidos ao (impropriamente denominado) regime de sigilo
(“rectius”: de publicidade restrita), não devendo tal medida converter-se, por isso
mesmo, em prática processual ordinária, sob pena de deslegitimação dos atos a serem
realizados no âmbito da causa penal.
É por tal razão que o Supremo Tribunal Federal tem conferido visibilidade a
procedimentos penais originários em que figuram, como acusados ou como réus, os
próprios membros do Poder Judiciário (como sucedeu, p. ex., no Inq 2.033/DF e no
Inq 2.424/DF), pois os magistrados, também eles, como convém a uma República
fundada em bases democráticas, não dispõem de privilégios nem possuem gama mais
extensa de direitos e garantias que os outorgados, em sede de persecução penal, aos
cidadãos em geral.
Essa orientação nada mais reflete senão a fidelidade desta Corte Suprema às
premissas que dão consistência doutrinária, que imprimem significação ética e que
conferem substância política ao princípio republicano, que se revela essencialmente
incompatível com tratamentos diferenciados, fundados em ideações e práticas de
poder que exaltam, sem razão e sem qualquer suporte constitucional legitimador, o
privilégio pessoal e que desconsideram, por isso mesmo, um valor fundamental à
própria configuração da ideia republicana que se orienta pelo vetor axiológico da
igualdade. Daí a afirmação incontestável de JOÃO BARBALHO (“Constituição
Federal Brasileira”, p. 303/304, edição fac-similar, 1992, Brasília), que associa, à
autoridade de seus comentários, a experiência de membro da primeira Assembleia
Constituinte da República e, também, a de Senador da República e a de Ministro do
Supremo Tribunal Federal: “Não há, perante a lei republicana, grandes nem
pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem
fracos, porque a todos irmana e nivela o direito (…).” (grifei)
Sendo assim, pelas razões expostas, nego provimento ao presente recurso de
agravo, mantendo, por seus próprios fundamentos, a decisão recorrida”. (os grifos são
no original)

A propósito dessa questão de ponderação de princípios, rememoramos
outro julgado do plenário do STF, em que restaram afirmadas algumas premissas
importantes aplicáveis também ao tema aqui posto, feito no qual se discutia a
(in)constitucionalidade do artigo 305 do CBT frente às garantias convencional e
constitucional de não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere):
1 – “A garantia do nemo tenetur se detegere no contexto da teoria geral
dos direitos fundamentais implica a valoração do princípio da proporcionalidade e
seus desdobramentos como critério balizador do juízo de ponderação, inclusive no
que condiz aos postulados da proibição de excesso e de vedação à proteção
insuficiente”;
2- “a relativização da máxima nemo tenetur se detegere verificada in casu
é admissível, uma vez que atende às duas premissas fundamentais acima
estabelecidas. (a) A uma porque não afeta o núcleo irredutível da garantia enquanto
direito fundamental, qual seja, jamais obrigar o investigado ou réu a agir ativamente
na produção de prova contra si próprio. […]; (b) A duas porque, em um exercício
de ponderação, a referida flexibilização possibilita a efetivação em maior medida de
outros princípios fundamentais com relação aos quais colide no plano concreto, sem
que, ademais, acarrete qualquer violação à dignidade da pessoa humana”;
3 – “O princípio da proporcionalidade, implicitamente consagrado pelo
texto constitucional, propugna pela proteção dos direitos fundamentais não apenas
contra os excessos estatais, mas igualmente contra a proteção jurídica insuficiente,
conforme a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais”(RE nº
971.959/RS, STF, Plenário, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 29.7.2020, publicado no
DJ em 31.7.2020).
Optamos por destacar essas decisões para demonstrar que, faz muito tempo,
está sedimentado na jurisprudência da Suprema Corte brasileira o posicionamento de
que o sigilo de processos – quaisquer que sejam suas naturezas ! – deve ser
excepcional, com ênfase para o fato de que não há qualquer afronta a regras de
direito individual a divulgação de informações de interesse público, sem que, dessa
revelação, haja violação à essência da cláusula de direito fundamental individual
protegido (intimidade), ou, como dito expressamente no precedente antes
mencionado, se não afetar “o núcleo irredutível da garantia enquanto direito
fundamental”.
Exatamente por isso é que, reforçando a redação originária da Carta Maior,
a Emenda Constitucional nº 45/2004 modificou a redação do inciso IX do art. 93 para
consignar expressamente que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário
serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a
lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados,
ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do
interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
Por outra ótica (mas assentando exatamente a mesma lógica), nunca é
demais ressaltar que o art. 5º, XXXIII, garante o direito de todos a “receber dos
órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou
geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado”.
Dando conformação legal aos princípios constitucionais, a Lei nº
12.527/2011, no § 4º do art. 31 deixou expresso que a “restrição de acesso à
informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser
invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em
que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a
recuperação de fatos históricos de maior relevância”.
Vamos rememorar ainda que, apreciando a alegação de ilegalidade de
requisição de movimentações bancárias (protegidas constitucionalmente pela
intimidade individual) diretamente pelo TCU quando apurando fatos de sua
atribuição e envolvendo desvio de recursos públicos, assentou de modo muito claro:

[…] 2. O primado do ordenamento constitucional democrático assentado no
Estado de Direito pressupõe uma transparente responsabilidade do Estado e, em
especial, do Governo.

3. O sigilo de informações necessárias para a preservação da intimidade é
relativizado quando se está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos
recursos públicos.

4. Operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão
abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei Complementar nº 105/2001, visto
que as operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração
pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal. Em tais situações, é
prerrogativa constitucional do Tribunal [TCU] o acesso a informações relacionadas a
operações financiadas com recursos públicos. […]

[…] 8. In casu, contudo, o TCU deve ter livre acesso às operações financeiras
realizadas pelas impetrantes, entidades de direito privado da Administração Indireta
submetidas ao seu controle financeiro, mormente porquanto operacionalizadas mediante
o emprego de recursos de origem pública. Inoponibilidade de sigilo bancário e
empresarial ao TCU quando se está diante de operações fundadas em recursos de

[…]origem pública. Conclusão decorrente do dever de atuação transparente dos
administradores públicos em um Estado Democrático de Direito.

[…] 11. A proteção deficiente de vedação implícita permite assentar que se a
publicidade não pode ir tão longe, de forma a esvaziar, desproporcionalmente, o
direito fundamental à privacidade e ao sigilo bancário e empresarial; não menos
verdadeiro é que a insuficiente limitação ao direito à privacidade revelar-se-ia, por outro
ângulo, desproporcional, porquanto lesiva aos interesses da sociedade de exigir do
Estado brasileiro uma atuação transparente.

[…] O direito ao sigilo bancário e empresarial, mercê de seu caráter
fundamental, comporta uma proporcional limitação destinada a permitir o controle
financeiro da Administração Pública por órgão constitucionalmente previsto e dotado de
capacidade institucional para tanto. […] Denegação da segurança por ausência de direito
material de recusa da remessa dos documentos. (Mandado de Segurança n. 33.340-DF,
STF, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 26.5.2015)

Mais que isso, e reportando-se também ao caso acima, a 2ª Turma do STF
igualmente já reconheceu de forma unânime:


Recurso ordinário em habeas corpus. Ação penal. Associação criminosa, fraude a
licitação, lavagem de dinheiro e peculato (arts. 288 e 313-A, CP; art. 90 da Lei nº
8.666/93; art. 1º da Lei nº 9.613/98 e art. 1º, I e II, do DL nº 201/67). Trancamento.
Descabimento. Sigilo bancário. Inexistência. Conta corrente de titularidade da
municipalidade. Operações financeiras que envolvem recursos públicos. Requisição de
dados bancários diretamente pelo Ministério Público. Admissibilidade. Precedentes.
Extensão aos registros de operações bancárias realizadas por particulares, a partir das
verbas públicas creditadas naquela conta. Princípio da publicidade (art. 37, caput, CF).
Prova lícita. Recurso não provido. […]
[…]1. Como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, ao tratar de requisição, pelo
Tribunal de Contas da União, de registros de operações financeiras, “o sigilo de
informações necessárias para a preservação da intimidade é relativizado quando se
está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos recursos
públicos” (MS nº 33.340/DF, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de
3/8/15).

2 Assentou-se nesse julgado que as “operações financeiras que envolvam
recursos públicos não estão abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei
Complementar nº 105/2001, visto que as operações dessa espécie estão submetidas aos
princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal (…)”.

[…] 5. O poder do Ministério Público de requisitar informações bancárias de conta
corrente de titularidade da prefeitura municipal compreende, por extensão, o acesso aos
registros das operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas
creditadas naquela conta.

De nada adiantaria permitir ao Ministério Público requisitar diretamente os
registros das operações feitas na conta bancária da municipalidade e negar-lhe o
principal: o acesso ao real destino dos recursos públicos, a partir do exame de operações
bancárias sucessivas (v.g., desconto de cheque emitido pela Municipalidade na boca do
caixa, seguido de transferência a particular do valor sacado). […]
[…] 7. Entendimento em sentido diverso implicaria o esvaziamento da
própria finalidade do princípio da publicidade, que é permitir o controle da
atuação do administrador público e do emprego de verbas públicas.

Inexistência de prova ilícita capaz de conduzir ao trancamento da ação penal.

Recurso não provido. (RHC n. 133.118 – CE, STF, 2ª Turma, unânime, Rel.
Min. Dias Toffoli, julgado em 26.9.2017, publicado no DJ em 9.3.2018)

A razão dessas várias citações de julgados do Supremo Tribunal Federal é
para demonstrar a necessidade de assentar que o sigilo deve ser para aquelas
situações absolutamente excepcionais.
Além disso, e mais importante, como expressamente reconhecido pela
Suprema Corte, quando se tratar de apurações ou ações que envolvam desvios de
recursos públicos – em quaisquer esferas -, e ausente hipótese de garantia de
segurança do Estado e da sociedade (art. 5º, XXXIII, parte final), não se pode arguir
o sigilo, pois as apurações devem ser transparentes, presente a publicidade
,
sendo consequentemente descabida a tese de que a divulgação implica violação a
direitos de intimidade dos investigados.

Acesse o inteiro teor do texto aqui:

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