Recentemente, foi noticiado que, por maioria de votos, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que, mesmo que extinta a punibilidade do agente processado por vários crimes, há se aplicar a perpetuatio jurisdictionis da justiça prevalente (caso presentes vários juízos competentes), competindo ao mesmo juízo originário o processamento de todos os feitos.
O acórdão do RHC 177.243 ainda não foi publicado (decisão de 29.6.2021), porém, para anular o caso, houve o “reconhecimento genérico” (como se aplicasse a todos os casos) o argumento de que a extinção da punibilidade do crime eleitoral manteria a competência da justiça especializada quanto aos demais.
Atenção: é preciso ter o devido cuidado com a premissa e com a aplicação da premissa.
São situações bem diversas e, acreditamos, os votos prevalentes não atentaram para isso.
Vamos compreender bem, para depois explicar onde esta o erro técnico do julgado retromencionado.
Conforme disposto no art. 81 do CPP, “verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos”, sendo que (parágrafo único) “reconhecida inicialmente ao júri a competência por conexão ou continência, o juiz, se vier a desclassificar a infração ou impronunciar ou absolver o acusado, de maneira que exclua a competência do júri, remeterá o processo ao juízo competente”.
Há muito explicamos em nossos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (2021, 13ª, edição, item 81.6), que em se tratando de absolvição e crimes conexos, “ao contrário da decisão de desclassificação, que, a rigor, nem de sentença se trataria, na medida em que não se julga o fato em sua inteireza – autoria, materialidade etc. –, a sentença de absolvição no processo que determinou o foro prevalecente não implicará modificação da competência. E isso nos parece de fácil compreensão. Ora, se a conexão e a continência determinam a reunião de processos para unidade de julgamento, ou seja, para que todos sejam ali julgados, a sentença de absolvição nada mais é que o reclamado julgamento do mérito. Com isso, deverá o juiz, por óbvio, prosseguir no julgamento dos demais processos, que ali se acham reunidos exatamente por aquela razão: unidade de julgamento de todos os fatos, com o mais amplo aproveitamento da instrução. O mesmo ocorrerá no Tribunal do Júri. Se a decisão do Júri for absolutória, deverá ele prosseguir no julgamento dos demais. Desclassificação e absolvição são decisões inteiramente diferentes. Na primeira, não se julga definitivamente o fato e nem o direito a ele aplicável; na segunda, sim. Desclassificar é modificar a possível consequência jurídica do crime; absolver é afastá-la”.
Atentem bem: no caso em tela, há o início de ação penal em que, posteriormente, houve declaração da extinção da punibilidade em relação ao crime que atraía a competência dos demais. Esse dado é relevante !
A seguir, no item 81.7 (“Absolvição sumária, extinção da punibilidade e conexão”), complementamos destacando que: “Hipótese mais complexa poderá ocorrer nas decisões de absolvição sumária, tal como previstas no art. 397, CPP, relativamente ao processo atraído pela conexão. Ali se prevê uma fase processual que autoriza o juiz a avançar sobre questões de mérito, quando possível e cabível a sua apreciação independentemente da instrução (provas). Como já assentamos, a reunião de processos conexos em um único Juízo tem por objetivo a unidade de julgamento. Ora, quando for possível a apreciação das questões previstas no art. 397, CPP (prescrição, atipicidade manifesta etc.) em um dos processos, deve o juiz fazê-lo naquela fase; quando se tratar de processo cuja competência determinara a prevalência de sua jurisdição (critérios de atração – art. 78, CPP – e Constituição da República), o juiz deverá determinar a separação dos demais, encaminhando-os ao juiz competente, com exclusão daquele então sentenciado, se não detiver ele próprio a competência. E a providência deve ser adotada quer se trate de incompetência absoluta, constitucional, quer se trate de incompetência relativa. Note-se, no ponto, que o princípio da identidade física do juiz somente imporá a perpetuatio jurisdicionis após a instrução do processo (art. 399, § 2º, CPP). De outro lado, quando se tratar de reunião de processos conexos com prevalência de foro em razão da Constituição da República, caso, por exemplo, de crimes da competência federal e estadual, o reconhecimento da extinção da punibilidade, a qualquer tempo, seja com fundamento no art. 61, CPP, seja com base no art. 397, IV, do mesmo Código, determinará a separação dos processos, a fim de se preservar, na maior medida possível, o princípio do juiz natural”.
Mesmo que se discorde de ambas considerações acima, é de se ver que o julgado da 2ª Turma do STF violou completamente não só uma decisão anterior do próprio plenário, mas também o fato (diverso das situações anteriores) que é fundamental para a devida distinção entre hipóteses: no caso em tela, o crime “prevalente” (o que seria da competência eleitoral) restou fulminado já na origem pela prescrição, sequer houve instauração de ação penal perante a Justiça especializada, com posterior declaração de extinção da punibilidade.
Expliquemos melhor os fatos.
Conforme já noticiamos aqui (https://temasjuridicospdf.com/nao-ha-nulidade-por-pura-criacao-mental-judicial/) ,ao julgar o RHC nº 177.243, por maioria, vencido o Ministro Edson Fachin, a 2ª Turma do STF, INOVANDO NA DISCUSSÃO, anulou o processo, fazendo aplicar – de forma retroativa – o precedente do Inquérito nº 4.435, esquecendo de atentar para detalhes fundamentais: o “precedente“ em nada servia para a decisão tomada.
Mais que isso, como demonstraremos, a decisão da 2ª Turma VIOLOU frontalmente decisão do PLENÁRIO sobre o mesmo feito anteriormente.
O caso tratava de uma ação penal proposta, originariamente, contra “X“ e outras 14 pessoas perante o STF em razão da prática EXCLUSIVA (atentem para isso: exclusiva) de peculato e lavagem de dinheiro.
NÃO HAVIA crime eleitoral e jamais haverá: em 4.11.2009, ao receber a denúncia, o STF (em COMPETÊNCIA PRÓPRIA) arquivou a discussão quanto ao suposto delito eleitoral por, já na época, estar prescrito.
Esse dado é relevantíssimo para ver a total discrepância do que decidido pelo órgão fracionário do STF. O Juiz Natural do caso era o STF, que prestou a jurisdição quanto ao crime eleitoral, descabendo qualquer discussão de remessa para a Justiça Eleitoral.
Os fatos são de 1998 (há 23 anos, aproximadamente).
A denúncia foi proposta perante o STF, porque “X“ tinha prerrogativa de foro, era deputado federal. Mas a ação penal foi cindida, deixando o feito no STF exclusivamente quanto ao detentor de “foro privilegiado“.
A denúncia foi recebida em 4.11.2009.
O réu foi interrogado em 2.10.2010.
Apresentadas as alegações finais pelo Ministério Público Federal no dia 6.2.2014, sobreveio notícia de que, no dia 19.2.2014, o réu “X” renunciou ao seu mandato de Deputado Federal, quando em curso prazo para suas alegações finais.
A finalidade foi bem clara (ao menos para nós): evitar que, exarada eventual condenação, tivesse que cumprir pena. As provas eram contundentes sobre as práticas imputadas (denúncia recebida) EXCLUSIVAS de crimes de peculato e lavagem de dinheiro. Repitamos, para que o leitor não esqueça: inexistia crime eleitoral, já arquivado pelo próprio STF em competência própria e constitucional!
O STF acabou aceitando a “renúncia” nesse caso.
Ulteriormente, em 3.5.2018, fixou entendimento expresso na Questão de Ordem na Ação Penal nº 937 (por conta exclusiva desse caso ora comentado) que:
a) “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo E relacionados às funções desempenhadas;
b) após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”.
Retomando o caso concreto (em que se decidiu pela perpetuatio jurisdictionis em relação ao crime originariamente prescrito, porém SEM DENÚNCIA ou AÇÃO penal instaurada quanto ao crime prevalente), ao julgar então o pleito de “renúncia“, o PLENÁRIO DO STF decidiu que os autos deveriam ser remetidos para a Justiça Estadual (leia bem: ESTADUAL !) em Minas Gerais.
Veja-se o que consta na certidão de julgamento: “O Tribunal, por maioria de votos, vencido o Presidente, Ministro Joaquim Barbosa, declinou de sua competência para o Juízo de Direito da Comarca de Belo Horizonte-MG e, por não haver sido alcançada a maioria absoluta, não acolheu a proposta do Relator quanto à definição, para o futuro, de critério objetivo referente à preservação da competência penal originária da Corte na hipótese de renúncia do réu ao mandato parlamentar. Ausentes, justificadamente, o Ministro Ricardo Lewandowski, participando do 98° Encontro do Colégio Permanente de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil, na cidade de Palmas, Tocantins, e, neste julgamento, a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 27.03.2014“.
Deixemos expresso (desculpem as insistências): o Plenário do STF disse que quem deveria julgar o caso, desde então, era a JUSTIÇA ESTADUAL EM MINAS GERAIS.
Nunca falou em Justiça Eleitoral (porque não havia crime eleitoral desde a origem) !
O réu foi condenado em primeiro grau em 2015.
Decisão mantida pelo TJMG em agosto de 2017.
Penas parcialmente reduzidas no STJ: de mais de 20 anos para 15 anos, 7 meses e 20 dias.
Como sobreveio uma nova interpretação do STF (a do tal Inquérito 4.435), a defesa sustentou (inovando na discussão até então): o processo deveria ir também para a Justiça Eleitoral.
Mas, desde a origem, não havia crime eleitoral (a insistência é dolosa, desculpem)!
Quem disse isso ?
O Plenário do STF em sua competência própria de julgador originário !
Ou seja, mesmo que se admitisse a argumentação do “precedente“ do Inquérito 4.435, ele SERIA INAPLICÁVEL AO CASO por INEXISTIR CRIME ELEITORAL e, sobretudo, porque o Juízo Natural da época (O Plenário do STF) disse que não havia como processar pelo crime e ele mesmo determinou a remessa dos autos (após a renúncia) à Justiça Estadual !
Respeitosamente, o equívoco é grave e não pode ter o condão de gerar precedente.
Aliás, em nossa compreensão, o caso é de claro cabimento de embargos de declaração para conferir efeitos modificativos!
Nesse sentido – de conferir efeitos infringentes diante de casos excepcionais (sem adentrar na discussão desse caso concreto) -, foi exatamente o que concluiu o Ministro Gilmar Mendes ao julgar e dar provimento a embargos para atribuir “efeitos infringentes e a integração da decisão recorrida, para rejeitar a denúncia oferecida, nos termos do art. 395, I e III, do CPP” (Quartos Embargos de Declaração no Inquérito nº 3.989/DF, STF, 2ª Turma, por maioria, vencido o Rel. Min. Edson Fachin e Min. Carmen Lúcia, Redator do acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 2.3.2021, publicado no DJ em 11.5.2021)
Concluímos, reafirmando:
- Por força do art. 81 do CPP, a sentença de absolvição no processo que determinou o foro prevalecente não implicará modificação da competência;
- quando se tratar de reunião de processos conexos com prevalência de foro em razão da Constituição da República (o caso em tela disso tratava), o reconhecimento da extinção da punibilidade, a qualquer tempo, seja com fundamento no art. 61, CPP, seja com base no art. 397, IV, do mesmo Código, determinará a separação dos processos, a fim de se preservar, na maior medida possível, o princípio do juiz natural”;
- mesmo que se discorde da conclusão anterior, o fato é que, no caso concreto decidido e objeto de análise aqui:
c.1) havia decisão anterior do Plenário do STF assentando que a competência NÃO era da Justiça eleitoral, e sim da Justiça estadual;
c.2) o caso tratava de uma situação em que, na origem, o delito eleitoral (que eventualmente poderia atrair a competência em relação a outros crimes) já estava prescrito desde a origem, de modo que não se pode falar em perpetuatio jurisdictionis se não há o crime supostamente prevalente.