Tenho-me ocupado nesse espaço ultimamente de responder a questionamentos que são feitos em razão dos posts que faço, na grande maioria, no instagram. Vamos realçar que lá é publicado tudo que entendo como relevante, concordando ou não com os julgados. Não há “direcionamento” sobre os temas.
Um deles é que o tema da “ponderação de prejuízo” não se aplicaria às “nulidades absolutas”, pois seria um pensamento importado do processo civil, incompatível com o processo penal, no qual há se maximizar a expressão (que prefiro chamar de “dogma”, venia concessa) de que “forma é garantia”.
Em primeiro lugar, temos que deixar claro que temos uma posição jurídica absolutamente clara no sentido de que as formas processuais existem para serem respeitadas. Jamais defenderíamos o desrespeito às regras processuais. A questão é saber se o desrespeito à forma implica, necessariamente, nulidade insanável.
Nossa resposta é negativa.
É preciso “pensar”, raciocinar, não apenas reproduzir dogmas. A instrumentalidade das formas não pode permitir que o pensamento seja “cartesiano” no sentido de que o mero desrespeito à forma de um ato processual implica, automaticamente, nulidade do processo (não podemos confundir nulidade do ato com nulidade do processo).
Tentamos explicar esse tema nos nossos Comentários ao CPP e sua jurisprudência (2002, 14ª ed.), em companhia do Professor Eugênio Pacelli. Lá dissemos de forma explícita (e pedimos autorização para reproduzir):
[…] 563.3. Um contributo para a modificação das premissas em matéria de nulidades no processo penal: A necessidade da ponderação. Neste tópico, releva destacar inicialmente peculiar questão ao se formular a seguinte indagação: será sempre caso de reconhecimento automático da nulidade absoluta se não realizado o ato de acordo com a Lei, gerando-se, na sequência, a nulidade do processo?
Não nos restam dúvidas que a nulidade absoluta pode repercutir sobre o ato processual, pois ele não terá como ser convalidado. Mas nos parece que não se pode fazer a afirmativa peremptória e cartesiana de que, necessariamente, sempre deverá haver a nulidade do processo. Quer-se dizer com isso que, mesmo em se tratando de nulidades absolutas, é fundamental fazer a análise de ponderação se, do modo como praticado o ato (contra a lei), haveria, efetivamente, prejuízo para o processo (para as partes). E, em caso positivo, quais atos subsequentes deveriam ser declarados nulos (art. 573, §§ 1º e 2º, CPP).
O tema é deveras polêmico, sem dúvidas, mas é preciso assumir posição – sempre prudente, claro – de que o processo é regulado pela instrumentalidade das formas. Assim, se o ato for nulo – embora plenamente explicável o equívoco que o gerou – há de se ponderar diante do caso concreto se é hipótese de declaração de nulidade dos atos subsequentes ou não.
De outro modo: temos claro posicionamento no sentido de que nem toda nulidade (absoluta ou relativa) do ato processual deverá implicar nulidade do processo. Visualizamos uma teoria de nulidades que deve estar preocupada não com a natureza do vício, mas dos efeitos que são gerados sobre o processo, e, nesse aspecto, se há violação da paridade de armas, causando-se prejuízo para alguma das partes.
Exatamente por isso, fazemos loas às excelentes considerações de Antonio do Passo Cabral (Nulidades no processo moderno, Forense, 2009), em que, com extrema habilidade e profunda pesquisa, demonstra que a importação de conceitos de nulidades do processo civil para o processo penal (que efetivamente ocorreu) tem gerado situações de perplexidade especialmente no âmbito criminal. Mais: aponta o ilustre autor que, no Brasil, há um “fetiche da formalidade” (Op. cit., p. 13). E há mesmo! Cultua-se o que denominamos de formalidade do instrumento, e não instrumentalidade da forma (embora a premissa que utilize para seu trabalho seja uma discussão pouco diversa da aferição de prejuízo).
Ao prosseguir, aprofunda a discussão para trazer dado extremamente relevante às nossas ponderações e pouco considerado quando se analisam as nulidades (sob o aspecto do processo geral, não só no âmbito penal). A respeito de posicionamentos no sentido de que as nulidades absolutas poderiam ser declaradas de ofício pelo juiz e as relativas não, assenta que “essas afirmações, encontradas em vários países, são fruto sobretudo da influência da doutrina italiana, que comumente diferencia as nulidades absolutas e relativas pela possibilidade de conhecimento de ofício ou necessidade de reconhecimento”. Defende (com razão, para nós) ser “problemático fulcrar na ordem pública ou no interesse público o traço distintivo da nulidade absoluta. Trata-se de conceitos fluidos, de significação imprecisa, ensejando decisões subjetivas ou com alto grau de arbitrariedade. Curiosamente, grande parte da doutrina brasileira aplaudiu a formulação de Galeno Lacerda, p. ex., ao diferenciar, com base no interesse público estatal, as nulidades absolutas ou relativas” (Op. cit., p. 88).
Já ficou claro que defendemos abertamente (malgrado cientes de que, ao menos por ora, é posição minoritária explícita na doutrina e na jurisprudência no âmbito processual penal) que, em tema de nulidades, há de se fazer a ponderação diante de todos os princípios orientadores do tema (especialmente a instrumentalidade das formas, o prejuízo, o interesse e a causalidade). Não negamos que há situações em que a nulidade do ato é evidente. Mas não pela nulidade em si (desrespeito à forma), mas sim pelo prejuízo efetivo que causa a uma das partes (mormente à defesa), ou seja, como dito anteriormente, pelos efeitos que são gerados sobre o processo.
Com efeito, se o processo é dinâmico (como deve ser!), fundamental se afastar do abstracionismo generalista e, a partir de algumas premissas, trabalhar com questões fáticas para (tentar) solucionar os problemas naturais do processo penal.
Na matéria em voga, não há tratamento uniforme, notadamente pela jurisprudência. A ausência de coerência científica ou lógica em matérias de nulidades no processo penal brasileiro é algo ímpar, gerando situações verdadeiramente paradoxais, como adiante se verá.
Portanto, crê-se que, também em sede de nulidades absolutas, dependendo do caso, se for possível realizar novamente (outro) ato e não houver prejuízo (especialmente) ao réu, não há de se declarar a nulidade do processo. No máximo, há de se declarar a nulidade apenas do ato, que, repise-se, não admite convalidação. E se houver nulidade do processo, que sejam mantidos hígidos ao máximo os demais atos, respeitando-se, na máxima proporção, a causalidade (art. 573, CPP).
Atente-se: não se pode confundir a nulidade do ATO processual com a nulidade DO PROCESSO. Nem sempre há essa “relação automatizada” (salvo se invocado um “dogma”, que, como se sabe, vale por sua repetição, não por sua essência racional).
Desse modo, um ATO (processual) pode ser absolutamente nulo (não tem como ser convalidado), mas mesmo assim não se declara a nulidade do PROCESSO.
A razão ?
A ausência da forma (que deveria ser respeitada, mas por uma circunstância aleatória não foi) não prejudicou a essência, que é a proteção do direito fundamental.
Exatamente por essa razão que encontramos na jurisprudência o expresso (e correto, para nós) posicionamento de que a “tipicidade dos atos processuais funciona somente como instrumento para a correta aplicação do direito (por isso falamos em instrumentalidade das formas !). Desse modo, o eventual (embora não desejado) desrespeito às formalidades prescritas em lei apenas deverá acarretar a invalidação do ato processual quando a finalidade para a qual foi instituída a forma for comprometida pelo vício. Somente a atipicidade relevante, bastante a evidenciar dano concreto às partes, autoriza o reconhecimento do vício”. […] (Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1.977.869-SP, STJ, 5ª Turma, julgado em 14.6.2022, publicado no DJ em 20.6.2022)
Nessa linha, também, julgado do STJ, que reconheceu que “a disciplina que rege as nulidades no processo penal leva em consideração, em primeiro lugar, a estrita observância das garantias constitucionais, sem tolerar arbitrariedades ou excessos que desequilibrem a dialética processual em prejuízo do acusado. O reconhecimento da nulidade processual, contudo, depende da demonstração de prejuízo, nos termos do art. 563 do Código de Processo Penal […] ”(Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 750.873–SP, STJ, 5ª Turma, julgado em 13.9.2022, publicado no DJ em 19.9.2022)
Em complemento tem-se essa referência, no sentido de que “representam as formas processuais apenas instrumentos para a correta aplicação do direito. Nesses termos, a desobediência às formas estabelecidas pelo legislador somente conduzirá à declaração de nulidade do ato quando a finalidade buscada pela norma for comprometida pelo vício. Assim, desarrazoado declarar a nulidade assinalada na inicial, desqualificando os exames técnicos regularmente produzidos e as demais provas coletadas durante a instrução, porquanto efetivamente cumpridos os objetivos da lei (HC n. 278.930/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Quinta Turma, julgado em 26/11/2013, DJe 4/12/2013). […] (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 2.121.338-MG, STJ, 5ª Turma, julgado em 6.9.2022, publicado no DJ em 13.9.2022)
Esses são os motivos jurídicos pelos quais o STF há muito assenta que não é a natureza da nulidade do ATO (absoluta ou relativa, como se queira nominar) que determina a imprestabilidade do feito, mas o quanto interferiu na proteção efetiva que se buscava almejar pela previsão legal. Se a finalidade foi atingida de outra forma (mesmo que desrespeitada a forma, vamos insistir nisso), não há nulidade do PROCESSO: ” […] o sistema de nulidades previsto no Código de Processo Penal […] orienta que, inexistindo prejuízo, não se proclama a nulidade do ato processual. Esta Suprema Corte tem, reiteradamente, se posicionado no sentido de que se faz necessária a demonstração de efetivo prejuízo para a decretação de nulidade, seja ela absoluta ou relativa (HC 107.769/PR, Rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJe 28.11.2011), hipótese não ocorrida no presente feito. […] (Agravo Regimental no HC nº 125.215–SP, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 1.6.2018, publicado no DJ em 13.6.2018)
Não se trata de “utilitarismo” processual, mas visualizar que nem sempre o desrespeito à forma gera a impossibilidade do exercício do essencial, que, na discussão em tela, é a defesa.
Não queremos “convencer” ninguém de nada.
Apenas queremos “instigar” a pensar, raciocinar …
Diante de “dogmas”, somos estimulados a “não pensar”, mas apenas repetir, repetir, repetir, como se isso fosse suficiente para “compreender”.
O propósito é apenas esse. Cada um tire suas conclusões, concordando ou não. Mais que dogmas repetidos, jamais se pode deixar de pensar e tentar compreender sistemicamente o Direito, especialmente o processo penal, que é instrumento, não um fim em si mesmo.
E o que dito aqui não tem uma vírgula sequer de pretensão a “desproteger direitos fundamentais individuais de primeira geração”, como já vimos alguns tentar desvirtuar para meramente “desconstruir”.
Bons estudos e, sempre, salvo melhor juízo.
Para ter acesso ao texto na íntegra, clique aqui (formato pdf)
Professor,
No caso da abordagem pessoal, denúncia anônima venda de entorpecentes, polícia vai ao local e avista um conhecido que já cumpriu pena, então o aborda. A abordagem não foi ilícita? Nulidade do ato, então a prova que pode ter sido encontrada ali seria ilícita?
Aí a dúvida nulidade processual ou ato nulo ?
Olá Debora, obrigado pela sua pergunta. Veja o que está no texto: se da nulidade do ATO houver ofensa à GARANTIA em si, essa nulidade pode (a depender do caso) atingir o processo. Quando se diz que a prova produzida é nula (o ato é nulo nesse caso), tudo que for dela decorrente estará nulo (teoria dos frutos da árvore envenenada). Então aí temos a hipótese que, se você considerar que a prova do jeito que for produzida é ilícita, tudo o mais será nulo, salvo as provas independentes. Então não poderei aproveitar essas provas. Isso deixo expresso faz anos. Mas nem sempre a nulidade de um ato gera a nulidade do processo, ao contrário do que se diz nesse “dogma”. Salvo melhor juízo, claro.