OS LIMITES DO USO DA PROVA ILÍCITA PRODUZIDA NO CURSO DA OPERAÇÃO SPOOFING e o EVENTUAL CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE
Tenho pautado alguns textos já frisando, desde o início, alguns parâmetros.
Vou novamente aqui fazê-lo: a análise será objetiva e baseada na lei e nos precedentes reiterados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, utilizando, ainda, fragmentos de doutrina escritos há muito tempo, a demonstrar, sem ressaibo de dúvidas, de que não traremos nenhuma “inovação”, senão apenas uma concatenação de vários aspectos que envolvem a denominada Operação Spoofing.
Vamos lá !
Primeira questão: prova ilícita pode ser utilizada em favor da defesa ?
Claro que sim.
Assim há muito sustentamos na companhia de Eugênio Pacelli em nossos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência desde sua primeira edição (agora em 2021 na 13ª ed, no prelo, item 157.4 – “O aproveitamento da prova ilícita para a defesa”), a “inadmissibilidade da prova ilícita, para além de configurar uma opção ética do Estado, a incentivar a observância das regras jurídicas, surge como um verdadeiro reforço na proteção de tais direitos, invalidando quaisquer iniciativas abusivas por parte de quem deve submeter-se, com maiores razões, ao devido processo legal. Com tais considerações, poucas, mas suficientes, percebe-se o inevitável paradoxo que resultaria da inadmissibilidade de uma prova ilícita que demonstrasse a inocência de alguém, indevidamente acusado. Recusar-se-ia a prova com o objetivo de melhor tutelar o Direito (razão da norma constitucional), à custa, porém, da condenação de quem, pela qualidade de convencimento da prova, se julga inocente. Equação final: condenação do inocente para proteger direitos outros, como se o primeiro fosse inferior. Valeria aqui a objeção kantiana, segundo a qual “o homem é um fim em si mesmo, não podendo ser instrumentalizado a serviço do bem comum”, não fosse a absoluta desnecessidade da aludida instrumentalização na hipótese de que se cuida, já que aberta a via para a condenação do verdadeiro culpado”. Assim, prosseguimos, “por quaisquer razões que se entender de direito, seja ao nível de uma principiologia explícita, como a da ampla defesa, seja por considerações em níveis mais abstratos, como a do Estado Democrático de Direto, não há como recusar a prova ilícita em favor do acusado”.
Esse também o entendimento (correto!, que fique bem claro) do Supremo Tribunal Federal.
Mas é preciso ter o devido cuidado.
“Prova” (elemento probatório) obtida ilicitamente para sua devida validação e valoração em prol da defesa deve trazer a segurança (prévia) mediante a aferição de sua integridade.
É dizer, não pode ser uma prova imprestável, se não for possível aferir a sua autenticidade (não alteração), mesmo que, do modo como obtida, seja tecnicamente considerada uma prova ilícita.
Para deixar bem claro que não estamos “inovando” na discussão, reportamos ao que já destacado na mesma obra retromencionada (item 157.2, ao tratarmos do “conceito de ilicitude da prova e sua inadmissibilidade”). Deixamos expresso que prova ilícita é aquela “obtida, produzida, introduzida ou valorada de modo contrário à determinada ou específica previsão legal. A ilicitude que acabamos de mencionar surgiria nas fases essenciais do aparecimento da prova no processo penal, a saber: (a) a da sua obtenção; (b) a da sua produção; (c) a da sua introdução no processo; e, por fim, (d) a da sua valoração pelo juiz da causa”.
Acentuamos ainda que “a idoneidade probatória ou de convencimento de uma prova nem sempre dependerá de sua validade. A prova poderá ser ilícita, ainda que comprovadamente eficaz quanto à reprodução de veracidade dos fatos (gravações ambientais etc.). A ilicitude da prova e sua inadmissibilidade decorrem de uma opção constitucional perfeitamente justificada em um contexto democrático de um Estado de Direito. A afirmação dos direitos fundamentais, característica essencial de tal modalidade política de Estado, exige a proibição de excesso, tanto na produção de leis quanto na sua aplicação. Não se pode buscar a verdade dos fatos a qualquer custo, até porque, diante da falibilidade e precariedade do conhecimento humano a que aqui já nos referimos, no final de tudo o que poderá restar será apenas o custo a ser pago pela violação dos direitos, quando da busca desenfreada e sem controle da prova de uma inatingível verdade real. Daí a inadmissibilidade da prova ilícita, à maneira das exclusionary rules do direito estadunidense”.
Não há dúvidas de que a atuação de hackers e as interceptações de telefones com mensagens são ilícitas.
E não analisaremos aqui nenhuma consideração de mérito sobre elas (conteúdo) – aliás, esse não é o objetivo do presente texto -, pois a) não sabemos a íntegra das mensagens, se foram editadas ou não; b) não sabemos se tiveram parte do seu conteúdo suprimido; e c) não há como se fazer aqui a devida valoração. Fato certo apenas é que são ilícitas.
Mas elas poderão sim ser admitidas em tese em favor das defesas, exatamente como decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Reclamação 43.007, desde que, dizemos nós em complemento, possam ser analisadas na íntegra, e não apenas em excertos sem qualquer fidedignidade. De fato, como dito no julgado do STF retromencionado, a “questão relativa à autenticidade ou ao valor probatório de elementos colhidos pela defesa é tema a ser resolvido no bojo dos processos nos quais venham a ser juntados, mas não nesta reclamação” (fl. 8 do voto-condutor).
De qualquer modo, é preciso deixar grifado que as valorações dos seus conteúdos deverão seguir com devido cuidado para que se tenha a certeza suficiente de que não foram alteradas ou adulteradas.
Noutras palavras, é preciso ter elementos seguros de que há uma “cadeia de custódia” de “tudo que foi obtido” por criminosos hackers para, só então, ser feita a devida valoração.
O que seria essa “cadeia de custódia” ?
Seria a obtenção original de todo material objeto (mesmo que obtido de forma ilícita) para que se possa, por procedimento pericial (e só depois disso, jamais antes), se “autenticar” a segurança dos conteúdos que serão valorados em prol da defesa.
Não podemos deixar de destacar que a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) veio disciplinar muitas questões relacionadas com a cadeia de custódia da prova, há muito debatida nos meios acadêmicos e jurisprudenciais.
Está expresso agora em lei (art. 158-A, CPP) que se considera “cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”.
Não é possível alongar detalhes de todo o procedimento, mas impõe-se dizer que, na linha do que defendemos na obra já mencionada (item 158.6), “para além da conceituação jurídica agora incorporada ao ordenamento, a doutrina e a jurisprudência há muito tratavam do que se denomina cadeia de custódia, que nada mais é do que a preservação e registro do caminho da prova, desde sua coleta até a apreciação pelo Poder Judiciário. A finalidade precípua é garantir a lisura e validade das provas que serão valoradas pelo julgador, maximizando-se o devido processo legal, sob duplo vetor: (a) tanto sob a ótica da necessária apuração dos fatos na sua maior inteireza (sendo decorrência das denominadas obrigações processuais penais positivas); (b) como também para permitir o exercício da ampla defesa e do contraditório a partir de provas e indícios que sejam considerados como válidos à luz do ordenamento jurídico”.
Por certo que a utilização de “excertos” não tem o condão de garantir utilidade dessas “provas”, pois não se tem garantia de fidedignidade sem a prévia e integral análise de todo material, que, repita-se, deve ser analisado mediante perícia.
Exatamente por isso é que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, recentemente, que “as informações trazidas pela Defesa, e relativas ao portal The Intercept, foram obtidas mediante meios ilícitos, em manifesta violação ao direito à privacidade e ao sigilo das comunicações telefônicas (art. 5º, incisos X e XII, da Constituição da República). Ademais, não foram submetidas a nenhuma perícia ou averiguação no curso de processo judicial, sob a égide do contraditório. Não demonstradas a sua idoneidade, integridade e veracidade, portanto, não se prestam a sustentar as conclusões que o Embargante busca conferir”. […] (Embargos Declaratórios no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.765.139/PR, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 1.9.2020, publicado no DJ em 15.9.2020), cujos (últimos) embargos de declaração foram rejeitados em 9.2.2021 (Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.765.139/PR, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 9.2.2021, publicado no DJ em 18.2.2021), determinando-se o a execução do julgado.
Além disso, não olvidemos de que o reconhecimento da validade de determinados elementos de prova e repercussões de nulidade processual em sede de habeas corpus é absolutamente limitado. Reportamos novamente aos nossos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (item 648.6.1): “Não há de se admitir prova ilícita no processo penal. Esta é uma premissa da qual partimos e, até o presente momento, é acolhida também pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. Estando relacionado ao princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º, LV, CF/88) e também mais direta e objetivamente à previsão explícita do inciso LVI do art. 5º da CF/88 (“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”), o habeas corpus tem sido utilizado de forma muito recorrente para a impugnação de provas produzidas no processo penal (em sede de investigação ou de ação penal mesmo) sob a pecha de serem ilícitas. Mas há de se recordar: não pode demandar dilação de prova, porque incompatível com o célere rito do writ. Noutras palavras, cabível é o writ para a discussão – e eventual anulação da investigação ou da ação penal – se a prova previamente constituída e juntada aos autos da impetração for apta a demonstrar, cabalmente, que procede a arguição da ilicitude aventada, sendo de destacar que são bem amplas as hipóteses em que se discute a ilicitude das provas”.
Nessa linha, também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Destacamos a objetividade da decisão no Agravo Regimental no RHC nº 125.787-RJ (2ª Turma, unânime, julgado em 23.6.2015), em que ficou consignado na ementa que “a jurisprudência do STF consolidou entendimento de que o trancamento do feito só é possível em situações excepcionais, desde que constatada, sem necessidade de dilação probatória, inequívoca improcedência do pedido, seja pela patente inocência do acusado, seja pela atipicidade ou extinção da punibilidade, hipóteses que não se verificam no caso”.
Em decisão mais recente, de 24.8.2020, também a 2ª Turma decidiu que a discussão acerca de suspeição de magistrado é incabível em sede de habeas corpus quando há necessidade de dilação probatória (Agravo Regimental no HC nº 175.924-PR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, unânime).
São muitos os precedentes: pela excepcionalidade e limites estreitos, caberá o habeas corpus desde que haja prova pré-constituída e segura de que, por intermédio de análise de todas as provas que embasem as alegações, seja possível averiguar de forma segura a procedência ou não da tese trazida pelas defesas.
Vamos esclarecer ainda, e por fim nesse tópico, que houve ”notícias” de que teriam sido “periciadas” algumas mensagens supostamente trocadas entre agentes públicos.
Nunca existiu perícia nesse sentido.
Perícia somente poderá ser feita se forem obtidas as íntegras de tudo que foi objeto de captação ilícita. Não se periciam excertos que não tragam a indicação da integridade da “prova” coletada.
Segunda questão. As provas obtidas ilicitamente (e as delas diretamente derivadas) podem ser utilizadas para qualquer tipo de responsabilização dos agentes públicos ?
Agora a resposta é negativa.
Está bem claro no Código de Processo Penal:
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
E a a jurisprudência consolidada há muito tempo no STF segue essa linha.
Destacamos inicialmente o MS nº 32.788-GO (Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 5.12.2017), em que houve anulação de investigação administrativa em detrimento do impetrante. Como dito no voto-condutor,
[…] “no presente caso, há razões peculiares que justificam avançar à análise do pedido autoral, notadamente em razão de a abertura do Processo Administrativo em questão ter-se baseado, exclusivamente, nas interceptações telefônicas declaradas ilegais por esta Segunda Turma, nos autos do RHC 135.683. […] Do mesmo modo, da Portaria originária de instauração do PAD, extrai-se que as provas colhidas contra o impetrante foram todas decorrentes do Processo Cautelar de Interceptação Telefônica 13279- 78.2011.4.01.3500. Consta do Anexo I da referida Portaria, em referência ao voto proferido pelo Corregedor Nacional de Justiça no âmbito da Reclamação Disciplinar, a transcrição de inúmeras conversas interceptadas pela Polícia Federal, das quais se extraíram os indícios de atuação ilícita imputados impetrante […] Assim, tendo a Segunda Turma reconhecido que as provas em questão foram produzidas em manifesta usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, “b”, necessária se faz a invalidação das interceptações telefônicas relacionadas às operações em apreço, bem como de todas as provas diretamente delas derivadas, nos termos do que dispõe o art. 5º, LVI, da Constituição: “são inadmissíveis no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Sublinhe-se que esse entendimento também é amparado por expressa disposição legal, porquanto o art. 30 da Lei 9.784/99, que disciplina o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, veda a admissão, em processo administrativo, de provas obtidas por meios ilícitos. Isso porque, no medir os poderes de investigação do Poder Público, é indispensável a preservação do equilíbrio entre o poder-dever de apuração de atos ilícitos e os direitos dos indivíduos, igualmente essenciais à estrutura constitucional do Regime Democrático de Direito. O âmbito de proteção da garantia quanto à inadmissibilidade da prova ilícita está em estreita conexão com outros direitos e garantias fundamentais, como o direito à intimidade e à privacidade (art. 5º, X), o direito à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI), o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (art. 5º, XII), o direito de ser processado pela autoridade competente (art.; 5º, LIII) e o direito ao sigilo profissional (CF, art. 5º, XIII e XIV, in fine), dentre outros.
A obtenção de provas sem a observância das garantias previstas na ordem constitucional ou em contrariedade ao disposto em normas de procedimento configurará afronta ao princípio do devido processo legal. Nesse sentido, cito trecho da ementa do julgamento proferido pela Segunda Turma desta Corte, no julgamento do HC 93.050, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 1º.8.2008 […]
Nos termos do entendimento firmado naquele precedente, a declaração de nulidade das interceptações telefônicas, no caso, só não geraria nulidade do Processo Administrativo Disciplinar, se acaso as provas colacionadas aos autos pudessem ser obtidas por fontes independentes e autônomas.
Ocorre, no entanto, que, conforme exaustivamente demonstrado, o substrato probatório que ampara o processo disciplinar em análise é exclusivamente subsidiado pelas interceptações telefônicas consideradas ilegais por este Supremo Tribunal Federal. Assim, tendo em vista que documento obtido ilicitamente não produz qualquer efeito no processo administrativo disciplinar e, inexistindo outros meios de prova destinados a subsidiar as condutas imputadas ao impetrante, faz-se mister reconhecer a existência de vício insanável a fundamentar a inevitável nulidade do Processo Administrativo Disciplinar ora em análise”.
Em julgado recente da 2ª Turma do STF (Agravo Regimental no HC nº 129.646, julgado em 3.10.2020, Rel. Ministro Celso de Mello, unânime, com votos também dos Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Edson Fachin), expressamente se reconheceu que:
[…] Impõe-se relembrar, bem por isso, até mesmo como fator de expressiva conquista (e preservação) dos direitos instituídos em favor daqueles que sofrem a ação persecutória do Estado, a inquestionável hostilidade do ordenamento constitucional brasileiro às provas ilegítimas e às provas ilícitas. A Constituição da República tornou inadmissíveis, no processo, as provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude. A norma inscrita no art. 5º, inciso LVI, da vigente Lei Fundamental consagrou entre nós o postulado de que a prova obtida por meios ilícitos deve ser repudiada – e repudiada sempre (MAURO CAPPELLETTI, “Efficacia di prove illegittimamente ammesse e comportamento della parte”, “in ” Rivista di Diritto Civile, p. 112, 1961; VICENZO VIGORITI, “Prove illecite e Costituzione”, “in” Rivista di Diritto Processuale, p. 64 e 70, 1968) – pelos juízes e Tribunais, “por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade (…)” (ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Novas Tendências do Direito Processual”, p. 62, 1990, Forense Universitária). A cláusula constitucional do “due process of law” – que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público – tem no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu tem o impostergável direito de não ser denunciado , de não ser julgado e de não ser condenado com apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos, pelo ordenamento jurídico, ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado. A absoluta invalidade da prova ilícita infirma-lhe, de modo radical, a eficácia demonstrativa dos fatos e eventos cuja realidade material ela pretende evidenciar. Trata-se de consequência que deriva, necessariamente , da garantia constitucional que tutela a situação jurídica dos acusados em juízo (notadamente em juízo penal) e que exclui , de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova – de qualquer prova – cuja ilicitude venha a ser reconhecida pelo Poder Judiciário.
Tenho sempre acentuado que a prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa explícita razão, de qualquer aptidão jurídico-material. A prova ilícita , qualificando-se como providência instrutória repelida pelo ordenamento constitucional, apresenta-se destituída de qualquer grau, por mínimo que seja, de eficácia jurídica. É por isso que venho enfatizando, neste Tribunal, que a “exclusionary rule” – considerada essencial, pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, na definição dos limites da atividade probatória desenvolvida pelo Estado – destina-se a proteger os réus, em sede processual penal, contra a ilegítima produção ou a ilegal colheita de prova incriminadora (Weeks v. United States, 232 U.S. 383, 1914 – Garrity v. New Jersey, 385 U.S. 493, 1967 – Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961 – Wong Sun v. United States, 371 U.S. 471, 1962, v.g.), impondo, em atenção ao princípio do “due process of law”, o banimento processual de quaisquer evidências que tenham sido ilicitamente coligidas pelo Poder Público. No contexto do sistema constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o sentido e o alcance do art. 5º, LVI, da Carta Política, tem repudiado quaisquer elementos de informação, desautorizando-lhes o valor probante, sempre que a obtenção dos dados probatórios resultar de transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo (RTJ 163/682 – RTJ 163/709). Foi por tal razão que esta Corte Suprema, no julgamento plenário da AP 307/DF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, desqualificou, por ilícita , prova penal cuja obtenção decorrera do desrespeito, por parte de autoridades públicas, da garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar (RTJ 162/4, item n. 1.1).
[…]
Cabe ter presente, também, por necessário, que o princípio da proporcionalidade, em sendo alegado pelo Poder Público, não pode converter-se em instrumento de frustração da norma constitucional que repudia a utilização, no processo, de provas obtidas por meios ilícitos .
[…]
A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo , em consequência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”.
De fato, como dito no mesmo julgado acima, reportando-se à doutrina da saudosa Professora Ada Pellegrini Grinover (“Liberdades Públicas e Processo Penal”, p. 151, itens ns. 7 e 8, 2ª ed., 1982, RT): “A inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta, sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros. Nesses casos, é irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público ou por particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido obtida com infringência aos princípios constitucionais que garantem os direitos da personalidade. Será também irrelevante indagar-se a respeito do momento em que a ilicitude se caracterizou (antes e fora do processo ou no curso do mesmo); será irrelevante indagar-se se o ato ilícito foi cumprido contra a parte ou contra terceiro, desde que tenha importado em violação a direitos fundamentais; e será, por fim, irrelevante indagar-se se o processo no qual se utilizaria prova ilícita deste jaez é de natureza penal ou civil”.
Paradigmática foi a decisão tomada no RE nº 251.445-GO (Rel. Ministro Celso de Mello, publicado no DJ em 3.8.2000):
[…] PROVA ILÍCITA. MATERIAL FOTOGRÁFICO QUE COMPROVARIA A PRÁTICA DELITUOSA (LEI Nº 8.069/90, ART. 241). FOTOS QUE FORAM FURTADAS DO CONSULTÓRIO PROFISSIONAL DO RÉU E QUE, ENTREGUES À POLÍCIA PELO AUTOR DO FURTO, FORAM UTILIZADAS CONTRA O ACUSADO, PARA INCRIMINÁ-LO. INADMISSIBILIDADE (CF, ART. 5º, LVI).
A cláusula do due processo f law encontra, no dogma da inadmissibilidade processual das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras, pois o réu tem o direito de não ser denunciado, de não ser processado e de não ser condenado com apoio em elementos probatórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites ético-jurídicos que restringem a atuação do Estado em sede de persecução penal. A prova ilícita – por qualificar-se como elemento inidôneo de informação – é repelida pelo ordenamento constitucional, apresentando-se destituída de qualquer grau de eficácia jurídica.
Qualifica-se como prova ilícita o material fotográfico, que, embora alegadamente comprobatório de prática delituosa, foi furtado do interior de um cofre existente em consultório odontológico pertencente ao réu, vindo a ser utilizado pelo Ministério Público contra o acusado, em sede de persecução penal, depois que o próprio autor do furto entregou à Polícia as fotos incriminadoras que havia subtraído. No contexto do regime constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, impõe-se repelir, por juridicamente ineficazes, quaisquer elementos de informação, sempre que a obtenção e/ou a produção dos dados probatórios resultarem de transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo, notadamente naquelas situações em que a ofensa atingir garantias e prerrogativas asseguradas pela Carta Política (RTJ 163/682 p RTJ 163/709), mesmo que se cuide de hipótese configuradora de ilicitude por derivação (RTJ 155/508), ou, ainda, que não se revele imputável aos agentes estatais o gesto de desrespeito no sistema normativo, vier ele a ser concretizado por ato de mero particular. […]
Essas “provas” angariadas no bojo da Operação Spoofing são, indiscutivelmente, imprestáveis e ilícitas para esse fim: investigar ou punir alguém, salvo outras provas de fontes absolutamente independentes.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é absolutamente tranquila e firme, há anos, sobre essa compreensão, cujo desconhecimento não pode eventualmente ser invocado.
Terceira questão. Em complemento, então, todos os elementos colhidos na denominada Operação Spoofing, mesmo que valorados eventualmente em prol da defesa (vide condições anteriores), jamais poderão ser utilizados, para qualquer fim, em detrimento de qualquer agente público para eventual responsabilização, qualquer que seja a sua natureza.
Nesse contexto não podemos deixar de alertar que, como se trata de entendimento absolutamente seguro (e correto) da Suprema Corte, quaisquer tentativas de apuração/responsabilização utilizando essas “provas” podem ter efeitos bastante sérios, inclusive penais.
É que, nos termos da Lei nº 13.869/2019 (“nova lei” que trata dos crimes de “abuso de autoridade”, aprovada pelo Congresso Nacional em 2019), tem-se tipificação específica, importando sobremaneira ao caso o disposto no parágrafo único do art. 25:
Art. 25. Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude.
A lei é clara: não havendo dúvidas (e não há!) de que as “provas” obtidas são ilícitas, a sua utilização – parcial ou integralmente – para abertura de qualquer procedimento investigatório ou ação de qualquer natureza poderá implicar cometimento de crime de abuso de autoridade de forma indelével.
Veja-se que o crime é formal: basta a instauração de qualquer procedimento com base nessas “provas”, sabidamente ilícitas, que estará perfectibilizado a conduta criminosa.
Importante registrar que a conclusão acima é unicamente técnica e acadêmica, equidistante e sem intenção, nem remota, de impingir nada a ninguém. Trata-se apenas de uma consideração jurídica de forma objetiva.
As limitações do uso das provas ilícitas em desfavor de investigados/processados é opção constitucional que não autoriza ponderação.
São as lições sólidas da Suprema Corte Brasileira desde muito até o presente momento. Como disse o Ministro Gilmar Mendes (MS nº 32.788-GO, acima), “no medir os poderes de investigação do Poder Público, é indispensável a preservação do equilíbrio entre o poder-dever de apuração de atos ilícitos e os direitos dos indivíduos, igualmente essenciais à estrutura constitucional do Regime Democrático de Direito”.
São algumas considerações, mesmo que rápidas, e sempre salvo melhor juízo.