Transplante da Teoria da Perda de uma Chance ao Processo Penal: Uma Análise Crítica à Luz da Concepção Racionalista da Prova

Vinícius Almeida Bertaia

Especialista em Direito Penal e em Direito Civil e Processo Civil. Mestrando em Direito pela UNICEUB – Brasília/Distrito Federal, Brasil. Promotor de Justiça no Distrito Federal/MPDFT. E-mail: vinicius.bertaia@sempreceub.com

Este texto originariamente foi publicado na Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, aqui reproduzido com expressa autorização do autor, inclusive disponibilizando o texto em pdf ao final na configuração original.

RESUMO: Este artigo analisa criticamente a transposição da teoria da perda de uma chance, originária da responsabilidade civil, para o processo penal brasileiro. A partir da concepção racionalista da prova, que enfatiza a relação teleológica entre prova e verdade, argumenta-se que a adoção indiscriminada da teoria inibe o julgador de realizar a necessária valoração racional das evidências, bem como de explicitar de forma fundamentada por que determinado conjunto probatório satisfaz ou não o estândar de prova “além de qualquer dúvida razoável”. Verificou-se, por meio de julgados do Superior Tribunal de Justiça, que a teoria da perda de uma chance frequentemente é usada para justificar absolvições em razão de omissões na produção de provas, sem avaliar a razoabilidade dessas lacunas ou o grau de suficiência do acervo probatório disponível. Embora lacunas probatórias existam, conclui-se que a teoria não contribui para a melhoria do sistema de prova penal, pois ignora critérios de valoração racional e se afasta do rigor epistêmico necessário para legitimar decisões que envolvem a liberdade individual. Ao final, defende-se que a aplicação de uma epistemologia jurídica sólida, apoiada em padrões de suficiência objetivamente definidos e em fundamentações adequadas, atende de forma mais eficaz à busca pela verdade possível e à redução dos riscos de erros judiciais, sem prejudicar a segurança jurídica ou a eficiência processual.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria da perda de uma chance. Direito probatório. Prova penal. Valoração racional da prova. Epistemologia jurídica.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A teoria da perda de uma chance na responsabilidade civil. 2. A perda de uma chance (probatória) no processo penal. 3. A perda de uma chance sob o crivo da concepção racionalista da prova: uma breve análise. 4. Análise de casos: impactos na fundamentação das decisões ante a aplicação pelo STJ da perda de chance probatória; 4.1. Aspectos gerais sobre a evolução jurisprudencial sobre a teoria; 4.2. Casos em que acolhida a aplicação da perda de uma chance probatória; 4.3. Casos em que rejeitada a aplicação da perda de uma chance probatória. Considerações finais. Referências.

Introdução

O raciocínio probatório estruturado em critérios objetivos para valorar os elementos de prova – de modo a corroborar enunciados fáticos e reduzir equívocos decisórios, seja em falsas condenações ou absolvições – vem ganhando destaque na doutrina brasileira. Sua consolidação depende de se superar o modelo subjetivo majoritário, ainda ancorado no estado psicológico do julgador, e de se firmar um paradigma racionalista. Para tanto, faz-se essencial que a jurisprudência, sobretudo a das cortes superiores, além de incorporar essa concepção, afaste teorias incompatíveis com um método de prova alicerçado em bases objetivas.

A teoria da perda de uma chance probatória, sobretudo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é um exemplo de abordagem que não segue a perspectiva objetiva do raciocínio probatório, prejudicando a aplicação de uma epistemologia jurídica pautada em critérios racionais, abertos ao controle intersubjetivo. Ao contrário, enfatiza em demasia o esgotamento de todos os meios de prova e parte da premissa de que qualquer elemento não produzido privaria a defesa de comprovar a inocência do acusado. Tal raciocínio, ancorado no in dubio pro reo de modo absoluto e onipresente, desvirtua o papel dos padrões de prova e ignora etapas fundamentais da atividade probatória. É necessário, no espírito da doutrina de Dale Nance (1988), aferir em que medida as lacunas afetam a solidez do conjunto probatório, em vez de presumir benefícios irrestritos ao réu sempre que um meio de prova deixa de ser utilizado.

Outro aspecto a se considerar é o cuidado com a incorporação de institutos jurídicos de sistemas distintos, seja no mesmo ordenamento, seja de ordenamentos estrangeiros. Ainda que o intercâmbio de ideias seja fecundo e permita superar visões paroquiais do direito, deve-se evitar o simples “transplante” de institutos sem adaptá-los ao contexto em que se pretende inseri-los (Godoy; Ribeiro, 2020). É sob esse prisma que a teoria da perda de uma chance, originária da responsabilidade civil, vem sendo transposta de modo inadequado ao processo penal, como se verá na análise de acórdãos do STJ – disponível em seu banco de jurisprudência.

A partir de uma concepção racionalista da prova, tomando por base a doutrina de Jordi Ferrer-Beltrán (2023; 2024a; 2024b), este trabalho examinará: (i) a insuficiência na formação do conjunto de elementos probatórios; (ii) a valoração racional das provas, individualmente e em conjunto; e (iii) a decisão sobre os fatos provados à luz do standard probatório do processo penal. Pretende-se demonstrar que esse método racionalista conduz a resultados mais seguros do que a importação de uma teoria oriunda da responsabilidade civil.

O objetivo principal não é criticar o desfecho das decisões do STJ, mas evidenciar que o transplante da teoria da perda de uma chance ao processo penal revela-se desnecessário e perigoso, pois compromete a sedimentação de um modelo de valoração racional das provas, fundamentado adequadamente. Estruturalmente, abordar-se-á a origem da teoria da perda de uma chance na responsabilidade civil, seu transplante à esfera penal e a análise das decisões da Corte sob a ótica de uma concepção racionalista da prova, demonstrando sua incompatibilidade com a sistemática processual penal brasileira.

1. A teoria da perda de uma chance na responsabilidade civil

A responsabilidade civil, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, decorre do ato ilícito ou do ato lícito praticado com abuso de direito, gerando dano a outrem e impondo ao agente o dever de indenizar. Assim está estruturada nos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, que exigem para sua configuração a presença de uma conduta, um dano, um nexo de causalidade que os conecte e a culpa em sentido amplo. Contudo, esses requisitos nem sempre abarcam todas as situações que surgem no cotidiano, razão pela qual a teoria geral da responsabilidade civil admite a flexibilização de tais elementos, buscando contemplar variados cenários de produção de dano.

Nesse contexto, o próprio Código Civil, em seu art. 927, parágrafo único, e o Código de Defesa do Consumidor, nos arts. 12 e 14, apresentam hipóteses em que a comprovação de culpa não é exigida, reforçando a tendência de ampliação das possibilidades de responsabilização. Na Europa, ao longo do século passado, vislumbrou-se a necessidade de proteger situações em que não se perde necessariamente o resultado final, mas a chance de atingi-lo. Conforme Rubens Arai (2024), a teoria da perda de uma chance emergiu como resposta a condutas negligentes que privavam terceiros de oportunidades reais e concretas de obter um benefício ou minimizar um prejuízo, inicialmente na França e, em seguida, na Itália, Inglaterra e Portugal, sobretudo nos casos de erros médicos. Para superar a dificuldade de estabelecer o nexo entre a conduta e o dano final, o foco deslocou-se do resultado hipotético para a própria oportunidade perdida, passando-se da mera probabilidade do bem almejado à certeza de que a possibilidade de o alcançar foi subtraída.

No Brasil, o exemplo paradigmático dessa teoria reside na controvérsia judicial sobre o “Show do Milhão”, programa de televisão cujo participante, ao chegar à última pergunta, deparou-se com a ausência de alternativa correta, ficando impossibilitado de conquistar o prêmio de 1 milhão de reais. Em 2006, no REsp 788.459/BA, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito à indenização pela chance frustrada, mas a limitou a um quarto do valor do prêmio – pois havia quatro opções de resposta, apenas uma correta. No REsp 1.254.141/PR (Brasil, 2012), mais uma vez o STJ assentou que a indenização pela perda de uma chance deve ser proporcional ao prejuízo final, afastando a hipótese de ressarcimento integral do bem esperado.

É justamente essa distinção – entre perda do resultado e perda da chance de obtê-lo – que ressalta a pertinência da teoria apenas quando há probabilidade concreta, e não mera expectativa. Caso contrário, não se justifica a indenização. Desse modo, a valoração proporcional é fundamental, aliada aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade (Arai, 2024, p. 27). Diante disso, o STJ (Brasil, 2009) estabeleceu uma série de requisitos para que o instituto se aplicasse de forma adequada ao contexto brasileiro, exigindo, por exemplo, que o dano fosse real, atual e certo, com base em um juízo de probabilidade.

No processo penal, contudo, o transplante da teoria suscita problemas, pois, em muitas decisões, o que se observa é a atribuição ao investigado ou acusado do resultado final da chance perdida, isto é, a absolvição. Na prática, ignora-se que, durante a instrução probatória, o surgimento de novos elementos da acusação pode enfraquecer significativamente a hipótese de inocência. Afinal, se a chance diminui progressivamente, não cabe equipará-la ao resultado pleno. Portanto, antes de se cogitar a importação do instituto ao processo penal, deve-se avaliar se a oportunidade perdida apresentava seriedade, realidade e atualidade, ou se tudo não passava de uma possibilidade meramente abstrata.

À luz desse panorama, o próximo passo consiste em examinar como a teoria da perda de uma chance tem sido aplicada nos tribunais criminais e quais justificativas sustentam essa transposição do direito civil à esfera processual penal. É o que se discutirá a seguir.

2. A perda de uma chance (probatória) no processo penal

A principal obra a defender a aplicação da perda de uma chance no processo penal, posteriormente acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi a de Alexandre Morais da Rosa, iniciada em 2014 e mais tarde desenvolvida em conjunto com Fernanda Mambrini Rudolfo (2017). Sob o título de “A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal”, os autores advogam a possibilidade de se transportar o instituto originário do direito civil para o âmbito penal, apontando diversos exemplos práticos e concluindo pela absolvição do réu em todos os casos. Em 2015, também se publicou estudo de Bertoncini e Torres sobre o tema, embora esse trabalho não seja frequentemente citado nas decisões do STJ. Mais recentemente, em 2024, Rosa e Rudolfo publicaram livro aprofundando o assunto.

Fundamentando-se na premissa de que o ônus da prova recai integralmente sobre a acusação, à luz do princípio da presunção de inocência, Rosa e Rudolfo (2024) sustentam que o Estado, em um regime democrático, não poderia compactuar com a omissão na busca de provas relevantes. Desse modo, caso a acusação deixe de produzir elementos probatórios potencialmente aptos a demonstrar culpa, ficaria inviabilizado concluir pela condenação. A incerteza a respeito do que tais provas poderiam revelar acarretaria a aplicação do princípio in dubio pro reo, conduzindo à absolvição.

A teoria civilista da perda de uma chance reconhece a inviabilidade de se determinar com absoluta certeza o resultado hipotético, aceitando graus de probabilidade para fundamentar o dever de indenizar. Transpondo-a para o processo penal, os defensores do transplante afirmam que o prejuízo do acusado reside em não se saber se a prova não produzida poderia refutar a hipótese acusatória. No entanto, ignoram a necessidade de avaliar o grau de probabilidade de tal refutação, considerando o restante do acervo probatório.

Em outras palavras, o argumento central é que, se o Estado se satisfaz com determinado conjunto de provas para caracterizar a culpa, abstendo-se de investigar meios adicionais que poderiam atestar a inocência do réu, estaria o acusado perdendo a oportunidade de refutar, de modo mais robusto, a narrativa acusatória (Rosa; Rudolfo, 2017). Como exemplos, invocam-se duas situações recorrentes no STJ: (i) reconhecimento de pessoas sem a observância dos requisitos do art. 226 do Código de Processo Penal; e (ii) condenação baseada unicamente em depoimentos de policiais, embora existam outros meios de prova a serem produzidos. Havendo outros elementos de prova disponíveis, deveriam estes ser produzidos, não se detendo aos meios com menor grau de confiabilidade.

Contudo, percebe-se que, ao transpor o instituto para o processo penal, os defensores da teoria pouco discutem se a oportunidade de produzir prova em prol da absolvição era efetivamente real e séria – requisito presente no direito civil para legitimar a indenização. Em contraste, a aplicação penal da teoria faz com que a não produção de todos os meios possíveis de prova acabe por acarretar a absolvição independente de sua relevância e da dificuldade de sua produção. Assim, a presunção de inocência passa a funcionar como uma espécie de “sanção” ao Estado pela omissão na busca de elementos probatórios, desconsiderando o grau de plausibilidade de tais provas para modificar o juízo de culpabilidade.

A condenação exige superação da dúvida razoável, por padrão de standard probatório democrático, e no caso de ausência de todas as provas (possíveis) acerca da autoria e materialidade do delito, dada a perda da chance de produção da prova por parte do Estado, prevalece a presunção de inocência. Assim é que se afirma a possibilidade de aplicação da Teoria da Perda de uma Chance para fundamentar, em cada caso específico, a absolvição por falta de provas possíveis, as quais poderiam ter sido produzidas, mas não o foram (por dolo ou culpa dos agentes estatais), de modo que se supera a mera condenação por indícios e/ou provas rarefeitas, dando-se prevalência a importância de produção de todas as provas possíveis pela acusação (Rosa; Rudolfo, 2017, p. 470).

Em síntese, a teoria da perda de uma chance probatória, quando aplicada ao processo penal, culmina na absolvição diante do vazio probatório resultante de diligências não empreendidas. Sob esse prisma, a inocência se preserva pela ausência de certeza condenatória, fortalecendo o in dubio pro reo e deslocando-se o foco para a insuficiência probatória ocasionada pela inércia estatal.

3. A perda de uma chance sob o crivo da concepção racionalista da prova: uma breve análise

Conforme Ferrer-Beltrán (2024a), a relação entre prova e verdade não se reduz a uma identidade absoluta; traduz-se em uma correspondência entre as evidências apresentadas e a conclusão judicial. Logo, a conclusão de que há elementos de convicção suficientes para condenar ou absolver cumpre uma função teleológica: a prova é o melhor mecanismo para atingir esse fim, ainda que a certeza absoluta permaneça inalcançável (Badaró, 2023).

À medida que mais elementos de prova são incorporados aos autos, maiores são as chances de se aproximar da verdade e, portanto, de minorar as chances de erros. Nesse sentido, os estândares de prova visam distribuir o risco de equívocos: no processo penal, adota-se um nível rigoroso de exigência (“além de qualquer dúvida razoável”) justamente pela gravidade que recai sobre a liberdade individual (Peixoto, 2023). Assim, a “altíssima probabilidade” de veracidade da hipótese acusatória é o ponto de chegada pretendido, correspondendo à valoração ponderada e racional dos elementos probatórios.

Mostra-se a fase da valoração racional como fundamental para o processo penal democrático, pois implica aferir tanto o grau de corroboração quanto o de segurança extraído das provas presentes e das ausentes aos autos. Isso porque permite-se aferir se o julgador bem valorou e sopesou as provas, já que exige que o julgador avalie o grau de corroboração e segurança de cada elemento e do conjunto total, o que deve constar da motivação da decisão.

Essa análise, fundamentada de modo claro e objetivo, distancia-se de meras convicções subjetivas, pois cabe ao magistrado justificar a decisão com base na qualidade lógica e racional das evidências (Ferrer-Beltrán, 2023; Nance, 1998). De modo a possibilitar o controle intersubjetivo, o dever de motivar as conclusões torna-se imprescindível, ancorando-se em um padrão de suficiência objetivo que explique se o valor probatório satisfaz ou não o patamar exigido para condenar ou absolver (Ferrer-Beltrán, 2024a).

À primeira vista, poder-se-ia supor que o esgotamento de todos os meios de prova sempre favoreceria a melhor aproximação da verdade e, portanto, a um melhor resultado processual. Contudo, as regras probatórias estabelecem limites e exceções que visam equilibrar celeridade, eficiência e respeito a direitos fundamentais, ainda que a busca pela verdade permaneça central (Ferrer-Beltrán, 2023; Badaró, 2017). Desse modo, nem sempre a produção irrestrita de provas é desejável ou mesmo admissível, seja pela irrelevância de certos elementos, seja pelos custos e complexidades envolvidos.

Tome-se, no ordenamento brasileiro, o que estabelecem três enunciados do Código de Processo Penal, especialmente em relação à produção da prova oral: o art. 400, § 1º, em cotejo com os arts. 203 e 214. O CPP estabelece que o controle jurisdicional sobre o exercício da atividade probatória das partes se dá justamente na aferição de pertinência, relevância e no quanto a atividade probatória, por se alargar demasiadamente, possa frustrar o mandado de celeridade e de duração razoável do processo. O dispositivo é claro: o juiz pode (rectius, deve) “[…] indeferir as [provas] consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias” (§ 1º do art. 400 do CPP) (Suxberger, 2023, p. 94).

O Código de Processo Penal (CPP), por exemplo, prevê que o juiz “indeferirá as diligências consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias” (§ 1º do art. 400), marcando que o ônus de prova não se confunde com o dever ilimitado de produção probatória (Mitidiero, 2020; Walton, 2014). Ao acusador incumbe o ônus de demonstrar a suficiência das provas para atingir o estândar de condenação; se tal prova não se aperfeiçoa, a consequência inevitável é a absolvição. Portanto, não se exige do Estado um dever de exaurir todos os meios de prova, mas de provar suficientemente a culpa para além de dúvida razoável.

Existindo lacunas probatórias, cumpre ao julgador avaliar se são razoáveis ou não, verificando o impacto na confiabilidade do conjunto probatório. O fato de o Estado “dar-se por satisfeito” pode decorrer da percepção de que o acervo já atende ao umbral de suficiência; nesse caso, a opção de encerrar a instrução atende também a outros princípios, como celeridade e eficiência (art. 6º, III, CPP). Não a toa existem prazos recursais, momentos que limitam a postulação por provas e, até mesmo, a formação da coisa julgada.

Para alcançar decisões justas, é imprescindível que o processo observe duas condições fundamentais: uma atividade epistêmica correta e uma atividade hermenêutica adequada, ambas desenvolvidas em conformidade com o devido processo legal (Badaró, 2017), de modo que ignorar limitações do próprio ordenamento jurídico poderia justificar, por exemplo, a admissão de provas ilícitas em prol da busca da verdade.

Desse modo, há critérios de não admissão de provas previstos pelo direito geradores de lacunas, servindo, como um primeiro destaque, o princípio da relevância, que encontra amparo no próprio CPP (artigo 400, § 1º), como exemplo de regra de exclusão por razões jurídicas. Porém há outras, motivadas por razões epistêmicas, como a saturação de informações, assim:

[…] dever-se-á encontrar um adequado ponto de equilíbrio entre duas ideias em tensão. A primeira indica que o grau de corroboração de uma hipótese aumenta com o número de resultados favoráveis obtidos a partir da contrastação. E isso nos conduz à admissão da prova redundante, visto que superaria o teste da relevância. A segunda ideia é de que a abundância de informação pode produzir o denominado “perigo de transborde” em seu tratamento, tornando muito difícil a tomada de decisões (Ferrer-Beltrán, 2023, p. 117).

O que se observa é que, se o princípio geral epistêmico é obter o maior número de dados disponíveis, desde que relevantes, com vistas a atender à relação teleológica entre prova e verdade, este princípio convive com várias regras de exclusão, cuja razão de ser é atender aos outros fins do processo para além da busca da verdade (Ferrer-Beltrán, 2023, p. 61).

Assim, deve-se compreender que a tão almejada completude do conjunto probatório sempre será relativa, pois provas aptas serão rejeitas por critérios jurídicos, e provas desconhecidas, inadmissíveis ou de baixo valor epistêmico podem tornar-se dispensáveis, conforme o magistrado e as partes avaliem a pertinência e a proporcionalidade de sua produção.

Assim, considera-se mais ou menos completo o acervo, conforme disponha de provas: (i) conhecidas pelos atores processuais; (ii) acessíveis e disponíveis, conforme o caso, às partes; (iii) razoáveis de serem exigidas, diante dos limites contingentes à atividade probatória (Wanderley, p. 53).

Além disso, segundo Nance (1998, p. 629), não se pode presumir que a prova não produzida teria sido inevitavelmente favorável à defesa; a comunhão da prova e os estândares adotados não comportam a ideia de que toda omissão resulte em benefício automático ao réu.

A aferição razoabilidade da lacuna probatória passa pela análise do quão acessível e disponível estava o meio de prova conhecido, frente às limitações fáticas ou jurídicas presentes, o que passa pela informação das partes ao julgador informações sobre o cenário de omissão que lhe permitam aferir e deliberar sobre a relevância e escusabilidade da lacuna gerada. Nance (1998, p. 629) exemplifica que provas meramente cumulativas, de fontes não confiáveis, que dificilmente alterariam o resultado frente ao conjunto de provas, ou mesmo diante do alto custo frente à baixa contribuição ao conhecimento da verdade, além daquelas relacionas a fato incontroverso, se não produzidas são consideradas lacunas razoáveis.

A teoria de Rosa e Rudolfo, ao preconizar a perda de uma chance probatória sempre em favor da defesa, ignora a razoabilidade da omissão e antecipa um resultado hipotético de inocência, mesmo sem avaliar se a prova ausente efetivamente inviabilizou o atingimento do standard de condenação. Embora as críticas à insuficiência da investigação sejam legítimas, o direito probatório racionalista oferece instrumentos para punir falhas estatais sem precisar transformar todo hiato em absolvição. Basta considerar se a falta da prova impede atingir a altíssima probabilidade de culpa exigida. Em tal situação, a própria insuficiência probatória conduz à absolvição, sem que seja necessária a adoção de uma teoria civilista cujo pressuposto é diverso.

É bem verdade que propostas como da “melhor prova”do direito estadunidense (Nance, 1988), em que se apresenta possibilidade de sancionamento ao agente estatal culpado pela não produção de uma prova, não são previstas no direito brasileiro. O que não significa que não sirva a omissão probatória de substrato aos órgãos de controle interno e externo da atividade policial para melhorar o aparato investigativo e a qualidade da prova produzida. Também não se confunde o fato de haver uma omissão dolosa ou culposa na produção da prova com o de não atingimento do estândar de provas para condenar o acusado.

Os problemas atrelados ao dever da devida diligência e investigações policiais qualitativas, especialmente apurando não a probabilidade da culpa, mas sim visando obter todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias (art. 6º, inciso III, do CPP), são conhecidos e consistem em verdadeiro problema estrutural do direito brasileiro, reconhecido também no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Há, portanto, uma distância fundamental entre exigir do órgão acusador a produção de provas relevantes para formar juízo de culpa e impor-lhe o dever de esgotar todos os meios possíveis, independentemente de sua relevância, custo ou disponibilidade. Verifica-se que o STJ, em não poucos casos, aplicou a teoria da perda de uma chance para absolver réus, ainda quando havia justificativas legítimas para a não obtenção de todos os meios de prova disponíveis. Tais decisões acabam por prejudicar a fundamentação judicial, que se afasta do modelo racional de valoração e passa a sancionar o Estado por supostas omissões, sem analisar devidamente a suficiência do conjunto probatório.

O diálogo entre busca pela verdade, racionalidade probatória e respeito a limitações processuais demonstra que o sistema penal não exige um conjunto probatório absoluto, mas apenas suficiente para atender ao standard probatório para sentença de condenação. Caso esse nível não seja alcançado, a absolvição é consequência natural do in dubio pro reo. Já a teoria da perda de uma chance probatória, quando transplantada sem critério do direito civil, ignora a razoabilidade e o valor efetivo das provas ausentes, resultando em decisões que, por vezes, contradizem a lógica epistêmica do processo penal.

No capítulo seguinte, analisar-se-ão casos concretos julgados pelo STJ, evidenciando como a adoção dessa teoria impacta a fundamentação das decisões e o próprio ideal de valoração racional das provas.

4. Análise de casos: impactos na fundamentação das decisões ante a aplicação pelo STJ da perda de chance probatória

4.1. Aspectos gerais sobre a evolução jurisprudencial sobre a teoria

O método de análise de casos ganha especial relevância em um sistema de justiça que atribui força aos precedentes judiciais, sobretudo após a edição do art. 927 do Código de Processo Civil (CPC). Tal dispositivo exige fundamentação adequada para a aplicação de precedentes, sob pena de invalidar a decisão, conforme os critérios do art. 489, § 1º, do CPC. Essa disciplina foi, recentemente, incorporada ao Código de Processo Penal (arts. 315, § 2º, e 564, V), em consonância com o dever constitucional de motivar as decisões judiciais (CF, art. 93, IX).

Assim, diante de julgados que transplantam a teoria da perda de uma chance ao processo penal, o impacto normativo que daí decorre já bastaria para justificar a adoção de um método de estudo de casos. No entanto, torna-se ainda mais relevante avaliar a aplicação prática e efetiva do modelo concebido por Rosa e Rudolfo e suas implicações, verificando até que ponto ele se afasta das diretrizes racionalistas do direito probatório apresentadas nos capítulos anteriores.

Pesquisando-se no banco de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com foco nas 5ª e 6ª Turmas (competência criminal) e utilizando a expressão “perda de uma chance”, constata-se que a menção mais antiga data de abril de 2016, anterior até mesmo à publicação do trabalho de Morais da Rosa e Rudolfo (2017). No total, surgiram 15 acórdãos e 492 decisões monocráticas, de acordo com a última consulta, realizada em 6 de janeiro de 2025.

O primeiro acórdão data de 2021. Em 2022, houve duas decisões colegiadas, ao passo que, em 2023 e 2024, surgiram seis acórdãos em cada ano, representando 80% do total desse biênio. A análise das decisões monocráticas revela crescimento ainda mais acentuado: só em 2024, foram 269 decisões, enquanto 2023 registrou 111 e 2022, outras 74. Até 2021, contabilizavam-se apenas 38 decisões fazendo referência ao tema, distribuídas em pequenas quantidades ao longo dos anos anteriores. Isso significa que quase 55% de todas as decisões se concentram em 2024, ultrapassando a soma de todos os anos anteriores.

No portal do Supremo Tribunal Federal, a consulta em seu banco de jurisprudência retornou 36 decisões monocráticas e nenhum acórdão em âmbito criminal, ao se pesquisar “perda de uma chance”.

Esse crescimento na jurisprudência penal brasileira, mediante o transplante da teoria originalmente concebida no campo da responsabilidade civil, mostra-se expressivo. Destaca-se, sobretudo, o impacto nas nulificações de decisões dos juízos de primeiro grau e a necessidade de refletir sobre como essa expansão afeta a implementação de uma concepção racionalista do direito probatório no Brasil – o que, em última análise, também passa pela adoção de padrões coerentes pelos tribunais superiores.

Tendo em vista o escopo limitado deste estudo, a análise se restringirá aos acórdãos do STJ, descartando-se as decisões monocráticas e deixando-se para uma pesquisa posterior a apreciação do tema no âmbito do STF.

4.2. Casos em que acolhida a aplicação da perda de uma chance probatória

O estudo dos acórdãos em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) efetivamente adotou a teoria da perda de uma chance probatória no processo penal mostra como a corte vem tratando omissões na produção de provas e quais as consequências disso para o resultado da ação penal. A seguir, sintetizam-se os sete principais casos, evidenciando a forma como a teoria foi aplicada e em que medida foram (ou não) observados os critérios racionais de valoração probatória.

1º Caso – AREsp n. 1.940.381/AL (13.12.2021, 5ª Turma do STJ). Tratava-se de ato infracional análogo ao homicídio tentado, envolvendo pessoas em situação de rua. Durante a instrução, foram ouvidos apenas um bombeiro e um policial militar – ambos chegando ao local após os fatos – e o acusado, que admitiu a agressão, alegando legítima defesa. A condenação nas instâncias inferiores foi revertida no STJ.

O tribunal afastou os depoimentos do policial e do bombeiro por serem meras provas de “ouvir dizer”, e entendeu que a polícia e o Ministério Público se omitiram ao não buscar outras provas relevantes (exame de corpo de delito na vítima e oitiva das testemunhas oculares). Fixou-se a seguinte tese:

quando a acusação não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, capazes de, em tese, levar à absolvição do réu ou confirmar a narrativa acusatória caso produzidas, a condenação será inviável, não podendo o magistrado condenar com fundamento nas provas remanescentes (Brasil, 2021, p. 23).

Ainda que a localização de pessoas em situação de rua seja notoriamente difícil, o tribunal interpretou isso como omissão injustificada do Estado. Não se analisou, contudo, se a lacuna probatória gerou dúvida razoável ou se o conjunto remanescente era insuficiente para ultrapassar o standard probatório. Na prática, a decisão impôs ao Estado um dever de produzir todas as provas possíveis, sem discorrer sobre a razoabilidade ou viabilidade concreta de obtê-las.

Um dos pressupostos para reconhecer a omissão do Estado na produção da prova é a ausência de justificativa: “Deve-se, portanto, exigir-se justificativa plausível para que se tenha perdido a chance de se produzir prova material, além da testemunhal, pelos agentes estatais” (Rosa; Rudolfo, 2017, p. 464), contudo o STJ não procedeu em conformidade com esse entendimento, sem se defrontar com as justificativas da acusação.

Seria possível que, se acaso realizada uma valoração racional das provas, analisando o grau de corroboração e de segurança do acervo probatório, se obtivesse uma conclusão pela absolvição do investigado, ante a insuficiência de provas para a superação do estândar, mas ter-se-ia uma fundamentação que expusesse o raciocínio judicial, tornando controlável a decisão, o que não foi possível com o uso da teoria da perda de uma chance, como observado.

2º Caso – HC n. 706.365/RJ (23.05.2023, 6ª Turma do STJ): Versava sobre condenação por estupro e roubo majorado, praticados por dois agentes armados no interior de um ônibus. A vítima reconheceu o réu, mas o processo careceu de outras provas além de seu relato. O crime teria ocorrido no interior de um ônibus, o qual tinha câmeras de segurança instaladas em seu interior. No processo constou a informação de que a empresa de transporte coletivo se dispôs a “gravar as imagens em um CD”, o que fora ignorado pela autoridade policial.

O STJ apontou diversas omissões: não houve requisição das imagens das câmeras do ônibus nem busca de passageiros que poderiam corroborar ou refutar a autoria, ante o fato de não diligenciar pelos registros dos bilhetes eletrônicos. A omissão teria suprimido a chance de demonstrar a inocência do acusado.

Novamente, a corte se limitou a enumerar as investigações não realizadas, sem avaliar a suficiência do que efetivamente constava nos autos ou o grau de corroboração das provas existentes (testemunho da vítima, depoimentos colhidos, etc.). Faltou explicitar se a lacuna criou dúvida razoável a ponto de inviabilizar a condenação.

3º Caso – HC n. 776.101/SP (21.11.2023, 6ª Turma do STJ): A controvérsia envolveu a divergência de laudos periciais quanto à natureza de uma substância entorpecente, resultando, ao final, na incineração do material.

O STJ entendeu que a elaboração de um laudo complementar, sem oportunizar à defesa a formulação de quesitos, violou o contraditório. A destruição da droga inviabilizou nova perícia independente, caracterizando a perda de uma chance de provar a inocência.

Embora o cerne da discussão fosse a violação ao contraditório e a supressão do objeto de prova, a decisão invocou a perda de uma chance. Poderia ter optado por anular a prova pericial em função da ausência de contraditório ou, então, pela insuficiência probatória. Contudo, preferiu-se um argumento meramente retórico: a incineração teria retirado a possibilidade de questionar o resultado pericial, gerando a nulidade.

4º Caso – HC n. 829.723/PR (12.12.2023, 6ª Turma do STJ): O réu foi condenado por seis crimes de roubo em concurso formal, lastreado em reconhecimento fotográfico informal e depoimentos de policiais, sem que outras testemunhas fossem ouvidas na fase processual, mas apenas no inquérito.

Durante a audiência de instrução, a vítima reconheceu o acusado como um dos agentes que a assaltou. O réu, por sua vez, disse que estava em casa, provavelmente dormindo, no momento dos fatos. Por não comprovar o álibi, o juízo de origem desconsiderou sua palavra.

Em justificação criminal, anos após o depoimento judicial, a vítima disse que os policiais lhe “deram a ideia”, ao lhe mostrarem a foto do paciente. O tribunal local manteve a condenação, alicerçado no depoimento dos policiais e no reconhecimento efetuado pelas demais vítimas, embora não ouvidas em juízo.

O STJ, num primeiro momento, reconheceu a nulidade dos reconhecimentos diante da inobservância do procedimento do artigo 226 do CPP. Depois apontou linhas de investigação não perseguidas: não apreensão do bem subtraído em poder do réu; ausência de oitiva de eventuais testemunhas oculares, mas somente as vítimas; requisição de gravação de câmeras de vigilância do veículo onde ocorrido o delito; e, tentativa de localizar o veículo que auxiliava os réus, eis que relatado por uma das vítimas até o número da placa.

Contudo, consta que o Ministério Público requereu ao juízo a expedição de ofício à companhia de ônibus, a qual não atendeu à requisição judicial. Tal justificativa, porém, foi ignorada pelo tribunal, aduzindo que não houve insistência para obter “prova salutar”.

Percebe-se novamente que a corte aprofunda a teoria da perda de uma chance probatória defendida pela doutrina, imiscuindo-se na discricionariedade policial na forma como conduz as investigações, um dos princípios mais tradicionais da fase do inquérito policial. O acórdão se limitou a elencar as supostas lacunas probatórias, sem examinar por que seriam irrazoáveis diante das dificuldades ou dos elementos já existentes. Tampouco explicitou qual dessas omissões foi determinante para a absolvição, reforçando a impressão de que a teoria foi empregada para sancionar a falta de exaustão investigativa, sem analisar o peso das provas disponíveis.

5º Caso – PExt no HC n. 870.636/SP (14.05.2024, 5ª Turma do STJ): O relator negou pedido de extensão de habeas corpus formulado por três acusados, porém reconheceu nulidades que levaram à anulação de suas condenações.

Mencionou-se, de passagem, a perda de uma chance probatória, mas a decisão concretizou-se na insuficiência de provas e na inobservância das formalidades de reconhecimento fotográfico.

A corte citou a teoria apenas como reforço retórico, sem demonstrar em que medida a omissão estatal realmente inviabilizou a produção de prova relevante ou por que a lacuna teria gerado dúvida razoável. O fundamento decisivo foi a fragilidade probatória.

6º Caso – AgRg no AREsp n. 2.460.649/MG (10.09.2024, 5ª Turma do STJ): A acusação recorreu alegando preclusão da nulidade de prova pericial, pois a defesa não se insurgiu no momento oportuno. A corte reexaminou o acervo probatório para constatar falhas na cadeia de custódia.

Segundo o tribunal, ao não realizar a perícia em tempo hábil (50 dias após o fato), o Estado teria perdido a chance de colher prova pericial segura. Entretanto, não se analisou a possibilidade de compensar essa falha com outras evidências ou o grau de certeza restante.

Não se discutiu o grau de relevância da omissão para afastar o standard de prova. A invocação da perda de uma chance substituiu a análise do valor efetivo das provas remanescentes e se havia, de fato, dúvida razoável quanto à culpabilidade.

Nos sete acórdãos, a teoria da perda de uma chance probatória foi invocada para justificar a absolvição (ou a nulidade) quando o Estado deixou de produzir certas provas que poderiam confirmar ou refutar a hipótese acusatória. Porém, em todos eles, faltou uma apreciação pormenorizada acerca de (i) como cada lacuna afetou o grau de corroboração das provas já produzidas; (ii) se as dificuldades de obtenção eram razoáveis ou intransponíveis; e (iii) qual o impacto efetivo do hiato investigativo no atingimento (ou não) do standard probatório exigido para a condenação.

Visualiza-se que, após a guinada jurisprudencial entre os anos de 2022 e 2023 (mais perceptível ao averiguar o aumento das decisões monocráticas), a teoria passou a ser empregada como argumento retórico no ano de 2024, sem apontar os requisitos para a aplicação da perda de uma chance transplantada.

Esses julgados reforçam a impressão de que a adoção da teoria da perda de uma chance, transplantada da responsabilidade civil, desviou o foco do exame racional da suficiência probatória. Em vez de sopesar se, com o que estava disponível, já não havia prova bastante (ou se, ao contrário, permanecia dúvida razoável), limitou-se a afirmar que o Estado deveria ter reunido mais elementos – sem esclarecer se, na prática, isso implicaria necessariamente resultado diverso.

Na sequência, passam-se em revista os acórdãos em que a corte superior expressamente rejeitou a aplicação da teoria, aprofundando o contraste entre a concepção racionalista e o emprego retórico do transplante em comento.

4.3. Casos em que rejeitada a aplicação da perda de uma chance probatória

Em contrapartida aos julgados em que a “perda de uma chance probatória” foi utilizada para decretar absolvições ou nulidades, há uma série de decisões em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afastou a aplicação da teoria, seja por questões processuais (como inovação recursal ou ausência de prévia discussão), seja por entendimentos mais alinhados à valoração racional das provas. A seguir, expõem-se os principais casos em que o tribunal rejeitou o transplante da teoria ao processo penal.

No AgRg no HC 707.068/RJ (19.04.2022, 6ª Turma), no AgRg no HC 857.722/SP (07.11.2023, 5ª Turma), no AgRg no HC 838.179/RJ (04.12.2023, 5ª Turma), no AgRg no HC 786.030/PR (20.05.2024, 5ª Turma) e no AgRg no HC 921.336/SP (16.10.2024, 5ª Turma), o tribunal rejeitou a teoria por não ter sido objeto de discussão na instância de origem ou por demandar revolvimento aprofundado do acervo fático-probatório, o que é vedado em sede de habeas corpus ou agravo regimental, sob pena de supressão de instância.

Já no AgRg no HC 773.506/SP (14.03.2023, 6ª Turma), a defesa suscitou a perda de uma chance probatória em decorrência de a acusação ter desistido de ouvir determinada testemunha, supostamente capaz de favorecer o réu. Contudo, o tribunal de origem (em revisão criminal) rejeitou a teoria, pois a própria defesa anuiu à desistência. O STJ confirmou esse entendimento, afastando a aplicação do instituto.

Diante dos casos anteriores em que a Corte admitiu a teoria por omissão estatal na produção de prova, seria questionável por que não seguir a mesma lógica aqui, dado que a desistência pode ter tanto impacto quanto a dificuldade de localizar testemunhas em situação de rua (1º Caso). Todavia, o STJ fundamentou pela inexistência de oposição defensiva, o que sugere ter havido uma espécie de “valoração racional” – ou ao menos de conformidade processual – para não presumir que a omissão prejudicou necessariamente o réu.

Por sua vez, o AgRg no AREsp 1.955.954/PR (18.10.2022, 6ª Turma) tratava de situação em que uma prova de defesa não foi produzida por aparente falha estatal. A Corte rejeitou aplicar a teoria por entender que o elemento probatório seria irrelevante aos fatos. Esse raciocínio sugere compatibilidade com a abordagem racionalista, pois houve exame da pertinência da lacuna probatória, concluindo-se pela inexistência de prejuízo efetivo.

No HC 908.010/SC (17.09.2024, 6ª Turma) o impetrante alegou ter sido privado de consultar um e-mail funcional, que poderia provar sua inocência. O STJ, porém, explicitou que a teoria da perda de uma chance probatória deve ser submetida a “análise meticulosa”, evitando uso abusivo para trancar ação penal. Concluiu que a defesa precisa demonstrar com clareza como a prova ausente poderia “impactar substancialmente o resultado do julgamento”. Assim, a Corte rejeitou a alegação, por não vislumbrar prejuízo concreto.

Embora admita a possibilidade de aplicação da teoria, o acórdão estabelece uma exigência epistêmica mínima: identificar que a prova não produzida teria real capacidade de influenciar o resultado. Isso afina o entendimento com o modelo racionalista, pois não basta invocar suposta omissão; faz-se necessária a demonstração de plausibilidade da prova em favor do réu.

O HC 861.572/RJ (05.11.2024, 5ª Turma) tratou de situação na qual a defesa arguia violação ao procedimento de reconhecimento previsto no art. 226 do CPP e invocava a perda de uma chance. O STJ rejeitou o pleito, pois havia outros meios de prova robustos, incluindo testemunhos e depoimentos da vítima, de modo que o conjunto probatório atingia o standard de condenação.

Este caso ilustra bem a lógica racionalista: embora se reconheça certa lacuna (falha no reconhecimento pessoal), tal falha não invalidou a suficiência probatória do restante do acervo. Assim, não caberia presumir que a prova ausente seria favorável à defesa, pois a correção epistêmica (valoração de todas as provas disponíveis) levou ao reconhecimento de culpa para além de dúvida razoável.

Esses julgados em que o STJ não aplicou a teoria da perda de uma chance revelam uma postura mais próxima da concepção racionalista do direito probatório, ao exigir: (i) Debate prévio e cabível: afastando a teoria quando não foi suscitada na instância de origem ou quando se caracterizaria inovação recursal (assegurando, assim, o devido contraditório e a não supressão de instância); (ii) Relevância e influência concreta da prova: rejeitando a aplicação quando a prova omitida se mostrasse irrelevante ou quando não houvesse demonstração de como ela influenciaria, de fato, o resultado do julgamento; (iii) Suficiência do acervo: indicando que, se outros elementos probatórios já satisfazem o standard de condenação, não cabe presumir que a lacuna seria sempre favorável ao réu.

Assim, quando a Corte pauta suas decisões no exame da pertinência e relevância da prova, bem como na suficiência do conjunto probatório, mostra-se alinhada à valoração racional. Já quando se limita a afirmar genericamente que qualquer omissão probatória enseja perda de uma chance – presumindo o benefício automático ao réu –, afasta-se desse modelo.

Considerações finais

A concepção racionalista da prova, observando uma relação teleológica entre prova e verdade, prega uma valoração metódica e objetiva dos elementos probatórios, orientada por um standard de suficiência que ofereça segurança jurídica aos sujeitos processuais e distribua adequadamente os riscos de erros. Nesse cenário, busca-se equilibrar o rigor epistêmico com a satisfação de outros fins institucionais do processo, almejando decisões quanto à culpa ou inocência que se apoiem em uma análise sólida e controlável.

O julgador desempenha papel fundamental para concretizar tal concepção: deve expor o raciocínio probatório empregado, não se confundindo com técnica meramente persuasiva que traduza convicções pessoais, mas sim com uma motivação robusta, pautada na demonstração de valor e peso de cada elemento de prova, considerada individualmente e em conjunto. A teoria da perda de uma chance probatória, ao contrário, tende a inibir tal esforço argumentativo, pois desloca a ênfase para a omissão na produção de provas, sem aferição acerca da razoabilidade ou suficiência do acervo já existente.

Uma coisa é avaliar a suficiência probatória para satisfazer o padrão de certeza exigido para um juízo de culpa; outra é imputar ao Estado (e, em última análise, à sociedade) a responsabilidade pela ausência de produção de determinada prova sem aferir se a lacuna foi razoável ou se remanesceu dúvida que inviabilizasse a condenação.

O próprio Jordi Ferrer-Beltrán (2024b), em crítica direta e específica à teoria de Rosa e Rudolfo, pontua que lacunas probatórias podem igualmente prejudicar a acusação, devendo-se analisar todo o conjunto de provas para verificar se, mesmo na ausência de determinadas diligências, se atingiu o nível de corroboração necessário para a condenação.

A ideia central subjacente à teoria da perda de uma chance no processo penal não considera de modo suficiente os critérios de valoração racional. Ao presumir que toda omissão probatória é necessariamente benéfica à defesa, incorre no risco de desconsiderar circunstâncias como limitações fáticas (dificuldade de localização de testemunhas, altos custos de certas perícias), exclusões legais de provas (ilícitas ou irrelevantes) e disponibilidade concreta de elementos capazes de assegurar a convicção judicial. Com isso, mitiga-se o dever de fundamentação, que é indispensável ao controle intersubjetivo e à própria legitimidade da decisão judicial.

Nesse ponto, conclui-se que a transposição da teoria da perda de uma chance, tomada de um contexto tipicamente civil (responsabilidade civil), mostra-se desnecessária e inadequada no âmbito do processo penal. Verificou-se, nos casos analisados, que a aplicação pelo STJ, além de não contribuir para a sedimentação da concepção racionalista da prova no direito brasileiro, reforça a ausência de fundamentação suficiente, pois afasta a discussão criteriosa sobre o estândar de suficiência e o peso do conjunto probatório. Quando isso ocorre, corre-se o risco de absolvições que ignorem elementos idôneos, do mesmo modo que se buscam evitar falsas condenações.

É fato que lacunas probatórias são frequentes no cenário processual penal brasileiro, mas considerá-las como sinônimo de absolvição automática destoa do esforço epistêmico que a doutrina e a jurisprudência buscam implementar para evitar erros – sejam falsas condenações ou falsas absolvições. Portanto, a necessidade de motivação das decisões judiciais exige a aferição do valor e do peso dos elementos de prova existentes, e a análise acerca da razoabilidade de omissões, não bastando invocar genericamente a teoria da perda de uma chance.

De fato, nos acórdãos em que o STJ rejeitou a aplicação dessa teoria, observou-se maior preocupação com a valoração racional das provas, verificando pertinência e relevância dos elementos ausentes. Por outro lado, nos casos em que a teoria foi acolhida, o tribunal restringiu-se a elencar as omissões investigativas, sem explicitar se a falta dessas provas inviabilizava, de fato, a formação de um juízo de certeza.

Espera-se que este estudo sirva para reavaliar criticamente a adoção inadvertida da teoria da perda de uma chance no processo penal, fomentando uma epistemologia jurídica mais consistente com a busca pela verdade possível e pela minimização de erros.

Tal postura permite o amadurecimento de um direito probatório comprometido com a consistência lógica e com a transparência decisória, [inserção] respeitando a conformação sistêmica e a segurança jurídica [/inserção] que se espera da justiça criminal.

A jurisprudência brasileira e a doutrina pátria já se inclinam à adoção do estândar de “além de qualquer dúvida razoável” para a sentença penal condenatória, compreendendo-o como um patamar rigoroso de probabilidade que, se não atingido, conduz à absolvição. Nesse quadro, a decisão judicial deve revelar claramente se a prova colhida satisfaz tal exigência, em lugar de se escorar em pressupostos genéricos de omissão estatal e perda de chance.

Em suma, promover uma valoração racional e motivada dos elementos de convicção é a via mais eficaz para assegurar justiça penal efetiva, respeitando o devido processo legal e priorizando a máxima redução de erros judiciais possíveis.

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