PRIMEIRO PRECEDENTE DO STF SOBRE O “NOVO” CRIME DE SABOTAGEM” (ART. 359-R, CP)

Todos sabem que a antiga “Lei de Segurança Nacional” (Lei nº 7.170/83) foi revogada recentemente pela Lei nº 14.197,de 1º.9.2021, que incluiu vários novos tipos penais no Título XII na Parte Especial do Código Penal, com vigência prevista para 90 (noventa) dias após sua publicação oficial.

E agora temos a primeira decisão do Plenário do STF sobre o tema, foi em acórdão publicado hoje, 18.10.2022, no Recurso Criminal nº 1.475, decisão unânime em sessão virtual encerrada em 7.10.2022, tratando do crime de “sabotagem”, então previsto no art. 15 da Lei nº 7.170 (“praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem, depósitos e outras instalações congêneres”), agora regulado no art. 359-R do Código Penal (“Destruir ou inutilizar meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito”).

O caso concreto trata-se de um recurso ordinário criminal (e é esse o recurso cabível mesmo !) interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão proferida pelo Juízo da 1ª Vara Federal Criminal de Vitória/ES, a qual rejeitara a denúncia apresentada pela suposta prática do crime previsto no art. 15 da Lei nº 7.170/1983. A rejeição se deu porque o juízo monocrático não identificou prática de crime político, já que não houve, na situação narrada, a motivação política atentatória ao Estado e/ou risco à integridade ou à soberania nacional a que se refere a legislação, havendo, na legislação ordinária.

Antes de prosseguir, salientamos que, nos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (14ª ed., 2022), defendemos que:

[…] Conforme interpretação conferida pelo STF, os crimes políticos, “para os fins do ar­tigo 102, II, b, da Constituição Federal, são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais e, por conseguinte, definidos na Lei de Segurança Nacional, presentes as disposições gerais estabelecidas nos artigos 1º e 2º do mesmo diploma legal. 2. “Da conjugação dos arts. 1º e 2º da Lei nº 7.170/83, extraem-se dois requisitos, de ordem subjetiva e objetiva: i) motiva­ção e objetivos políticos do agente, e ii) lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito. Precedentes” (RC 1472, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Rev. Ministro Luiz Fux, unânime, j. 25/05/2016)” (RC n 1.473-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 14.11.2017, publicado no DJ em 18.12.2017).

[…] Urge fazer, então, relevante distinção conceitual. De um lado, haveria as chama­das infrações políticas, que sempre foram tratadas como crimes de responsabilidade, e, de outro, os crimes políticos, que recebem o predicado em razão do conteúdo da respecti­va motivação e/ou da natureza dos resultados. Assim, esses novos tipos penais podem ser classificados como crimes políticos, pois se referem a condutas que, em abstrato, re­velam motivações políticas do agente e que trazem lesão real ou potencial à integrida­de territorial, soberania, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Es­tado de Direito. A competência seria federal por força do disposto no art. 109, IV, pri­meira parte, da CF/88. Como estamos tratando do tema de competência jurisdicional, ainda que se queira entender que essas condutas não se amoldariam à definição de crimes políticos (e pre­cisaremos aguardar uma posição definitiva da Suprema Corte Brasileira), configuran­do, apenas crimes comuns, não nos restam dúvidas que todos eles trazem em si também violação direta a bens, serviços ou interesses da União, especialmente aqueles decorren­tes das obrigações exclusivas previstas no art. 21, I, II e III, da Constituição Federal (art. 21. Compete à União: I – manter relações com Estados estrangeiros e participar de organi­zações internacionais; II – declarar a guerra e celebrar a paz; III – assegurar a defesa na­cional). Assim, incidiria também ao caso a regra geral do art. 109, IV, mas na segunda parte, CF/88, que dispõe ser competência da Justiça Federal ‘as infrações penais pratica­das em detrimento de bens, serviços ou interesses da União”.

A solução da questão, e isso resta claro, é de notável relevância para o fim de se sa­ber se à tais infrações se aplicará, ou não, o quanto disposto no art. 102, II, b, da Consti­tuição da República (recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal). […]

Atente-se que o julgado em tela é o Recurso Criminal nº 1.475, sendo que nós referimos a importância do leading case (que tratava exatamente do crime de sabotagem, o antigo art. 15 da LSN) era o Recurso Criminal nº 1.473 (no STF, os recursos são numerados de acordo com sua “classe processual, o que revela a “raridade” desse tipo de decisão). Veja-se o que salientamos especificamente em relação ao artigo 359-R:

3.4 Crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais. (capítulo IV). Aqui se trata de um único crime, de sabotagem (art. 359-R), que prevê como típica a conduta de “Destruir ou inutilizar meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito”.

Referida conduta tinha previsão similar no art. 15 da LSN, que dispunha ser cri­me “praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem, depósitos e outras instalações congêneres”.

Ao nosso sentir, a solução da questão há de ser diversa das hipóteses anteriores, per­mitindo três enquadramentos (com alteração de competências). E para tanto partimos da premissa do julgado anteriormente mencionado (RC nº 1.473-SP, DJ 18.12.2017), que tratava de conduta tipificada no art. 15 da Lei nº 7.170/83. Naquele caso, restou com­provado que as razões da prática do crime de sabotagem não foram motivações políticas, e sim, ao que pareceu, de vingança. Como não havia motivação política, não estaria ca­racterizado o crime político previsto no art. 15, restando o réu absolvido.

Significa que, se a motivação for política, o delito do art. 359-I pode ser enquadrado como crime político (exatamente na delineação e requisitos conferidos pelo STF no pre­cedente retromencionado), atraindo a competência da Justiça Federal por força do dis­posto na primeira parte do inciso IV do art. 109 da CF/88. Em tal hipótese se aplicaria o regime recursal ordinário para o Supremo Tribunal Federal.

De outro lado, se não houver a motivação política, mas a sabotagem atingir dire­tamente bens, serviços ou interesses da União, suas entidades autárquicas ou empresas públicas, a competência ainda será federal, mas pela segunda parte do inciso IV do art. 109 da CF/88.

Por fim, se a conduta não estiver enquadrada nessa competência federal, poderá sê­-la da Justiça Estadual, de modo residual.

E o que decidiu o STF no caso concreto publicado hoje ?

Exatamente o que alertamos e defendemos.

O julgado tem em sua ementa o seguinte:

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO CRIMINAL. SABOTAGEM CONTRA MEIOS E VIAS DE TRANSPORTE. AUSÊNCIA DE LESÃO REAL OU POTENCIAL À INTEGRIDADE TERRITORIAL, À SOBERANIA NACIONAL, AO REGIME REPRESENTATIVO E DEMOCRÁTICO, À FEDERAÇÃO OU AO ESTADO DE DIREITO.

1. Recurso ordinário constitucional interposto em face de decisão que rejeitou a denúncia de imputação do crime político de sabotagem contra meios e vias de transporte (art. 15 da Lei n° 7.170/1983), em razão das condutas de liderar movimento de bloqueio de rodovias federais e constranger caminhoneiros a paralisarem o transporte de mercadorias.

2. Conforme jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal, da conjugação dos arts. 1º e 2º da Lei nº 7.170/1983, extraem-se dois requisitos para a configuração do delito ali tipificado, um de ordem subjetiva e um de ordem objetiva: (i) motivação e objetivos políticos do agente e (ii) lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito (RC 1.472, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli).

3. No caso concreto, as condutas imputadas ao acusado, embora potencialmente tenham causado transtornos à economia e à produção nacionais, bem como à circulação de pessoas e mercadorias, não chegaram a colocar em risco os bens jurídicos mencionados nos incisos do art. 1º da Lei nº 7.170/1983 (a integridade territorial e a soberania nacional; o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; a pessoa dos chefes dos Poderes da União).

4. Em 1º de setembro de 2021, foi publicada a Lei nº 14.197, que revogou a Lei nº 7.170/1983 e incluiu o Título XII na Parte Especial do Código Penal, com vigência prevista para 90 (noventa) dias após sua publicação oficial. Com a nova lei, algumas condutas foram efetivamente abolidas do nosso ordenamento jurídico, enquanto outras foram substancialmente mantidas, embora em outros dispositivos penais, ocorrendo a chamada continuidade normativo-típica.

5. Com o advento da Lei nº 14.197/2021 e a consequente revogação do art. 15 da Lei nº 7.170/1983, o crime de sabotagem passou a estar previsto no art. 359-R do Código Penal. O novo dispositivo, embora semelhante ao revogado art. 15 da Lei nº 7.170/1983, traz modificações importantes, que implicam apenas parcial continuidade normativo-típica em relação à revogada Lei de Segurança Nacional. A começar pelo núcleo do tipo, que agora prevê os verbos destruir ou inutilizar. Além disso, a configuração do delito requer que a conduta seja dirigida contra meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, com a finalidade específica de abolir o Estado Democrático de Direito. A hipótese acusatória não imputa ao réu tais condutas.

6. Recurso a que se nega provimento.

Destacamos duas importantes partes do voto-condutor:

[…] 8. Analisando a questão de fato da perspectiva da jurisprudência tradicional sobre os crimes políticos, entendo que o requisito de ordem objetiva não restou preenchido. […] Quanto ao requisito de ordem subjetiva, é indispensável a motivação política do agente, exigindo-se a demonstração do especial fim de subverter a estrutura do poder constituído, atingindo a segurança do Estado. São diversos os precedentes do Supremo Tribunal Federal em que se ressalta a exigência desse especial fim de agir para a caracterização do delito (cf., v. g., RC 1.472, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. Em 25.05.2016; RC 1.473, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. Em 14.11.2017; RC 1.470, Segunda Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 12.03.2002).

Como se vê, o caso em tela trata-se do primeiro após o advento da nova Lei nº 14.197/2021, em que, na linha do que advertimos, o STF reafirmou a jurisprudência no sentido de que são necessários os dois requisitos (subjetivo e objetivo), e que, com algumas modificações tipológicas, ocorreu no caso do “crime de sabotagem” o que se chama de continuidade típica normativa.

O tema é relevante porque salienta o que não é muito comum, a interposição de “recurso criminal” de decisão de primeiro grau “diretamente” no STF, bem assim porque se trata do primeiro julgado após a edição da Lei nº 14.197/2021.

A decisão do plenário foi unânime e você pode baixar o inteiro teor aqui, já com destaques feitos por nós no corpo do julgado, para facilitar a leitura.

Esse nosso alerta rápido, sempre com a ressalva de posicionamentos em sentido contrário.

Acesse aqui a decisão com destaques e também o texto em formato pdf

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