Douglas Fischer
O objetivo do presente texto é bem expresso: mostrar o gravíssimo equívoco técnico e teórico (contrariando os próprios precedentes jurisprudenciais do Plenário do STF) da decisão, dentre outras, na Reclamação nº 34.805-DF (2ª Turma, STF), na qual, por empate na votação, determinou-se a devolução de autos para a Justiça Eleitoral para processamento, mesmo diante do expresso arquivamento do crime eleitoral, assentando-se haver a prorrogação de competência para os eventuais delitos conexos, mesmo que inexistente o crime prevalente.
Anteriormente já escrevemos sobre o tema, mas o fizemos de forma mais restrita. Aqui:
O caso envolvia uma investigação que fora instaurada originariamente no STF a partir de dados de colaboração premiada (Inquérito nº 4.432) no bojo da Operação Lava Jato.
Como um dos investigados perdeu a prerrogativa de foro no STF (Petição nº 7.569), foi determinada a remessa dos autos à Justiça Eleitoral, por haver supostos indícios da prática (também) de crime eleitoral (até então a competência penal para os possíveis crimes eleitorais era do STF, sabido que o TSE não possui a competência criminal). Recebendo os autos, o Ministério Público Eleitoral determinou o arquivamento do inquérito quanto ao crime eleitoral (art. 350, Código Eleitoral), e, por não haver qualquer elemento (justa causa) para o seu prosseguimento, determinou a devolução dos autos para a Justiça Federal para a análise de processamento dos delitos remanescentes (decisão que, já adiantamos, é absolutamente técnica e correta).
Contra essa declinação, houve o ajuizamento da Reclamação nº 34.805-DF, negada monocraticamente pelo Relator, Ministro Edson Fachin, tendo-se interposto o agravo regimental, em que, como noticiado, houve empate na votação, pelo seu deferimento.
Os Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski proveram a reclamação – de forma inédita, smj – para determinar a devolução dos autos à Justiça Eleitoral, mesmo que arquivada a investigação quanto ao crime eleitoral, que atrairia a competência especializada (nos moldes do precedente tomado no Inquérito nº 4.435).
Segundo o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, „desrespeitou-se“ a decisão tomada pelo STF (daí a reclamação) ao determinar a remessa dos autos para a Justiça Eleitoral. Mais que isso, assentou que o MPE promoveu o arquivamento dos delitos previstos no art. 350 do CE imediatamente após o recebimento dos autos, “não tendo sequer empreendido qualquer diligência investigativa para apurar os indícios de tais crimes”.
Ora, o equívoco dos dois votos (prevalentes por “empate”) são manifestos em nosso sentir.
Em primeiro lugar, reiteramos que, no leading case, o STF não decidiu que competiria à Justiça Eleitoral necessariamente julgar os fatos, mas apreciar se haveria a conexão probatória ou se realizaria a cisão processual, que se pode realizar inclusive por razões de conveniência processual (art. 80, in fine, CPP). Nessa parte, reportamos o leitor ao texto publicado aqui
No caso em tela analisado, quem tinha titularidade da opinio delicti (Promotor Eleitoral) disse não haver justa causa para o crime eleitoral, de modo que deveria ser arquivada a apuração, o que foi acolhido pelo Poder Judiciário Eleitoral.
Aliás, fosse instaurada uma investigação formal sem nenhuma justa causa, certamente veríamos invocados vários precedentes, dentre outros dos próprios Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que (aí corretamente) determinam (quando não ex offício, violando o sistema acusatório) o arquivamento de feitos exatamente pela ausência de qualquer suporte fático das apurações (v.g […] 5. Conforme o art. 231, § 4º, “e”, do RISTF, o relator deve determinar o arquivamento do inquérito, quando verificar a ausência de indícios mínimos de autoria ou materialidade, nos casos em que forem descumpridos os prazos para a instrução do inquérito. 6. A declinação da competência em uma investigação fadada ao insucesso representaria apenas protelar o inevitável, violando o direito à duração razoável do processo e à dignidade da pessoa humana. 7. Ante o exposto, rejeito o pedido de declinação da competência e determino o arquivamento do inquérito, na forma do art. 231, § 4º, “e”, do Regimento Interno do STF – Inquérito nº 4.660/DF, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, por maioria, julgado em 23.10.2018, publicado no DJ em 11.12.2018).
Retornando, veja-se que a decisão de arquivamento realizada na Justiça Eleitoral quanto ao crime próprio é imutável (salvo se sobrevierem novos elementos de prova, art. 18, CPP).
Nesse caso, então, é tecnicamente incorreto haver a prorrogação da competência.
Atente-se que não houve instauração de ação penal por crimes eleitorais conexos com crimes comuns. Nessa hipótese (e somente nessa), acaso houvesse até a absolvição do crime eleitoral, aí sim haveria a perpetuação da jurisdição eleitoral.
A conclusão tomada pelos dois votos apresenta-se dissociada da melhor técnica e de todos os precedentes sobre o tema, notadamente porque não houve desrespeito ao que julgado no momento do declínio efetuado originariamente pelo STF.
Aliás, mantido o entendimento (isolado dessa posição) a consequência prática (aplicando-se a isonomia de tratamento) é que, exemplificativamente, se, doravante, o Tribunal do Júri “desclassificar” a conduta do delito doloso (disser que não há o crime de sua competência), deverá se prorrogar na competência para o próprio crime e inclusive os demais eventualmente conexos.
Alguém poderá dizer em objeção: mas o art. 81, parágrafo único, do CPP diz exatamente o contrário (Art. 81. Verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos. Parágrafo único. Reconhecida inicialmente ao júri a competência por conexão ou continência, o juiz, se vier a desclassificar a infração ou impronunciar ou absolver o acusado, de maneira que exclua a competência do júri, remeterá o processo ao juízo competente).
Exatamente isso: e esse fato apenas reforça o que estamos criticando, pois, na discussão ora posta, sequer houvera instauração de ação penal, e sim procedeu-se ao arquivamento do crime eleitoral.
Anotamos que esse manifesto erro técnico-jurídico não é isolado na compreensão do Ministro Gilmar Mendes, como se vê do seu voto (também envolvendo prerrogativa de foro e deslocamento de competência para a Justiça Eleitoral) no Agravo Regimental na Petição nº 8.134-DF, em que disse expressamente ser importante „destacar que o art. 81 do CPP reforça a regra da perpetuatio jurisdictionis, mesmo nos casos de declaração superveniente de incompetência”.
Visualizamos aí verdadeira contradiçãoao que ele mesmo decidiu no leading case do Quarto Agravo Regimental no Inquérito nº 4.435 (crime eleitorais conexos com crimes comuns), ao assentar que „eventual proposta pela aplicação da regra do art. 80 do CPP, no que toca à separação facultativa dos processos, não deve prosperar, uma vez que a referida norma DEVE SER APLICADA PELO JUIZ NATURAL DA CAUSA, ao avaliar a oportunidade e conveniência da separação dos feitos“.
De fato, e usando seus próprios argumentos (porém para demonstrar sua contradição), disse o Ministro Gilmar Mendes no leading case supramencionado que ” o STF não deve, por pressão da opinião pública, por questões ideológicas, contingenciais, ou por achar que eventualmente o legislador não fez a melhor escolha, alterar as regras legais e constitucionais que regem a matéria. Não há espaço para tanto e apenas mediante contorcionismos interpretativos é que se pode chegar a conclusão diversa. Tenho repetido a crítica feita pelo Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos, Antonin Scalia, sobre os excessos do ativismo judicial e abusos na interpretação constitucional que levam a qualquer resultado desejado pelo intérprete, assemelhando-se a um coringa para qualquer problema, fundamento para qualquer resposta preconcebida“ (fls. 750-751).
Na própria conclusão do seu voto no leading case, reconheceu sua Excelência (atuando então como “juízo prevalente”) que era possível a cisão processual, tanto que votou ” pela competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes eleitorais e conexos, nos termos do art. 78, IV, do CPP e art. 35, II, do CE, que foram recepcionados pela CF/88. Aplicando a referida regra ao caso em análise, voto: a) pela manutenção das investigações relativas aos fatos ocorridos em 2014 no STF; b) pelo declínio dos autos à Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro em relação aos fatos ocorridos em 2010 e 2012“.
Ou seja, no julgamento do precedente do Inquérito nº 4.435, o Ministro Gilmar Mendes deixou expresso que era possível a aplicação do art. 80 do CPP (separação processual) pelo juiz natural. Porém, ao julgar o caso da Reclamação 34.805-DF, deu “interpretação totalmente diversa”, dizendo que o juízo prevalente (Eleitoral) não poderia ter arquivado e determinado a devolução dos autos ao juízo comum.
Prosseguindo, há se reafirmar que se houvesse denúncia pelo crime eleitoral (bem assim para alguns dos crimes conexos), devidamente recebida (ação penal instaurada), a eventual absolvição do crime eleitoral aí sim (e somente aqui) importaria em prorrogação de competência da Justiça Eleitoral para os demais crimes conexos.
Então, se no caso houve houve expressa negativa da existência de justa causa, de modo que a “opinio delicti” foi “negativa”, pela ausência de dados acerca do crime eleitoral (que faria a possível atração), não é possível manter-se a perpetuatio jurisdictionis por crime prevalente que não mais se faz presente.
Atente-se que, mesmo que se dissesse haver o crime eleitoral, seria absolutamente legal e constitucional ao juízo prevalente determinar a cisão processual quanto aos demais crimes inclusive por questões de conveniência processual (art. 80, CPP) – vide voto do Ministro Gilmar Mendes acima destacado – , de modo que as conclusões estampadas nos votos prevalentes revelam-se integralmente equivocadas à luz do sistema jurídico, na medida em que não se pode obrigar o Juízo Eleitoral a processar outros crimes sobretudo se assentada a inexistência de base suficiente (justa causa) do próprio crime prevalente.
Revela-se absolutamente correta a recente decisão da 3ª Seção do STJ (reafirmando seus precedentes) no sentido de que a competência do Juízo Eleitoral é “para análise da existência ou não de conexão e eventual conveniência de reunião dos feitos, orientação essa que guarda perfeita harmonia com o entendimento firmado no âmbito da Suprema Corte”(Conflito de Competência nº 172.666/MG, STJ, 3ª Seção, unânime, DJ de 14.8.2020).
De modo mais objetivo até, esse entendimento foi antes assentado também pela 3ª Seção no CC nº 170.262-MG (DJ de 20.5.2020), em que, rechaçando a pretensão da defesa de que tudo fosse reunido na Justiça Eleitoral, decidiu que “a Justiça Eleitoral já reconheceu sua incompetência para conduzir o inquérito policial, quando afirmou que “este inquérito está arquivado na Justiça Eleitoral, a pedido do Ministério Público Eleitoral, que manifestou a sua ciência, tendo a decisão de arquivamento e baixa na distribuição sido publicada no PJE”. Assim, “se, na hipótese vertente, a Justiça Eleitoral não vislumbrou indícios suficientes de ilícito penal eleitoral ou conexão, não há como entender correta a interpretação competencial dada pelo Juízo de Direito oficiante”.
Desse modo, se “nem a Justiça Eleitoral, nem o Ministério Público Eleitoral, nem o Parquet estadual, nem mesmo o MPF (como fiscal da ordem jurídica) reconheceram indícios de crime eleitoral, capazes de deslocar a competência da apuração em tela”, a conclusão é evidente no sentido de que não se poderia manter o feito na Justiça Especializada.
Ainda em sentido manifestamente oposto do que decidido pela 2ª Turma (especificamente entendimentos apenas dos Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes), foi o entendimento (unânime) da 1ª Turma do STF. Nesse caso, houve determinação de desmembramento (por força do decidido na AP 937, pelo STF) e remessa dos autos para o primeiro grau no Distrito Federal. Dentre outras pretensões, externadas por meio de agravo regimental, expressamente a defesa postulou a remessa dos autos – se não reconhecida a conexão com outro feito em trâmite perante a 2ª Turma do STF – para a Justiça Eleitoral em Minas Gerais. Corretamente o aresto colegiado decidiu que, além de não haver nenhum elemento conectivo, a PGR já havia expressamente afastada a possibilidade (só „agora“ em tese “admitida” pelo requerente) de que teria havido “suposto” crime eleitoral. Assim, e se reportando a outro julgado, assentou que não caberia ao Judiciário afirmar existir crime eleitoral, pois “é da essência do sistema acusatório uma nítida separação das funções de acusar e julgar, voltada precipuamente à preservação da imparcialidade e do distanciamento do juiz em relação a atos pretéritos ao processo judicial contraditório. Nesse contexto, tenho por inviável ao Poder Judiciário auditar as hipóteses investigatórias e, em antecipação à própria acusação, proceder à glosa de linhas de investigação, em um juízo prematuro que, em última análise, influenciará na própria formação da opinio delicti”. Por essa razão, não existindo qualquer plausibilidade, mesmo em tese, da existência de qualquer crime eleitoral, não há se fazer o deslocamento, rechaçando-se a tese que, na verdade, pretendia “escolher” o juízo competente (Justiça Eleitoral) por um suposto crime que sequer existia no caso concreto (Agravo Regimental na Petição nº 8.860/DF, STF, Rel. Min. Rosa Weber, publicado no DJ em 22.9.2020).
Destacamos ainda que a impossibilidade de prorrogação de competência quando há aquivamento em relação ao crime que atrairia a competência do juízo prevalente (minudentemente analisada acima) vem sendo confirmada há muito pelo STJ, como se vê de dois arestos (e.g.)
PENAL E PROCESSUAL PENAL. INQUÉRITO. GOVERNADOR DE ESTADO. CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E LAVAGEM DE ATIVOS. PEDIDO DE ARQUIVAMENTO FORMULADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. AUSÊNCIA DE PROVAS CONTRA O DETENTOR DE PRERROGATIVA DE FORO. TITULAR DA AÇÃO PENAL PÚBLICA (“DOMINUS LITIS”). IRRECUSABILIDADE. PRECEDENTES DO STJ. ARQUIVAMENTO E DECLÍNIO DA COMPETÊNCIA DETERMINADOS.
1. Em hipóteses como a presente, na linha da orientação jurisprudencial firmada no Supremo Tribunal Federal e neste Tribunal Superior, não há como deixar de acolher o requerimento de arquivamento do inquérito formulado pelo Ministério Público Federal, assentado nos elementos fático-probatórios dos autos, afirmando que não justificam a instauração da persecução penal contra o investigado com prerrogativa de foro perante esta Corte Superior.
2. Arquivamento parcial acolhido, com determinação de encaminhamento dos autos ao Juízo competente para continuidade das investigações contra os coinvestigados. (QO no Inq. n. 1.041-DF, STJ, Corte Especial, unânime, Rel. Min, Luis Felipe Salomão, julgado em 5.10.2016, publicado no DJ em 26.10.2016)
PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. CRIMES DE CONTRABANDO/DESCAMINHO, CONTRA A RELAÇÃO DE CONSUMO E ADULTERAÇÃO DE SINAL IDENTIFICADOR DE VEÍCULO. ARQUIVAMENTO QUANTO AO CRIME DE COMPETÊNCIA FEDERAL. PRINCÍPIO DA PERPETUATIO JURISDICTIONIS. NÃO INCIDÊNCIA. PRECEDENTES DA TERCEIRA SEÇÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA JULGAR OS CRIMES REMANESCENTES.
Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da comarca de Buri/SP, o suscitante. (Conflito de Competência nº 123.687/SP, decisão monocrática, Relator Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 26.03.2013, publicado no DJ em 1º.04.2013)
Vamos dizer uma vez mais: no Inquérito n. 4435, por apertada maioria (6×5 votos), o Plenário decidiu que, havendo crimes eleitorais em tese conexos com crimes comuns, caberia a análise da conveniência ou não do processamento conjunto dos feitos à justiça especializada. Jamais se decidiu que competiria à Justiça Eleitoral julgar (embora a ementa mal redigida) todos os fatos, mormente quando reconhecesse inexistir o próprio crime prevalente (ou provas suficientes dele) ou então entendesse não conveniente manter a reunião processual.
Não esqueçamos ainda que é da compreensão do STF de que, a partir da decisão plenária (unânime) do STF no julgamento do Agravo Regimental no Inquérito n. 3.515, de 13.2.2014, os precedentes do Supremo Tribunal Federal são claros e expressos no sentido de que, havendo em tese conexão ou continência (notadamente subjetiva), a regra será a cisão processual (a ser realizada pelo “órgão jurisdicional prevalente”), mantendo-se a reunião processual apenas em situações absolutamente excepcionais. Calha referir, inclusive, que, em seu voto no Inquérito nº 4.435, justificando a cisão processual como regra, o Ministro Edson Fachin citou julgado da 1ª Turma no mesmo Inquérito 4.435 (antes da afetação ao Plenário da questão ora debatida), que, ao decidir o Terceiro Agravo Regimental relembrou esse entendimento no sentido de que “havendo detentores e não detentores de prerrogativa de foro na mesma investigação criminal, orienta a atual jurisprudência desta Suprema Corte no sentido de proceder ao desmembramento como regra, com a ressalva do coinvestigado relativamente ao qual imbricadas a tal ponto as condutas que inviabilizada a cisão”.
Havendo necessidade do tratamento equânime das modificações de competência em razão da prerrogativa de foro e da matéria, são bastante claros os precedentes do STF que o desmembramento deverá ser a regra, ressalvadas as hipóteses em que a separação possa causar prejuízo relevante à investigação.
Exatamente por isso que se assentou num caso concreto que “além de inexistir demonstração objetiva de prejuízo concreto e real na cisão do processo, a análise do titular da ação penal foi conclusiva no sentido da autonomia entre as condutas em tese praticadas pelo denunciado e os demais investigados[…]“(Terceiro Agravo Regimental no Inquérito nº 4.146-DF, STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 22.6.2016, publicado no DJ em 4.10.2016). Noutras palavras, mas assente também em precedentes do STF, “a cisão processual deve ser a regra, afastada apenas nos casos em que a imbricação entre os fatos revelar intensidade tamanha a acarretar prejuízo ao deslinde processual” (Agravo Regimental na Petição n. 6.212-DF, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 5.4.2018, publicado no DJ em 16.5.2018, com votos nessa mesma linha dos Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes).
Tudo isso reforça que, como regra, o Supremo Tribunal Federal tem – corretamente – assentado que a regra será a cisão processual, cabendo ao Ministério Público, como titular da ação penal, justificar, no primeiro momento possível e de forma detalhada, a necessidade e imprescindibilidade de reunião processual por conexão ou continência. Ausente demonstração dessa essencial reunião, há se aplicar a cisão pelo órgão prevalente, no caso ora debatido, a Justiça Eleitoral. Isso está expressamente consignado no precedente mencionado no início do presente tópico, na pena do Ministro Roberto Barroso (e acolhida pelos demais ministros): “proponho que se estabeleça o critério de que o desmembramento seja a regra geral, admitindo-se exceção nos casos em que os fatos relevantes estejam de tal forma relacionados que o julgamento em separado possa ocasionar prejuízo relevante à prestação jurisdicional. […] acrescento que o desmembramento, como regra, deve ser determinado na primeira oportunidade possível, tão logo se possa constatar a inexistência de potencial prejuízo relevante. […]”.
É imperioso insistir que a cisão processual é um pressuposto de maximização das denominadas obrigações processuais penais positivas, que se relacionam à necessidade de que as apurações e responsabilizações dos agentes criminosos (obrigação de meio) sejam tomadas de forma mais célere e eficiente.
A propósito, e exatamente por isso, a Corte Especial do STJ tem como pressuposto a necessidade de realizar “como regra geral, no concurso de agentes, o desmembramento de inquéritos ou de ações penais de competência originária, em relação aos réus não detentores de foro por prerrogativa de função. Tal assertiva busca, além da obediência ao mencionado princípio da “razoável duração do processo” (art. 5º, LXXVIII, CF/88), o respeito às normas constitucionais definidoras da competência ratione muneris, as quais são de direito estrito” (Agravo Regimental na Ação Penal n. 804-DF, STJ, Corte Especial, unânime, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 20.5.2015, publicado no DJ em 5.6.2015), bem assim que “em observância à razoável duração do processo, é recomendável que a Ação Penal seja desmembrada, preservando-se os princípios do juiz natural e da razoável duração do processo. Nesse sentido, colhe-se do STF: AP 336-AgR/TO, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 10/12/2004; Inquérito 1.690, Plenário, relatado pelo Ministro Carlos Velloso; AP 351/SC, Relator o Ministro Marco Aurélio, DJ de 17/9/2004; PET nº 2.020-QO/MG, Relator o Ministro Néri da Silveira, DJ de 31/8/2001. No mesmo sentido: STF, Inq 3.842 (Segunda Turma) e Inq 4.130 (Plenário)” (Questão de Ordem na APn n. 885 – DF, STJ, Corte Especial, unânime, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 15.8.2018, publicado no DJ em 28.8.2018).
Se a reunião processual não pode se dar por mera coveniência, a separação processual (cisão) maximiza o pressuposto anterior. Noutras palavras, a cisão processual – para além de ser a regra procedimental preponderante – é um fator que auxilia e muito a melhor apuração dos fatos, evitando-se congestionamento e tumulto processuais.
Exatamente por isso é que, como defendemos na companhia de Eugênio Pacelli há muito tempo, não se trata de uma mera faculdade discricionária. É que “toda a questão gira em torno da preocupação com a efetividade da função jurisdicional, no sentido da duração razoável do processo, eventualmente ameaçada, seja por força da aplicação de determinadas regras procedimentais, como a conexão, por exemplo, seja pelas próprias circunstâncias judiciais do caso concreto”. Desse modo, concluímos, “na conexão […] quando a separação de processos se revelar mais conveniente que a reunião deles, prevista nos casos do art. 76, CPP, há que se dar primazia à regra do art. 80, CPP” (Pacelli, Eugênio. Fischer, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. São Paulo: Gen/Atlas, 2020, 12ª edição, p.227).
Não por outras razões que, no controle da aplicação das leis, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que “nos casos em que a reunião dos processos, mesmo diante da configuração da conexão, se torne inconveniente, seja em razão da complexidade da ação penal, da pluralidade de réus ou de qualquer outro motivo relevante, o Juiz da instrução pode se valer da regra contida no artigo 80 do Código de Processo Penal, para manter a separação dos feitos” (Conflito de Competência nº 122.043-SP, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Campos Marques, julgado em 28.12.2012, publicado no DJ em 5.12.2012).
Noutras palavras, para além do entendimento do STF de que a regra deve ser a cisão processual, o tema é reforçado pela correta compreensão do disposto no art. 80 do CPP: deve-se conferir primazia à separação processual em face da reunião procedimental.
Portanto, e com todo respeito, é equivocado técnico e juridicamente (e violador também dos precedentes do Plenário do STF) sustentar que, arquivado por ausência de elementos caracterizadores de delito eleitoral, não poderia o Juízo Eleitoral (prevalente) restituir os autos às demais justiças competentes para os processos remanescentes.
Afirmamos enfaticamente: não só poderia como DEVERIA remeter, pois não possui mais competência para o processamento.
Essa posição foi tomada por apenas 2 dos 11 ministros do STF, porém ensejou decisões completamente contraditórias ao que decidiu (e decide há muito) o próprio Supremo Tribunal Federal e também há muito é a jurisprudência consolidada do STJ.
Referências bibliográficas
Fischer, Douglas. Prerrogativa de Foro e Competência Originária do Supremo Tribunal Federal: uma (re)leitura dos preceitos da Constituição Brasileira como forma de maximização do Princípio Republicano da Isonomia. In: Vilvana Damiani Zanellato. (Org.). A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – Temas Relevantes. 1ed.Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2014.
_____; Crimes Eleitorais em tese conexos com outros crimes – uma proposta de solução de questões processuais segundo a doutrina e a jurisprudência dos tribunais. Revista do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, 2020, n. 85, p. 101 e seguintes. ISSN 0101-6342.
_____; Marques, Claiton Renato Macedo. Considerações sobre a correta aplicação da Súmula 704 do STF. Interesse Público, v. 55, p. 141-156, 2009. Também em Revista da Ajuris, v. 80, 2008.
Gonçalves, Luiz Carlos dos Santos. Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
Pacelli, Eugênio. Fischer, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 12ª edição, 2020. São Paulo: Atlas/Gen.
Pereira, Frederico Valdez; Fischer, Douglas. As Obrigações Processuais Penais Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2 ed, 2019.