Douglas Fischer
Mestre em Instituições de Direito e do Estado pela PUCRS
Procurador Regional da República na 4ª Região
Lattes.cnpq.br/5240252425788419
Publicado no site em 4.3.2025
www.temasjuridicospdf.com
1. Introdução.2. Modelo ou sistema acusatório: parâmetros. 3. O Ministério Público como uma instituição de garantias. 4. O art. 385 do CPP e sua “melhor” interpretação. 5. Da teoria à realidade dos fatos. 6. Considerações finais.
1. Introdução. O presente texto já foi publicado anteriormente, mas estamos atualizando-o e tem por finalidade analisar se o disposto no art. 385 do CPP1 se conforma ou viola o denominado “modelo acusatório”. Noutras palavras, impende saber se, notadamente a partir da Constituição Federal de 1988, a retromencionada regra se amoldaria aos princípios centrais que regulam um modelo acusatório e aos princípios garantistas.
2. Modelo ou sistema acusatório: parâmetros.
É muito comum sobretudo em doutrina lermos advertências no sentido de que determinado dispositivo “escolhido” por quem o analisa não se amolda a um “sistema acusatório”. Sempre que nos deparamos diante de afirmativas dessa natureza recordamos a necessidade de se saber a premissa que é adotada: o que seria um sistema (ou modelo, como preferimos) acusatório ?
Encontramos muitas referências acerca de uma tripartição de sistemas: a) inquisitivo; b) misto; e c) acusatório.
O sistema inquisitivo se caracterizaria por haver concentração numa mesma pessoa das funções de acusação e julgamento. Nas palavras de Mauro Fonseca Andrade, em sua obra Sistemas Processuais Penais e seus Princípios Reitores2, o sistema inquisitivo está formado por dois elementos fixos, que são o princípio inquisitivo e a circunstância de que a abertura do processo poderá ocorrer tanto mediante o oferecimento de uma acusação como de ofício. Esse sistema surgiu como forma de salvaguardar os interesses de persecução do poder central. Sua prevalência ocorreu nas Idades Média (especialmente) e Moderna, cujo início de sua derrocada se deu exatamente com a Revolução Francesa.
Já no âmbito do sistema misto, o processo (lato sensu) é dividido em duas fases. Na primeira, preambular, normalmente é conferida ao que se denomina de juizado de instrução (em franco desuso, diga-se, sendo que está sendo excluído dos sistemas Francês e Espanhol, por exemplo, que muitas vezes são “invocados” como paradigmas3). Na segunda, há o desenvolvimento propriamente dito do processo. A questão de relevo em relação ao sistema misto é – exatamente pelo termo que o denomina – que adota um elemento fixo do sistema acusatório e outro do sistema inquisitivo.
E o sistema acusatório funda-se na existência de vários sujeitos processuais, tendo eles funções distintas de acusação, defesa e julgamento, sendo certo que a função investigativa só não pode ser atribuída ao julgador.
É dizer: a função de apuração preliminar fica a cargo de um órgão distinto do julgador.
Um destaque de extrema relevância, pouco trazida pela grande maioria dos doutrinadores e que Mauro bem pontua é que um sistema acusatório se caracteriza por possuir dois elementos “fixos”: a) o princípio acusatório; b) somente o oferecimento da acusação pelo titular do direito é que permite seu processamento.
Significa que os demais elementos invocados pela doutrina de forma mais “generalista” (como oralidade, contraditório, publicidade e igualdade de armas), embora extremamente relevantes (e por nós defendido também), são variáveis desse sistema, de acordo com o ordenamento de cada país.
Veja-se que, até a entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, era possível ao juiz brasileiro decretar a prisão preventiva de ofício, sem qualquer provocação especialmente do Ministério Público. O modelo adotado no Brasil pós Constituição de 1988 indubitavelmente é acusatório (sim, há muitas reformas infraconstitucionais que precisam ser implementadas, sabemos disso também). Mas a Suprema Corte e a maioria das doutrinas comprometidas com divulgar seriamente o que é sistema ou modelo acusatório não aceitava que essa permissão violasse o modelo acusatório. A razão? Tratava-se de um elemento variável, não fixo. Agora esse elemento foi alterado, mas essa proibição não significa dizer que, a partir de agora, temos um modelo “mais acusatório”. Não, não é assim.
Registramos aqui crermos que a ideia é boa nessa alteração legislativa (com a ressalva particular de entendermos que há determinamos casos que a atuação de ofício seria – e é – relevante, sempre excepcionalmente claro, e ainda que, diferentemente da preventiva autônoma, pode o juiz converter de ofício o flagrante em preventiva).
Pedimos vênia para reportar ao que defendemos na companhia de Eugênio Pacelli acerca do tema4:
As cautelares pessoais e o sistema acusatório:A iniciativa do juiz. Já tivemos oportunidade de cuidar dos sistemas processuais, e, em maiores detalhes, do modelo acusatório. De tudo o quanto dissemos, repise-se apenas que a Constituição da República não demarca de modo cabal e definitivo os contornos de nosso sistema acusatório. A separação completa entre as funções do Ministério Público e da jurisdição criminal, tal como ali se vê, não nos parece suficiente para determinar o tipo de modelo acusatório adotado.
Sabe-se que na maioria dos ordenamentos europeus e latino-americanos de corte acusatório reserva-se certa margem de iniciativa probatória ao juiz. Até mesmo Portugal, país com o qual guardamos maior afinidade jurídica e cuja Constituição afirma o princípio acusatório no processo penal, contempla a possibilidade de o juiz ou o tribunal determinarem a produção de provas de ofício.
Por isso, o que podemos afirmar sem qualquer margem de erro é que não se pode atribuir qualquer competência jurisdicional para a atuação de ofício na fase de investigação, seja em relação à produção de prova, seja em relação à imposição de restrições de direitos em matéria cautelar. Da investigação cuidam a polícia e o Ministério Público, órgãos com atribuições tipicamente persecutórias; nessa fase, o juiz será sempre um juiz de garantias (tutela das liberdades públicas).
Nesse passo, o art. 282, § 2º, CPP, assegura que a imposição das cautelares diversas da prisão na fase de investigação dependerá de requerimento do Ministério Público ou de representação da autoridade policial. Na fase de processo, contudo, ele podia fazê-lo de ofício, sem provocação do parquet.
Entretanto, a Lei nº 13.964/2019 expressamente alterou o § 2º, vedando a possibilidade de o juiz decretar autonomamente a prisão preventiva de ofício, inclusive no bojo de ação penal. Trata-se de uma opção legislativa, sem dúvida, cuja constitucionalidade não se pode questionar. Ainda assim, cremos que não se afigura como a melhor solução, na medida em que há situações (sempre excepcionais, é verdade) nas quais a imposição de ofício de medidas cautelares (inclusive da preventiva) é essencial exatamente para a garantia e preservação dos postulados do art. 312 do CPP (desde que presente a devida fundamentação). Em nossa compreensão, a previsão então existente não colidia com o sistema acusatório, sendo que a novel limitação poderá causar situações de desequilíbrio quando necessária a imposição de medida cautelar urgente sem que se tenha, de pronto, um possível e prévio requerimento das partes (Ministério Público ou querelante, conforme o caso).
Ademais, não há como negar que o juiz deve velar pelo regular andamento do processo, o que inclui a aplicação da lei penal – que, como se sabe, é um dos fundamentos para a decretação da prisão preventiva. Também a garantia da ordem pública nos parecia um fundamento suficiente para autorizar, em situações excepcionais, que o juiz decretasse a prisão preventiva de ofício.
No entanto, como à prisão em flagrante se seguirá a audiência de custódia, sob pena de relaxamento da prisão, o Ministério Público sempre estará presente ao ato e deverá se manifestar sobre a decretação ou não da preventiva.
Da mesma forma, também é permitido que o juiz – de ofício! – em desaparecendo os motivos da decretação, revogue a preventiva (ou as medidas cautelares impostas) ou a substitua por outra cautelar menos gravosa, segundo a lógica do art. 282, § 5º, CPP. Curiosamente, é permitido que o magistrado volte a decretar de ofício a custódia preventiva (ou volte a impor medidas cautelares), se sobrevierem razões que a justifiquem (art. 316 e art. 282, § 5º).
Vamos recordar ainda que, ao tratar daquilo que denominou de Sistema Garantista – SG, Luigi Ferrajoli elencou que os seus pilares estão fundados em dez princípios fundamentais (que se desdobram em 45 teoremas) que, ordenados, conectados e harmonizados sistemicamente5, determinam as “regras do jogo fundamental” de que se incumbe o Direito Penal e também o Direito Processual Penal. São eles: 1) Princípio da Retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) Princípio da Legalidade; 3) Princípio da Necessidade ou da economia do Direito Penal; 4) Princípio da Lesividade ou da ofensividade do evento; 5) Princípio da Materialidade ou da exterioridade da ação; 6) Princípio da Culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) Princípio da Jurisdicionariedade; 8) Princípio Acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) Princípio do Ônus da prova; 10) Princípio do Contraditório e da ampla defesa.
Interessa ao caso aqui sobretudo os sétimo e oitavo princípios: da jurisdicionariedade e o acusatório ou separação entre o juiz e acusação. Mas aí vamos assentar que essa separação não é afastar o juiz em qualquer situação de tomar as rédeas do processo, mas sim adotar como premissas a essencialidade dos dois primados antes referidos: separação entre função de acusar e julgar, impedindo o início da persecução penal sem iniciativa do titular do jus puniendi (esse detalhe será relevante para adiante compreender algumas outras questões). Quem dirá o direito, com palavra final e devida fundamentação, é só o juiz !
Assim, vincular o juiz a uma manifestação do Ministério Público é retirar a essência do que são suas funções: julgar, dizendo o direito. Veja-se que tal premissa também reforça a ideia de não termos arbitrariedades no processo que possam ser cometidas pelo Ministério Público, pois seus atos deverão ser sempre passíveis de sindicabilidade no mérito pelo Poder Judiciário. O Juiz, já o disse a Corte IDH, não tem o compromisso exclusivamente de garantir a observância dos direitos de defesa no processo, mas também atentar para que se garanta à vítima do crime igual tratamento e que haja uma resposta estatal dentro de um prazo razoável (vide Caso Myrna Mack Chang vs Guatemala).
Igualmente não concordamos com posicionamentos no sentido de que, com pedido de absolvição feito pelo parquet, estaria presente uma hipótese de “perda de objeto” ou desistência da ação penal, como se vê em alguns posicionamentos (alguns autores, aliás, criticam a transposição dos conceitos de processo civil para o processo penal, mas aqui invocam regras de teoria geral do processo, em nítida situação de “oportunismo doutrinário”).
Não se pode esquecer que o objeto no processo penal é o “fato” a ser apurado mediante o devido processo legal e as provas angariadas no curso processual.
A propósito, veja-se o que diz Ferrajoli 6:
“Estricta legalidad y estricta jurisdiccionalidad resultan así mediadas y conectadas, la primera como presupuesto de la segunda, por el principio cognoscitivista de la significación normativa y de la certeza probatoria, en el sentido aclarado en capítulo precedente de que el juez comprueba o prueba como verdadero (que se há cometido un delito) sólo (si el hecho comprobado o probado corresponde a) lo que está taxativamente denotado por la ley como delito).”
Insistimos então: deixar ao Ministério Público a “decisão final e vinculante” – insindicável e incontestável – do que está “provado” ou “não provado”, sem qualquer “controle” jurisdicional, significa desconsiderar por completo um dos pilares essenciais do “sistema garantista”, que é o da jurisdicionalidade, pois, repetimos, compete ao juiz, com exclusividade (pelo modelo acusatório), decidir se o fato está comprovado ou não (ou então se há ou não elementos para prosseguir eventual ação penal).
Dentro da premissa de um modelo democrático é fundamental compreender as funções essenciais do Ministério Público, notadamente a partir dos compromissos convencionais e constitucionais.
3. O Ministério Público como uma instituição de garantias.
Repristinamos aqui algumas considerações que há muito entendemos como pertinentes, tanto que incluídas em várias manifestações e escritas já divulgadas. Com efeito, e seguindo os ensinamentos de Luigi Ferrajoli, partimos também da premissa de que o Ministério Público é uma instituição de garantias, circunstância que deve ser norteadora de seu modo de atuação.
Com maestria, o professor italiano é incisivo em um dos seus textos, destacando que:
[…] E un pubblico ministero deve essere in grado di svolgere e concludere le proprie indagini o controlli indipendentemente dal consenso della maggioranza o del governo, che non possono rendere vero ciò che è falso o falso ciò che è vero. Tutto questo vale per tutte le funzioni del Pubblico Ministero: tanto che possiamo dire, inversamente, che sarebbero impropriamente affidate al Pubblico Ministero funzioni che richiedessero invece un’organizzazione burocratica o gerarchizzata, o che non fossero a garanzia dei diritti, o che non consistessero nell’accertamento di una qualche verità processuale. […] Le nuove funzioni del PM, d’altro canto, retroagiscono sulle stesse funzioni tradizionali della pubblica accusa, illuminando la valenza garantista del principio dell’obbligatorietà dell’azione penale a tutela dei diritti delle persone e di interessi pubblici giudicati dalla legge meritevoli di tutela. Ne risultano rafforzate le ragioni dell’indipendenza della figura del Pubblico Ministero, in difesa della legalità e dell’uguaglianza di fronte alla legge:[…] 7 8
A essencialidade da independência funcional do Ministério Público é constantemente reforçada pelo mestre Ferrajoli. Para ele, sem vinculação a quaisquer órgãos externos no exercício de sua atividade fim, a independência funcional é o marco indeclinável para que se possa ter essa garantia, que, em verdade, não é de quem exerce as funções, mas da própria sociedade, o cidadão, do acusado, que sabe que terá em seu favor a prestação das funções ministeriais a partir da observância dos princípios constitucionais e sem direcionamentos segundo interesses eventuais e momentâneos, maximizando a proteção da igualdade democrática. Ainda em suas palavras, a nova função do Ministério Público “retroagiscono sulle stesse funzioni tradizionali della pubblica accusa, illuminando la valenza garantista del principio dell’obbligatorietà dell’azione penale a tutela dei diritti delle persone e di interessi pubblici giudicati dalla legge meritevoli di tutela. Ne risultano rafforzate le ragioni dell’indipendenza della figura del Pubblico Ministero, in difesa della legalità e dell’uguaglianza di fronte alla legge” .
Tão elogiadas (e ardorosamente defendidas) pelo professor e jusfilósofo italiano, as funções desse novo Ministério Público brasileiro a partir da Constituição de 1988 são essenciais para a manutenção da democracia e a proteção de todos os direitos da cidadania, notadamente naquela área que é primaz do parquet, a persecução penal.
Para que possa exercer esse dever indeclinável de proteção de todos os direitos constitucionais e convencionalmente protegidos, na linha concatenada ao tema do garantismo às obrigações processuais penais positivas, deve-se garantir a máxima independência institucional (atividade fim) ao Ministério Público, porque sua legitimação decorre da aplicação da lei (sentido mais amplo possível) e na correta averiguação da verdade, ainda que contra a vontade de maioria ou então de eventuais consensos em órgãos de controles9.
Nessa mesma linha, não podemos prescindir dos preciosos estudos e pesquisas formuladas por Alexander Araújo de Souza em sua magistral obra “O Ministério Público como Instituição de Garantias”10, quando, de forma certeira, destaca:
[…] O Ministério Público é uma instituição de garantia que obviamente deve ser autônoma em relação aos demais poderes constituídos. Essa autonomia diz respeito não só à instituição, sob o aspecto externo, mas também se aplica aos seus membros, sob o aspecto interno. Apesar de parecer óbvio, cumpre advertir que, para realizar suas funções de maneira plena, é indispensável que o membro do Ministério Público seja efetivamente independente, não se submetendo a subordinações hierárquicas extremadas sob o plano funcional11, tampouco a quaisquer formas de subordinação política sob o pano externo (como, por exemplo, ao Ministro da Justiça, como ocorre em alguns países)12. Independência, portanto, que deve significar para o membro do Ministério Público desvinculação ao sistema político e, em geral, a qualquer sistema de poder, sejam eles poderes públicos ou privados. […] O Ministério Público, portanto, sendo independente, não deve buscar o consenso, tampouco temer o dissenso. Deve sempre poder ajuizar uma ação penal ou uma ação coletiva de maneira independente, ainda quando toda a opinião pública postule no sentido de sua inação, com o arquivamento do feito.Também o contrário é verdadeiro.Deve poder requerer, de maneira independente, o arquivamento das investigações, civis ou penais, quando o senso comum deseje que o Parquet ajuíze as ações respectivas. Deve ter a independência, por exemplo, para não ajuizar uma ação penal em face de um cidadão, ou uma ação coletiva em face de uma empresa poluidora, ainda quando a maioria13 deseje a sua atividade comissiva.[…]
Alexander Araújo de Sousa prossegue e deixa bem expresso que “como instituição de garantia (secundária), deve o Parquet tutelar, com base no princípio da isonomia, os direitos fundamentais de todos”14.
Desse modo, o processo penal deve ser “alçado a meio de organização de um julgamento justo, destinado à realização efetiva dos direitos humanos e fundamentais, em favor de réus e investigados, vítimas da criminalidade e dos interesses objetivos de proteção da sociedade”. É que não se pode esquecer que “deve todo membro do Ministério Público exercitar o controle de convencionalidade na integralidade do curso da persecução penal e em cada uma das oportunidades processuais que a ordem jurídica determina ao sistema de justiça a manifestação do Ministério Público. Nesse processo permanente de fiscalização deve se fazer sempre presente a consideração das normas convencionais e a jurisprudência da Corte IDH em face das normas da ordem jurídica interna que compõem o processo penal brasileiro”15.
Conforme alertamos em inúmeras oportunidades na companhia de Valdez Pereira16, o Brasil foi condenado até o presente momento, março de 2025, em 16 (dezesseis) oportunidades, todas elas porque não foram realizados os melhores meios de apuração dos fatos que estavam sob sua supervisão, violando-se, assim, os direitos das vítimas dos crimes ou de seus familiares de saberem a verdade do que ocorreu, responsabilizando-se os eventuais responsáveis (o que não é falado abertamente por muitas doutrinas, que preferem “se omitir” desse dado relevante, quiçá por contrariar suas interpretações a respeito da aplicabilidade do direito penal ou por razões que desconhecemos)17. Exatamente tendo como esses vetores é que deve também o Ministério Público realizar tudo que estiver ao seu alcance, pelos meios legais, para a proteção de todos os direitos previstos na Constituição e nas convenções internacionais.
Portanto, há muito o Ministério Público deixou de ser “mero” custos legis (numa palavra ainda corrente). Destacamos em outra obra de nossa autoria18 que, na linha do que sustentado pelo ex-Ministro do STF Ayres Britto (HC nº 87.926-SP, publicado no DJ em 25.4.2008), “custos legis é uma expressão ultrapassada: defesa da lei, defesa da legalidade. O Ministério Público defende toda a ordem jurídica, não só a lei; por exemplo, vela pela impessoalidade, pelo princípio da publicidade, pelo princípio da moralidade, pelo princípio da eficiência, não só pelo princípio da legalidade. Então, melhor seria chamar o Ministério Público de custos iuris ou júris. Ele é um defensor, custodiador de toda a ordem jurídica. Está assim na Constituição: ‘incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica’ – e em seguida –, ‘do regime democrático’ – e, por último – ‘e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’”.
Evidente que deve existir controle às atuações das funções ministeriais.
A independência funcional não pode ser absoluta e vinculada a uma “garantia pessoal“ de quem exerce as funções, mas sim, repetimos, do cidadão e da sociedade.
Nessa linha, não se pode admitir que vontades ou “opiniões” individuais de quem está no exercício desse munus sejam dissociadas dos demais princípios constitucionais. A independência funcional não autoriza discricionariedade travestida de arbitrariedade. O controle jurisdicional, como princípio garantista, reforça a necessidade de sindicabilidade, o que protege o sistema como um todo.
Nesse ponto, é que destacamos outro princípio garantista fundamental, o da Jurisdicionariedade. Esse princípio não pode ser condicionado pelo Ministério Público, que possui – e sempre deverá ter – a autonomia para decidir se vai iniciar ou não a persecução penal ou até mesmo, no curso do processo, postular uma absolvição (relembremos, é custos iuris). É dizer, se o Ministério Público (como Instituição0tiver poder decisório absoluto de pedir a absolvição, com vinculação automática do respectivo juízo, aí sim teremos uma violação do modelo acusatório, na medida em que deve haver a separação entre eles e, mais que isso, deve haver um controle constante das ações tomadas.
Nesse ponto, advertimos algo de relevo que precisa ser bem diferenciado. Se Ministério Público manifestar-se (dentro da independência funcional) pelo arquivamento de determinada investigação, haverá sempre um controle desse ato, nos moldes do disposto no art. 28 do CPP: “Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. § 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.” (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)“. No âmbito do MPF, a regra é a do art. 62, IV, LC nº 75/93.
Registre-se por oportuno que, em 2023, o Supremo Tribunal Federal analisou esse dispositivo no bojo das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, reconhecendo expressamente que ‘excluir qualquer possibilidade de controle judicial sobre o ato de arquivamento da investigação, a nova redação violou o princípio da inafastabilidade da jurisdição, nos termos do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição”, bem assim que “a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal orienta-se no sentido da necessidade e legitimidade constitucional do controle judicial do ato de arquivamento, com o fito de evitar possíveis teratologias”. Embora se possa criticar a “reescrita” do dispositivo legal pela decisão (em verdadeira substituição do legislador), fato é que a Suprema Corte, apenas reforçando o que já decidia há anos, conferiu ”interpretação conforme a Constituição ao artigo 28, caput, para assentar que, ao se manifestar pelo arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público submeterá sua manifestação ao juiz competente e comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial, podendo encaminhar os autos para o Procurador-Geral ou para a instância de revisão ministerial, quando houver, para fins de homologação, na forma da lei […]”.
Esse controle (jurisdicional) que aqui estamos tratando é prévio à instauração da ação penal no caso da manifestação pelo não ajuizamento da ação penal. Mas igualmente deverá haver controle em todas as demais fases do processo. Repitamos, na linha de Ferrajoli: recebida a peça acusatória em ação penal pública, o processo não está mais à disposição das partes, reclamando uma decisão que só pode ser dada pelo Juiz a partir das provas que foram produzidas nos autos.
Ou seja, se recebida a denúncia, instaurando-se a ação penal, existe sempre a possibilidade de a defesa postular o seu trancamento, se demonstrar que não preenchidos os pressupostos legais (não haver justa causa, por exemplo). Novo controle existe, agora no âmbito jurisdicional.
Instaurada a ação penal e não havendo motivos para impedir o regular processamento, deve-se prosseguir com o feito.
E o art. 42 do CPP, prevendo a obrigatoriedade da ação penal ?
Essa é a regra. Mas há mitigação do Princípio da Obrigatoriedade, desde que previsto em lei para determinadas circunstâncias (v.g., arts. 76 e 89 da Lei nº 9.099/95; art. 1º da Lei 12.850/2013; art. 28-A, CPP; ANPP, art. 28-A, CPP). Uma de nossas premissas é de que a ação penal é obrigatória, e, depois de instaurada e feitos todos os controles existentes, não fica mais condicionada unicamente à “independência” do respectivo membro do Ministério Público atuante.
Reportamos novamente ao que sustentamos na companhia de Eugênio Pacelli 19:
Consectário lógico do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública é a regra de sua indisponibilidade. Do contrário, a obrigatoriedade seria uma questão meramente procedimental, em que o Ministério Público se veria obrigado a propor a ação, para poder, logo após (isto, é, em fase procedimental posterior), dela dispor. A tanto não poderia chegar a inconsequência legislativa.
No entanto, embora seja assim, nada impedirá que o Ministério Público, em alegações finais, ou mesmo em outro momento procedimental, se se entender pela possibilidade de aplicação analógica do CPP, postule a absolvição do acusado, do mesmo modo que poderá, ainda, recorrer em favor do réu e até impetrar habeas corpus em favor dele.
É que, em tais situações, o órgão do Ministério Público que assim agir, ou estará autorizado pelo fato de ter modificado o seu entendimento sobre a matéria, depois da instrução criminal já realizada, ou estará autorizado pelo princípio da independência funcional de seus membros, a teor do disposto no art. 127, § 1º, da Constituição da República. A indisponibilidade da ação diz respeito à impossibilidade de juízo de discricionariedade acerca da pertinência ou não da intervenção penal, se e desde que convencido o parquet da existência do crime e da respectiva autoria.
Voltamos à outra premissa anteriormente destacada: sobretudo no processo penal, o Ministério Público não é um “acusador autômato e sistemático”, mas rege seu poder-dever pautado também por ser uma instituição de garantias. Garantias essas que devem ser protegidas não apenas em prol dos investigados/processados, mas, como diz a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em prol de todos os que estejam sob sua jurisdição, forte nos arts. 8.1 e 25 da CADH.
Então, se concluir, dentro de sua independência funcional, devidamente fundamentada, que não subsistem elementos para a condenação ou presente algum outro óbice, não só pode como deve postular a absolvição, recorrer em favor do réu e inclusive impetrar habeas corpus 20.
O que precisa ser visto é que esse relevantíssimo princípio da independência funcional não pode ficar fora de hipótese de controle meritório (e não apenas em sede correicional ou administrativa da instituição Ministério Público). Qualquer ato que esteja fora de controle algum em seu mérito (observadas as devidas competências, é claro) pode vir até ser um ato arbitrário.
Se há necessidade de controle jurisdicional obrigatório pela manifestação de “não instauração da ação penal”, com muito mais razão no curso do processo, em que já recebida a denúncia.
Noutras palavras, dentro de uma visão conglobante de uma “instituição de garantias”, há vários princípios reitores da ação ministerial e do respectivo controle que deva existir sobre seus membros atuantes em nome dela.
4. O art. 385 do CPP e sua “melhor” interpretação.
O dispositivo é expresso: “Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”.
Vale apenas para as ações penais públicas, pois as privadas propriamente ditas (não as subsidiárias da pública) estão dentro da esfera discricionária exclusiva da vítima e/ou representantes legais.
O que está em pauta aqui é saber se, especialmente, a manifestação em alegações finais/memoriais feita pelo Ministério Público é vinculativa ou não ao julgador. Mas evidente que há outras hipóteses, como, exemplificativamente, o requerimento de impronúncia, contrarrazões pelo provimento do recurso defensivo ou parecer em segundo grau em favor do pleito defensivo.
A regra em comento dispõe que não há vinculação, ou seja é possível haver a condenação mesmo que haja um pedido de absolvição ou outra manifestação favorável ao investigado e/ou processado.
E não pode haver vinculação porque se deve separar o julgador do acusador. A vinculação importaria aí sim em afastar a competência ínsita do modelo acusatório de o juiz dizer o direito, a partir das provas do fato (o objeto do processo penal, vamos insistir).
Temos que nos reportar novamente ao que trazemos em doutrina já divulgada na companhia de Eugênio Pacelli. Nela advertimos o leitor que há ementa 21 de julgado do STF assentado que se teria “como afastada a pretensão acusatória quando há manifestação do titular da ação penal pública pela absolvição do acusado, não podendo o magistrado condenar de ofício” (Ação Penal n, 960, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 13.6.2017, publicado no DJ em 28.6.2017). Entretanto, fundamental deixar bem registrado que esse excerto da ementa não coincide com nenhum fundamento do voto do relator ou mesmo dos demais julgadores 22:
“ […] em nenhuma passagem da decisão proferida, há fundamentos no sentido de que haveria essa vinculação ao pedido de absolvição. Tanto é assim que, em outro julgado, se encontra posicionamento no sentido de que “a indisponibilidade da ação penal pública não proíbe que o Ministério Público possa opinar pela absolvição do réu, mas exclui a vinculação do juízo à manifestação do Parquet, tendo em vista a vedação inscrita nos artigos 42 e 576 do Código de Processo Penal, que impedem o Ministério Público de desistir da ação penal ou do recurso que haja interposto” (Ação Penal 921-RS, STF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Luiz Fux, julgado monocraticamente em 20.6.2017, publicado no DJ em 30.6.2017).”
Vamos também assentar (como o fizemos a partir da 17ª edição da obra mencionada) que, no ano de 2022, um julgado proferido pelo STJ ensejou novamente debates no sentido de que a jurisprudência teria sido “alterada” a partir da mera divulgação e repetição de uma ementa noticiada publicamente.
Referimos-nos do que circulou especialmente em redes digitais acerca do julgamento do Recurso Especial nº 1.940.726-RO, em que constou na ementa que “tendo o Ministério Público, titular da ação penal pública, pedido a absolvição do réu, não cabe ao juízo a quo julgar procedente a acusação, sob pena de violação do princípio acusatório, previsto no art. 3º-A do CPP, que impõe estrita separação entre as funções de acusar e julgar”. […] (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.940-.726-RO, STJ, 5ª Turma, por maioria, Relator Ministro convocado Jesuíno Rissato, redator para o acórdão Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 6.9.2022, publicado no DJ em 4.10.2022).
Na verdade, e com todo respeito, o que se decidiu discrepa totalmente do que constou na ementa (recomendamos sempre a leitura dos fundamentos do julgado, não se ficando adstrito eventualmente ao resumo da ementa).
Primeiro se deve fazer um alerta que passou sem a devida contextualização: na data do julgado, o art. 3º-A do CPP, invocado como razão de decidir, estava suspenso por decisão do STF (ADIs nºs 6.299, 6.300, 6.305 e 6.298). Significa que foi invocada norma processual que não podia ser aplicável.
Registramos que, posteriormente, o STF julgou o mérito das referidas ações e reconheceu expressamente que, “diante da obrigatoriedade e da indisponibilidade que caracterizam a ação penal pública no direito processual penal brasileiro, as manifestações do Ministério Público submetem-se ao controle judicial, no âmbito do qual compete aos juízes competentes para o julgamento da ação penal impedir que, direta ou indiretamente, aqueles princípios sejam violados nos autos. Deveras, os institutos da desistência ou da perempção são aplicáveis exclusivamente às ações penais privadas”. Reconheceu ainda que a “submissão do magistrado à manifestação final do Ministério Público, a pretexto de supostamente concretizar o princípio acusatório, implicaria, em verdade, subvertê-lo,transmutando o órgão acusador em julgador e solapando, além da independência funcional da magistratura, duas das basilares características da jurisdição: a indeclinabilidade e a indelegabilidade”.
Prosseguindo na análise do julgado do Recurso Especial nº 1.940.726-RO, deve-se ver que, no caso concreto, o relator denegava a pretensão, restando vencido. Em voto-vista, o Ministro João Otávio de Noronha expressamente reconheceu que existem inúmeros julgados do Superior Tribunal de Justiça que reconhecem a possibilidade de prolação de sentença condenatória independentemente de a acusação postular, em alegações finais, a absolvição do réu. Mas ressalvou seu posicionamento em sentido diverso, amparado na fundamentação “de o modelo adotado no Brasil ser acusatório” (embora não tenha explicado mais substancialmente qual sua compreensão acerca da expressão).
Desse modo considerou que “quando o Ministério Público requer a absolvição do réu, ele está, de forma indireta, retirando a acusação, sem a qual o juiz não pode promover decreto condenatório, sob pena de acusar e julgar simultaneamente”.
Sua fundamentação não parou aí.
Acresceu que, se fosse esse o único argumento, apenas ressalvaria seu posicionamento “com relação à impossibilidade de condenação diante de pedido de absolvição da acusação”. Mas, no caso concreto, reconheceu que não se poderia manter uma condenação penal sem fundamentação adequada. E disse expressamente: “para se contrapor a um pedido de absolvição da acusação, a sentença deve ser robustamente fundamentada, com a indicação de provas firmes e coerentes que apontem para direção diversa”.
Um parêntesis quanto à explicação do julgado: nessa parte, está claro que o ponto de toque está exatamente na questão da “fundamentação das provas” trazidas aos autos, fato que compete exclusivamente ao julgador. E o argumento é muito importante, pois, sem dúvidas, o nível de fundamentação deve ser mais rigoroso.
Seguindo, disse o e. Relator que há julgado do STF em que a Corte assentou que “o art. 385 do Código de Processo Penal permite ao juiz proferir sentença condenatória, embora o Ministério Público tenha requerido a absolvição. Tal norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal. No caso concreto, contudo, as parcas provas colhidas pela Procuradoria-Geral da República são insuficientes para justificar a aplicação da norma excepcional” (AP n. 976, relator Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 7/4/2020).
Portanto, o que não constou da ementa é que o próprio relator faz uma ressalva a sua premissa do dissídio.
Na sequência do julgamento, colhe-se o voto do Ministro Joel Paciornick, que acompanhou a posição para reconhecer a ausência de elementos para condenação, mas expressamente ressalvou seu “posicionamento de que se mostra cabível a prolação de sentença condenatória, mesmo que o Ministério Público tenha requerido a absolvição, nos termos do art. 385 do Código de Processo Penal”.
Noutras palavras, apenas o redator do acórdão – que invocou inclusive norma processual suspensa na data do julgamento, como dissemos – adotou essa posição parcialmente exposta na ementa quanto à não-recepção do art. 385 do CPP pela Constituição Federal de 1988.
Prosseguindo, e agora novamente na obra conjunta com Pacelli, reportamos à doutrina de Jorge Figueiredo Dias 23:
“não vale em processo penal o princípio da discussão (processo como duelo de partes), em qualquer de suas manifestações mais importantes, também ali não há lugar para o princípio dispositivo. Isto é, como já se sugeriu, consequência da fundamental indisponibilidade do objecto processual penal e conduz à impossibilidade de desistência da acusação pública, de acordos eficazes entre a acusação e a defesa e de limitações postas ao tribunal na apreciação jurídica do caso submetido a julgamento. […] Pode o MP ter pedido a absolvição do arguido e o tribunal condená-lo – como pode a defesa, considerando provado o crime, pedir apenas a condenação em uma pena leve e o tribunal absolver o arguido.”
No ano de 2023, novo julgado do STJ, agora da 6ª Turma, estando assim resumido em sua ementa (longa, mas precisamos transcrevê-la na parte que importa à discussão), com síntese de todos os fundamentos que entendemos pertinentes e relevantes (e que foi expressamente citado no julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305):
RECURSO ESPECIAL. CONCUSSÃO. […] ART. 385 DO CPP. DECISÃO CONDENATÓRIA A DESPEITO DO PEDIDO ABSOLUTÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS. POSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA ACUSATÓRIO. ARTS. 3º-A DO CPP E 2º, § 1º, DA LINDB. NÃO VIOLAÇÃO. AUSÊNCIA DE DERROGAÇÃO TÁCITA DO ART. 385 DO CPP. ARTS. 316 DO CP E 386, I, DO CPP. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ALTERAÇÃO DAS PREMISSAS FÁTICAS.
[…] 3. Conforme dispõe o art. 385 do Código de Processo Penal, é possível que o juiz condene o réu ainda que o Ministério Público peça a absolvição do acusado em alegações finais. Esse dispositivo legal está em consonância com o sistema acusatório adotado no Brasil e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei n. 13.964/2019, que introduziu o art. 3º-A no Código de Processo Penal.
3.1. O sistema processual penal brasileiro – em contraposição ao antigo modelo inquisitivo – é caracterizado, a partir da Constituição Federal de 1988, como acusatório, e não se confunde com o adversarial system, de matriz anglo-saxônica. É preciso louvar os benefícios que decorrem da adoção do processo com estrutura acusatória – grande conquista de nosso sistema pós-Constituição de 1988 e reforçado pelo novel art. 3º-A do CPP – sem, todavia, cair no equívoco de desconsiderar que o processo penal, concebido e mantido acima de tudo para proteger o investigado/réu contra eventuais abusos do Estado em sua atividade persecutória e punitiva, também tutela outros interesses, igualmente legítimos, como o da proteção da vítima e, mediatamente, da sociedade em geral. Ao Estado tanto interessa punir os culpados quanto proteger os inocentes, o que faz por meio de uma jurisdição assentada em valores indissociáveis, ainda que não absolutos, tais quais a verdade e a justiça.
3.2. Não obstante a proclamada adoção no Brasil de um processo com estrutura acusatória, a praxe judiciária tem agasalhado diversas situações em que se realizam atividades judiciais com inclinação inquisitorial. Em verdade, como bem observam Andrea Dalia e Marzia Ferraioli, “mais do que de sistema inquisitorial ou de sistema acusatório, com referência à legislação processual penal moderna, é mais usual falar de modelos com tendência acusatória ou de formato inquisitorial” (DALIA, Andrea; FERRAIOLI, Marzia. Manuale di Diritto Processual Penale. 5 ed. Milão: 2003, p. 27, trad. Livre).
3.3. O Ministério Público, instituição a que o Constituinte de 1988 incumbiu, privativamente, de promover a ação penal pública (art. 129, I, da Constituição Federal), tem o dever de deduzir, presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, a pretensão punitiva estatal, compromissado com a descoberta da verdade e a realização da justiça. Ao contrário de outros sistemas – em que o Ministério Público dispõe da ação penal por critérios de discricionariedade –, no processo penal brasileiro o Promotor de Justiça não pode abrir mão do dever de conduzir a actio penalis até seu desfecho, quer para a realização da pretensão punitiva, quer para, se for o caso, postular a absolvição do acusado, hipótese que não obriga o juiz natural da causa, consoante disposto no art. 385 do Código de Processo Penal, a atender ao pleito ministerial.
3.4. Deveras, o art. 385 do Código de Processo Penal prevê que, quando o Ministério Público pede a absolvição do acusado, ainda assim o juiz está autorizado a condená-lo, dada, também aqui, sob a ótica do Poder Judiciário, a soberania do ato de julgar.
3.5. Quando o Parquet pede a absolvição de um réu, não há, ineludivelmente, abandono ou disponibilidade da ação (Art. 42 do CPP), como faz o promotor norte-americano, que simplesmente retira a acusação (decision on prosecution motion to withdraw counts) e vincula o posicionamento do juiz. No sistema pátrio, é vedada similar iniciativa do órgão de acusação, em face do dever jurídico de promover a ação penal e de conduzi-la até o seu desfecho, mesmo que, eventualmente, possa o agente ministerial posicionar-se de maneira diferente – ou mesmo oposta – à do colega que, na denúncia, postulara a condenação do imputado.
3.6. No tocante à natureza dos interesses postos em conflito no Processo Penal, cabe reportar à oportuna e avalizada lição de Giovanni Leoni (Diritto Procesuale Penale. 7. ed., Napoli: Jovene, 1968, p. 497 ss, trad. livre), que assere: “No Processo Penal se estabelecem duas situações distintas: uma imanente de conflito entre o direito punitivo do estado e o direito de liberdade do agente; e, outra, contingente, de relação entre o Ministério Público e o acusado, que pode reproduzir a primeira situação ou divorciar-se integralmente dela”. E acrescenta o eminente professor italiano: “Na jurisdição criminal não há propriamente uma demanda do Ministério Público contra uma demanda do réu, mas uma posição estática de interesse punitivo que está atrás do Ministério Público. E uma posição estática de interesse à liberdade que fica às costas do agente”.
3.7. As posições contingencialmente adotadas pelos representantes do Ministério Público no curso de um processo não eliminam o conflito que está imanente, permanente, na persecução penal, que é o conflito entre o interesse punitivo do Estado, representado pelo Parquet, Estado-acusador, e o interesse de proteção à liberdade do indivíduo acusado, ambos sob a responsabilidade do órgão incumbido da soberana função de julgar, por meio de quem, sopesadas as alegações e as provas produzidas sob o contraditório judicial, o Direito se expressa concretamente.
3.8. Portanto, mesmo que o órgão ministerial, em alegações finais, não haja pedido a condenação do acusado, ainda assim remanesce presente a pretensão acusatória formulada no início da persecução penal – pautada pelos princípios da obrigatoriedade, da indisponibilidade e pelo caráter publicista do processo –, a qual é julgada pelo Estado-juiz, mediante seu soberano poder de dizer o direito (juris dicere).
3.9. Tal como ocorre com os poderes instrutórios residuais do juiz no sistema acusatório, que se justificam excepcionalmente à vista do risco de se relegar a busca da verdade processual apenas às partes – as quais estão em situação de engajamento e têm interesse em ganhar a causa, e não necessariamente em demonstrar o que de fato aconteceu –, pela mesma razão se explica a possibilidade – também excepcional – de que o juiz condene o réu mesmo que o Ministério Público peça a absolvição dele.
3.10. O princípio da correlação vincula o julgador apenas aos fatos narrados na denúncia – aos quais ele pode, inclusive, atribuir qualificação jurídica diversa (art. 383 do CPP) –, mas não o vincula aos fundamentos jurídicos invocados pelas partes em alegações finais para sustentar seus pedidos. Dessa forma, uma vez veiculada a acusação por meio da denúncia e alterado o estado natural de inércia da jurisdição – inafastável do Poder Judiciário nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição –, o processo segue por impulso oficial e o juiz tem o dever – pautado pelo sistema da persuasão racional – de analisar, motivadamente, o mérito da causa submetida à sua apreciação, à vista da hipótese acusatória contida na denúncia, sem que lhe seja imposto o papel de mero homologador do que lhe foi proposto pelo Parquet.
3.11. A submissão do magistrado à manifestação final do Ministério Público, a pretexto de supostamente concretizar o princípio acusatório, implicaria, em verdade, subvertê-lo, transmutando o órgão acusador em julgador e solapando, além da independência funcional da magistratura, duas das basilares características da jurisdição: a indeclinabilidade e a indelegabilidade.
3.12. Com efeito, é importante não confundir a desistência da ação – que é expressamente vedada ao Ministério Público pela previsão contida no art. 42 do CPP e que levaria, se permitida, à extinção do processo sem resolução do mérito e sem a formação de coisa julgada material –, com a necessária vinculação do julgador aos fundamentos apresentados por uma das partes em alegações finais, cujo acolhimento leva à extinção com resolução do mérito da causa e à formação de coisa julgada material insuperável, porquanto proibida a revisão criminal pro societate em nosso ordenamento.
3.13. É de se notar, ainda, o grave déficit de sindicabilidade dos atos do membro do Ministério Público que o entendimento ora refutado acarreta. Isso porque eventual erro – a que todos estão sujeitos, falíveis que são os seres humanos – ou até mesmo algum comprometimento ético do representante do Parquet não seria passível de nenhum controle, diante da ausência de interesse em recorrer da decisão judicial que acolhe o pedido absolutório ou extintivo da punibilidade, cenário afrontoso aos princípios fundantes de qualquer Estado Democrático de Direito.
3.14. É dizer, nem o juiz, nem o Tribunal, tampouco a instância revisora do Ministério Público poderiam controlar o ato viciado, porquanto, diferentemente do que ocorre na sistemática do arquivamento do inquérito (art. 28 do CPP), não há previsão legal para remeter os autos ao órgão superior do Parquet nessa hipótese. Ainda que se aplicasse o referido dispositivo por analogia – o que mitigaria a falta de controle sobre o ato –, tal solução, em caso de insistência no pedido absolutório e vinculação do julgador, não resolveria o problema de afronta à independência funcional e à soberania do Poder Judiciário para dizer o direito, função que lhe é ínsita.
3.15. Ao atribuir privativamente ao Ministério Público o encargo de promover a ação penal pública, o Constituinte ressalvou no art. 129, I, que isso deveria ser exercido “na forma da lei”, de modo a resguardar ao legislador ordinário alguma margem de conformação constitucional para tratar da matéria, dentro da qual se enquadra a disposição contida no art. 385 do CPP. Ou seja, mesmo sujeita a algumas críticas doutrinárias legítimas, a referida previsão normativa não chega ao ponto de poder ser considerada incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, tampouco com o sistema acusatório adotado no país.
3.16. É necessário fazer, entretanto, uma ponderação, à luz das pertinentes palavras do Ministro Roberto Barroso, no julgamento da Ap n. 976/PE, de que “[t]al norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal”. Vale dizer, uma vez formulado pedido de absolvição pelo dominus litis, caberá ao julgador, na sentença, apresentar os motivos fáticos e jurídicos pelos quais entende ser cabível a condenação e refutar não apenas os fundamentos suscitados pela defesa, mas também aqueles invocados pelo Parquet em suas alegações finais, a fim de demonstrar o equívoco da manifestação ministerial. Isso porque, tal como ocorre com os seus poderes instrutórios, a faculdade de o julgador condenar o acusado em contrariedade ao pedido de absolvição do Parquet também só pode ser exercida de forma excepcional, devidamente fundamentada à luz das circunstâncias do caso concreto. […] (Recurso Especial nº 2.022.413-PA, STJ, Rel. Min. Sebastião Reis Nunes, Relator para o acórdão Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 14.2.2023, publicado no DJ em 7.3.2023)
Trata-se de verdadeira aula de compreensão do que efetivamente significa a premissa “modelo ou sistema acusatório”, dela extraindo a interpretação que não traga incongruência sistêmica ou até violação do próprio instituto em si.
De outro lado, chama a atenção alguns equívocos – venia concessa – constantes no voto-minoritário, quando, em nosso juízo, confunde questões essenciais, ao assentar que:
[…] não parece razoável concluir no sentido da vigência da previsão contida no art. 385 do Código de Processo Civil – sic. Ora, se é vedado ao Magistrado decretar ex officio a prisão cautelar, também não deve ser admitida a atuação de ofício no sentido de condenar alguém, medida essa indubitavelmente mais gravosa do ponto de vista processual penal.
Lendo o Código de Processo Penal, em especial o seu art. 385, considerando as balizas que permeiam o sistema acusatório, não vejo, pedindo vênia aos que pensam de modo contrário, como entender possível o Juiz condenar mesmo quando o Ministério Público requer a absolvição.
Como explicado anteriormente, a proibição de decretação ex officio de prisões cautelares é uma circunstância variável do modelo acusatório (e com ela concordamos, na atual redação, que fique claro). Já a comparação feita – com verdadeiro gap ou salto hermenêutico – não pode ser confirmada. Como demonstrado, vincular o julgador à manifestação ministerial é violar um dos pilares fixos do modelo acusatório, que é a separação do julgador do acusador. Nesse ponto, antes citado, Ferrajoli bem explica o tema.
Aliás, há uma contradição na própria fundamentação desse voto, quando diz que “o legislador optou claramente por limitar a atuação do Juiz na ação penal a apenas julgar, deixando a cargo das partes a responsabilidade pelo impulso do processo”.
Colhe-se do RHC nº 160.461-DF (mesma relatoria, DJ de 2.5.2022) que “cabe ao Juiz conduzir a instrução, podendo indeferir as provas consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias (art. 400, § 1º, do CPP). No entanto, não pode o Magistrado abrir mão da fundamentação das decisões judiciais, mandamento constitucional (art. 93, IX, da Constituição da República) que deve ser observado, em especial, quando se tratar de fato relacionado à ampla defesa, e mais proeminente ainda no Processo Penal, em que está em jogo a liberdade”.
Destacamos que, noutro processo (a decisão foi unânime, mas com a concordância do mesmo julgador que externou a posição acima pela vinculação ao pedido em alegações finais), extrai-se da ementa (aí correspondendo ao que efetivamente foi debatido e decidido):
[…] 1. A estrutura acusatória do processo penal pátrio impede que se sobreponham em um mesmo sujeito processual as funções de defender, acusar e julgar, mas não elimina, dada a natureza publicista do processo, a possibilidade de o juiz determinar, mediante fundamentação e sob contraditório, a realização de diligências ou a produção de meios de prova para a melhor reconstrução histórica dos fatos, desde que assim proceda de modo residual e complementar às partes e com o cuidado de preservar sua imparcialidade.
2. Não fora assim, restaria ao juiz, a quem se outorga o poder soberano de dizer o direito, lavar as mãos e reconhecer sua incapacidade de outorgar, com justeza e justiça, a tutela jurisdicional postulada, seja para condenar, seja para absolver o acusado. Uma postura de tal jaez ilidiria o compromisso judicial com a verdade e com a justiça, sujeitando-o, sem qualquer reserva, ao resultado da atividade instrutória das partes, nem sempre suficiente para esclarecer, satisfatoriamente, os fatos sobre os quais se assenta a pretensão punitiva. […] 9. Ordem concedida em parte. (Habeas Corpus nº 496.662–SP, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, unânime, julgado em 13.9.2022, publicado no DJ em 27.9.2022)
Se mudou de posição, aquele julgador deveria fazer a devida anotação e a compatibilização dessa nova interpretação com as demais questões atinentes às funções do juiz dentro do processo.
Entretanto, não nos mantemos apenas nessas críticas (acadêmica e respeitosa). Admitimos que o julgador está correto ao aderir ao voto condutor do julgado refletido na ementa acima destacada quando se assentou que ao juiz “compete julgar”. E julgar não é ficar adstrito ao que disser o Ministério Público nas alegações finais. Diante das provas produzidas, o fato (objeto do processo) aguarda uma manifestação jurisdicional. E é só dele, do juiz ! É disso que fala Ferrajoli em sua obra tão invocada e, às vezes, mal (ou parcialmente) compreendida/difundida no Brasil.
A 5ª Turma do STJ sempre seguiu a mesma linha da não vinculação (adiante mais julgados), como se vê:
[…] . O art. 385 do CPP foi recepcionado pela Constituição da República de 1988. Precedentes do STJ e do STF. 3. Descabe falar, no presente processo, em revogação tácita do art. 385 do CPP pela Lei 13.964/2019 (que acrescentou o art. 3º-A ao Código), porque a sentença condenatória foi proferida em 24/5/2018, antes da entrada em vigor da novel legislação. […] (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.943.370/RS, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 9.11.2021, publicado no DJ em 16.11.2021)
Exatamente por isso, corretamente constou a advertência feita no voto da Ministra Laurita Vaz no caso em apreço (reforçando o voto do Ministro Schietti) que “a se entender pela revogação tácita do art. 385 do Código de Processo Penal, transfere-se para o órgão acusatório a função precípua do julgador que, inerte diante do requerimento ministerial, estaria relegado a acatar a leitura que o órgão acusatório fez das provas produzidas, cabendo aqui relembrar que, à luz do princípio da comunhão da prova, as provas pertencem ao processo, e não a uma parte específica”.
Prosseguiu dizendo que “a impossibilidade de julgar de forma diversa do entendimento ministerial (alegações finais, contrarrazões recursais ou parecer) retira do julgador a própria função de dizer o direito à luz dos fatos, ou seja, a própria função jurisdicional acaba transferida para o órgão acusatório. A nossa sistemática de produção de provas está edificada sobre a premissa de que o juiz é o destinatário da prova e, nessa condição, formará sua livre convicção motivada. A se acolher o entendimento de que o juiz se vincula irremediavelmente à manifestação ministerial, também se violaria tal postulado, modificando-se o destinatário da prova, que passaria a ser, afinal, o Ministério Público”.
Não cabe ainda falar em “abandono da causa” (argumento também usado no voto minoritário), pela “importação” descontextualizada de hipóteses existentes em sistemas comparados ou até mesmo de outros ramos, como o processo civil. E isso o próprio STJ já atentou ao destacar que “quando o Ministério Público pede a absolvição de um réu, não há, ineludivelmente, abandono ou disponibilidade da ação, como faz o promotor norte-americano, que simplesmente retira a acusação (decision on prosecution motion to withdraw counts) e vincula o posicionamento do juiz. Em nosso sistema, é vedada similar iniciativa do órgão de acusação, em face do dever jurídico de promover a ação penal e de conduzi-la até o seu desfecho, ainda que, eventualmente, possa o agente ministerial posicionar-se de maneira diferente – ou mesmo oposta – do colega que, na denúncia, postulara a condenação do imputado”(Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 567.740-SP, STJ, 5ª Turma, unânime, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 12.5.2020, publicado no DJ em 18.5.2020).
Também o STF, igualmente de modo exemplificativo:
[…] Na esteira da orientação jurisprudencial desta Suprema Corte, “A condenação em ação penal pública pelo juízo desvincula-se do pedido de absolvição efetuado em alegações finais pelo Ministério Público, assim como o pedido de arquivamento do inquérito policial e impronuncia. Precedentes: ARE 924.290 ED, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 11/03/2016, ARE 700.012 ED, Segunda Turma, Rel. Min. Carmen Lucia, DJe 10/10/2012” (HC 125.645 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 18.4.2017). […] (Agravo Regimental no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 197.907/PI, STF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em sessão virtual de 7.5.2021 a 14.5.2021, publicado no DJ em 26.5.2021)
[…] 1. A indisponibilidade da ação penal pública não proíbe que o Ministério Público possa opinar pela absolvição do réu, mas exclui a vinculação do juízo à manifestação do Parquet, tendo em vista a vedação inscrita nos artigos 42 e 576 do Código de Processo Penal, que impedem o Ministério Público de desistir da ação penal ou do recurso que haja interposto. 2. As razões finais da acusação, no processo de ação pública, são meras alegações, atos instrutórios, que tendem a convencer o juiz, sem, contudo, delimitar-lhe o âmbito de cognição ou o sentido de decisão da causa, de que não dispõe. Precedente: HC 68.316, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, j. 27.11.1990; […] (Ação Penal 921-RS, STF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Luiz Fux, julgado monocraticamente em 20.6.2017, publicado no DJ em 30.6.2017).
Ainda dentro da análise do tema, veja-se que o voto-minoritário no julgamento do Recurso Especial nº 2.022.413-PA adotou em complemento a seguinte fundamentação, transcrevendo doutrina brasileira:
“Partindo da construção dogmática do objeto do processo penal, com Goldschmidt, verificamos que (nos crimes de ação penal de iniciativa pública) o Estado realiza dois direitos distintos (acusar e punir) por meio de dois órgãos diferentes (Ministério Público e Julgador). Essa duplicidade do Estado (como acusador e julgador) é uma imposição do sistema acusatório (separação das tarefas de acusar e julgar).
O Ministério Público é o titular da pretensão acusatória, e, sem o seu pleno exercício, não se abre a possibilidade de o Estado exercer o poder de punir, visto que se trata de um poder condicionado. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP mediante o exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém.
Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo.
Então, recordando que Goldschmidt afirma que o poder judicial de condenar o culpado é um direito potestativo, no sentido de que necessita de uma sentença condenatória para que se possa aplicar a pena e, mais do que isso, é um poder condicionado à existência de uma acusação. Essa construção é inexorável se se realmente se quer efetivar o projeto acusatório da Constituição. Significa dizer: aqui está um elemento fundante do sistema acusatório.
Portanto, viola o sistema acusatório constitucional a regra prevista no artigo 385 do CPP, que prevê a possibilidade de o juiz condenar ainda que o Ministério público peça a absolvição. Também representa uma clara violação do princípio da necessidade do processo penal fazendo com que a punição não seja legitimada pela prévia integral acusação, ou, melhor ainda, pleno exercício da pretensão acusatória. (in Direito Processual Penal, Saraiva, 13ª edição, fls. 921) (destaque nosso)
Com todas as vênias também aqui, Goldschmidt não defende “bem e só isso”. Ao menos na leitura que fizemos.
Vamos à origem da doutrina, quando, criticando previsões da legislação de vinculação do juiz no processo criminal ao que pedir o Ministério Público, o autor tedesco refere24:
“É verdade que a acusação, uma vez ajuizada, o juízo criminal dar-lhe-á seguimento, e que o Ministério Público não pode desistir dela; mas, quando o Ministério Público requerer o arquivamento da investigação, e tampouco houver acusador particular, nem se apresentar alguém para ajuizar a acusação, o Juiz acolherá o arquivamento requerido, tendo, somente no caso de discordância, a faculdade de provocar o membro do Ministério Público de segundo grau (arts. 642, 644). Mesmo assim, deve-se deduzir do que dizem os artigos 912, núm. 3, L.E.Crim., e 69 da Lei do Tribunal do Júri, que, quando se desista da acusação na fase de instrução probatória, não pode haver uma sentença condenatória, e que até ao juízo criminal se vincula pela qualificação definitiva do acusador, formulada depois que foram praticadas as diligências de prova (art. 732). Esta vinculação do juízo criminal envolve, como já se explicou anteriormente, até um exagero do princípio acusatório, porque se desconhece que objeto do processo é o direito de punir, e, por consequência, não um tipo delituoso, senão um fato a ser julgado, e que aquele direito de punir corresponde ao Juiz” (destaques nossos).
Ou seja, Goldschmidt entende que essa vinculação é um exagero dentro de um sistema acusatório que preveja isso explicitamente nas normas infraconstitucionais (como nas que ele refere; no Brasil não há a regra vinculativa, ela dispõe exatamente em sentido oposto, e vide nossas conclusões adiante).
É preciso compreender que ele não está defendendo a vinculação, mas fazendo uma crítica às normas mencionadas que a estipulam, porque, vamos repetir suas palavras, “se desconhece que o objeto do processo é o direito de punir”.
É o que estamos sustentando: depois de instaurada a ação penal, o objeto do processo é o direito de punir. E desse o MP não pode lançar mão de forma vinculativa ao juízo.
Importante acrescer ainda doutrina que, em nossa opinião, é a que melhor aborda o tema, na medida que se trata de séria pesquisa – sobretudo histórica – a respeito de uma suposta vinculação do juízo a pedido do Ministério Público e “modelo acusatório”.
Mauro Fonseca Andrade enceta com precisão 25:
[…] o foco inicial do sistema acusatório foi preservar a imparcialidade daquele sujeito encarregado de julgar o fato posto à sua apreciação. Em que pese isso, o fato de um país optar pela adoção do sistema acusatório não significa, em absoluto, que, em nome dessa mesma imparcialidade, a atuação das partes estará isenta de controle por parte de quem está encarregado de julgar. […]
Ninguém desconhece que, ao longo do sistema acusatório clássico, poderiam os acusadores desistir ou abandonar o processo. Aliás, isso era restultado de, nessa época, os acusadores serem, em sua imensa maioria, de natureza popular ou particular (vítima). No entanto, o que ninguém refere é que esse abandono não se dava de forma descompromissada como se imagina ou se dá a entender.
Na verdade, apesar de ser reconhecida a possibilidade de o autor desistir da acusação, essa desistência deveria ser submetida à apreciação judicial, para que fosse validamente considerada. Em outras palavras, essa desistência da acusação deveria ser justificada, sob pena de o acusador incidir na prática do crime de tergiversatio, caso sua omissão fosse considerada injusta ou exercida para beneficiar o réu.
Essa apreciação judicial ocorria, basicamente, a partir do exame do material probatório existente no processo, pois somente assim se poderia saber se o réu seria beneficiado ou se a desistência do autor não se justificava em razão de tudo o que já havia sido aportado ao processo. Por isso, se compararmos o atual pedido de absolvição a uma desistência do processo, esse mesmo sistema acusatório – que é invocado por esse segmento doutrinário – implicaria a realização de uma apreciação judicial sobre os termos dessa desistência. Mais que isso, essa apreciação judicial deveria ocorrer sobre o material probatório existente no processo, a fim de o juiz concordar ou discordar do pedido de absolvição formulado.
[…] Por outro lado, ainda no sistema acusatório romano, nem toda desistência do acusador importava na extinção automática do processo. Havia situações em que, apesar dessa desistência, o processo tinha seguimento para que o acusado pudesse demonstrar sua inocência, e posteriormente processar o acusador pela prática do crime de calúnia”.
Portanto, se é verdade que o Ministério Público seja uma instituição de garantias, devendo zelar pelo devido processo, seu poder-dever de persecução penal (já exercida a pretensão, presente a indisponibilidade e obrigatoriedade, mesmo que mitigada em algumas situações expressamente previstas em lei) não é absoluto e insindicável. É dever do juiz controlar esse ato para ver se, a partir do arcabouço probatório produzido, não se está diante de um erro e/ou arbitrariedade (e não se olvide: todo o juiz brasileiro sempre foi um “juiz de garantias”, basta ter os olhos da melhor compreensão dessa expressão).
Realmente o juiz não pode se substituir à acusação na produção probatória, o que não significa que, como dizem alguns também inadvertidamente, o juiz não poderia produzir provas. Claro que pode, nunca um modelo acusatório impediu sua atuação, mesmo em sistemas “adversariais”. O que não se permite é, evidentemente, que o magistrado “escolha” e produza as provas que queira para, depois, julgar. Aí ele estará concentrando as duas funções, de demonstração da autoria e materialidade (ônus da prova, que é do titular da ação penal) e de, concomitantemente, julgar o feito.
Não por outras razões que, novamente no julgamento das ADI´s retromencionadas, a Suprema Corte uma vez mais reconheceu que “ o novo artigo 3º-A do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei 13.964/2019, deve ser interpretado de modo a vedar a substituição da atuação de qualquer das partes pelo juiz, sem impedir que o magistrado, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, determine a realização de diligências voltadas a dirimir dúvida sobre ponto relevante”.
Portanto, diante das provas produzidas, na busca de um processo justo, a função do juiz é avaliar a prova e dizer o direito, exatamente como advertimos originariamente ao acorrermos aos ensinamentos de Ferrajoli.
Mas nesse tópico ainda algo importante a ser dito.
Na linha do que defendemos juntamente com Frederico Valdez Pereira 26 27, não podemos deixar de considerar as chamadas obrigações processuais penais positivas, que se trata de uma “locução para identificar o dever imposto aos Estados Partes de conduzir procedimento investigativo e eficiente e processo penal apto a buscar o acertamento dos fatos ilícitos e a punição dos eventuais responsáveis, sob pena de violação concreta dos dispositivos das convenções regionais de direitos humanos que estipulam a salvaguarda dos direitos fundamentais envolvidos nas práticas ilícitas”. Pontuamos ainda que “a busca do melhor acertamento possível dos fatos no processo é condição inafastável para a redução da influência da autoridade no resultado do juízo penal, a partir de uma exigência de verificação racional empírica, suscetível de controle intersubjetivo e posterior das atividades instrutórios e das conclusões motivadamente apresentadas. […] Assume-se que a fonte de legitimidade do exercício da jurisdição penal não pode decorrer de consensos majoritários ou democráticos, e tampouco da forma de investidura dos julgadores; a legitimação somente pode ser originar na justificação cognifica, legal e racional das decisões” 28.
Depois de instaurada a ação penal, justo processo não é o que o Ministério Público quer (logo, não pode dispor da acusação por sua mera e íntima compreensão, sem nenhum controle), mas o que, a partir das provas produzidas (essas sim mediante o devido processo) possa a única figura que possui o poder de dizer o direito (o Juiz) apreciar o conjunto e enunciar o melhor acertamento desses fatos ao que previsto na legislação.
5. Da teoria à realidade dos fatos.
Mesmo dito tudo isso sob o aspecto teórico, e considerando fundamentação para demonstrar que não há contradição alguma com o modelo acusatório o disposto no art. 385 do CPP (na verdade, há uma confirmação do sistema), a teoria precisa avançar para a realidade dos fatos, em relação aos quais o Poder Judiciário não pode ficar alheio – notadamente uma Corte que dá a interpretação ao ordenamento legal. Imaginemos duas situações, dentre tantas possíveis.
1) Determinada pessoa é denunciada por enorme fraude (estelionato, por exemplo) contra uma instituição pública na ordem de dezenas de milhões de reais. Preenchidos os requisitos legais, ela é recebida, não sendo caso de absolvição sumária. A prova produzida é farta no sentido de que a enorme quantidade de recursos foi efetivamente desviada mediante a fraude. O réu, inclusive, é confesso. Em substituição eventual por conta de férias do titular, outro membro do parquet entende (sem “muitas justificativas”) que, numa visão de “última ratio”, um “prisma garantista, o Direito Penal não deve se preocupar com esse tipo de crime (para quem ainda não leu, Ferrajoli diz o contrário, advertimos nós29). Estaria vinculado o julgador à absolvição manifestada diante de um argumento bastante insustentável (para dizer o menos) e de uma posição “muito particular” daquele integrante do Parquet ?
2) Noutro caso, a denúncia é por estupro, porque a pessoa manteve relações sexuais com a vítima na época que ela tinha 10 anos, o que prosseguiu por alguns anos, inclusive passaram a conviver em união estável. Descobertos os fatos, formalizada a denúncia, recebido e processado o feito, o integrante do parquet sustenta duas teses: a) quando praticado o crime, vigorava o disposto no inciso VII do art. 107 do CP (extinguia-se a punibilidade pelo casamento do agente com a vítima), de modo que deveria ser aplicada, por analogia, a extinção da punibilidade pela união estável; b) na compreensão do signatário das alegações finais, o fato de a vítima e o autor passarem a conviver em união estável impõe que se afaste a aplicabilidade da norma penal, para “valorização do núcleo familiar”30. Deveria o juiz absolver também aqui ?
Pode-se argumentar que são casos imaginários.
A resposta é: são reais, aconteceram, apenas deixamos de nominar maiores detalhes e fizemos algumas adaptações ao tema discutido.
De se ver que a realidade dos fatos é mais complexa do que teorias generalistas e desconectadas da compreensão efetiva do que é “modelo acusatório”.
Nesse ponto, reportamos novamente ao que disse o Ministro Rogério Schietti no julgado acima, que coincide com o que já sustentamos há muito: “A submissão do magistrado à manifestação final do Ministério Público, a pretexto de supostamente concretizar o princípio acusatório, implicaria, em verdade, subvertê-lo, transmutando o órgão acusador em julgador e solapando, além da independência funcional da magistratura, duas das basilares características da jurisdição: a indeclinabilidade e a indelegabilidade”.
Portanto, por intermédio da regra do art. 385 do CPP não só há uma confirmação de um modelo acusatório, como entendemos que deve ser declarada inconstitucional uma lei que eventualmente altere a norma e comento e disponha de forma expressa que seja vedado ao juiz condenar nos casos em que o Ministério Público pedir a absolvição ou trouxer uma manifestação favorável à pretensão defensiva quando assim entender, na condição de custos iuris.
Exatamente por isso é que os julgados atuais do STJ e do STF reforçam tudo que foi dito até aqui, como se vê, também exemplificativamente:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. VALIDADE. MANIFESTAÇÃO DO PARQUET PELA DESPRONÚNCIA. AUSÊNCIA DE VINCULAÇÃO DO MAGISTRADO. OFENSA AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. INOCORRÊNCIA. RATIO ESSENDI DO ART. 385 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – CPP. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. “Consoante jurisprudência desta Corte, o pedido de absolvição do Ministério Público não vincula o julgador, que decide com base no princípio do livre convencimento motivado, sem que daí se extraia qualquer ofensa ao princípio acusatório” (AgRg no HC n.789.674/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 7/2/2023, DJe de 13/2/2023).
2. O acordão impugnado, acertadamente, aplicou a ratio essendi do art. 385 do CPP à decisão de pronúncia, pois o fato de o Magistrado ter pronunciado o paciente, quando o Parquet requereu a sua impronúncia, não ofende o Princípio Acusatório.
3. Agravo regimental desprovido.(Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 871.214-SC, STJ,5ª Turma, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 13.2.2025, publicado no DJ em 17.2.2025)
[…] 5. O julgador não está vinculado às manifestações do Ministério Público, mesmo quando os promotores apresentam entendimentos divergentes. No sistema processual penal brasileiro, o juiz tem o poder de decidir com base no livre convencimento motivado, não sendo obrigatória a concordância com o parecer ministerial.[…] (Agravo em Recurso Especial nº 2.453.601-SP, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Daniela Teixeira, julgado em 12.12.2024, publicado no DJ em 16.12.2024)
[…] 1. Conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “a circunstância de o Ministério Público requerer a absolvição do Acusado, seja como custos legis, em alegações finais ou em contrarrazões recursais, não vincula o Órgão Julgador, cujo mister jurisdicional funda-se no princípio do livre convencimento motivado, conforme interpretação sistemática dos arts. 155, caput, e 385, ambos do Código de Processo Penal. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça”. (HC n. 588.036/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 22/3/2022, DJe de 28/3/2022.). (AgRg no HC n. 768.209/PE, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/10/2022, DJe de 28/10/2022.) No mesmo sentido: AgRg no AREsp n. 2.363.953/SC, Relator Ministro RIBEIRO DANTAS, Quinta Turma, julgado em 5/9/2023, DJe de 12/9/2023). […] (Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 940.114-AP , STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 7.10.2024, publicado no DJ em 14.10.2024)
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO PRIVILEGIADO. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE REVISÃO CRIMINAL. MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA ABSOLVIÇÃO. NÃO VINCULAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.(Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 240.536, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, sessão virtual de 10.5.2024 a 17.5.2024, publicado no DJ em 22.5.2024)
[…] 1. O art. 385 do Código de Processo Penal é compatível com o sistema acusatório e não foi derrogado pelas inovações acrescidas ao art. 3º-A do mesmo diploma legal pela Lei n. 13.964/2019. Desse modo, ainda que o Ministério Público manifeste pedido absolutório, é possível haver decisão condenatória, sem que isso importe em ofensa ao princípio acusatório ((ut, AgRg no AREsp n. 2.363.953/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe de 12/9/2023.) […] (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 2.090.317-SC, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 12.12.2023, publicado no DJ em 15.12.2023)
6. Considerações finais. Diante de todo o exposto, tendo como um dos dois pilares fixos e indeclináveis a separação do acusador e do julgador, o disposto no art. 385 do CPP não apenas se conforma mas, especialmente, confirma o modelo acusatório. Modificar esse dispositivo para gerar uma vinculação eventual implicará, aí sim, no malferimento do mencionado modelo.
São as nossas considerações, salvo melhor juízo.
1 Art. 385, CPP. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
2 Andrade, Mauro Fonseca. Sistemas Processuais Penais Penais e seus Princípios Reitores, 2ª ed., Curitiba: Juruá.
3 Entretanto, temos notado “alguns traços” desse formato em apurações criminais de competência penal originária do STF, o que, em nossa compreensão, viola frontalmente um modelo com base minimamente de natureza acusatória.
4 Pacelli, Eugênio; Fischer, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 17ªed, 2025, Salvador: Juspodivm, item 282.3.
5 “Estos diez principios, ordenados y conectados aquí sisetmáticamente, definen – con cierto forzamiento lingüístico – el modelo garantista de derecho o de responsabilidad penal, esto es, las reglas del juego fundamentales del derecho penal”. Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón. Editorial Trotta, 4 ed. Madrid. 2000, p. 93.
6 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón. Editorial Trotta, 4 ed. Madrid. 2000, p. 96.
7 Ferrajoli, Luigi. Per un Pubblico Ministero come Instituzione di Garanzia. In: Fischer, Douglas e outros (org) Garantismo Penal Integral. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2017, 4ed., p. 33 e ss.
8 Conforme tradução do texto na mesma obra por Eduardo Pelella (op. Cit., p. 47 e ss), “[…] E um Ministério Público deve ser capaz de desenvolver e concluir suas investigações ou controles, independentemente do consenso da maioria ou do governo, que não pode tornar verdadeiro o que é falso ou falso o que é verdadeiro. Tudo isso se aplica a todas as funções do Ministério Público: tanto é assim que podemos dizer, inversamente, que seria inadequado confiar ao Ministério Público funções que requerem uma organização burocrática ou hierarquizada, ou que não fossem a garantia dos direitos, ou que não consistissem na investigação de alguma verdade processual. […] As novas funções do Ministério Público, por outro lado, retroagem sobre as próprias funções tradicionais de acusação pública, iluminando a validade garantista do princípio da obrigatoriedade da ação penal para tutela dos direitos das pessoas e dos interesses públicos considerados dignos de proteção pela lei. Disso resultam reforçadas as razões para a independência da figura do Ministério Público, em defesa da legalidade e da igualdade perante a lei […]
9 Op. cit., p. 43.
10 Souza, Alexander Araújo. O Ministério Público como Instituição de Garantia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 135.
11 Neste sentido, J.-P. Jean, Le modèle du magistrat du Ministère Public en Europe: un professionnel impartial, cit., p. 90; F. Tulkens, L’apport de la Convention européenne des droits de l’homme, in Cour de cassation (sous l’égide de), Quel avenir pour le Ministère Public?, Paris, Dalloz, 2008, p. 94. A Recomendação 2000/19 do Comitê de Ministros do Conselho Europeu sobre o Ministério Público deixou consignado que “les membres du ministère public doivent bénéficier de l’indépendance ou de l’autonomie nécessaire à l’exercice de leur action e notamment pouvoir agir quels que soient les intérêts en cause «sans ingérence injustifiée» de la part de tout autre pouvoir, qu’il s’agisse de l’exécutif ou du législatif mais aussi du pouvoir économique et du pouvoir local.” (Reccommandation nº 2000/19 du Comité des ministres du Conseil de l’Europe sur le ministère public, 6 oct. 2000, Comm. du point 11).
12 A propósito, já em 1981, a Recomendação da Comissão das Nações Unidas intitulada “independência da Justiça e direitos humanos” sublinhou a necessidade de independência funcional dos membros do Ministério Público: “(…) dont le courage et la conscience avec lesquels ils s’acquittent de leur devoir professionnel sont indispensables (…) pour garantir la justice, la liberté et le respecte de la légalité, ainsi que la protection des droits de l’homme dans toute la societé.”(Reccommandation de la Commission de l’ONU “indépendance de la justice et droits de l’homme”, Titre VIII, art. 29, publiée in G.P. 1981, 25-26 avril 1981, p. 21).
13 Como bem afirmou L. Ferrajoli, “nessuna maggioranza, per quanto schiacciante, può rendere legittima la condanna di un innocente o sanare un errore commesso ai danni di un solo cittadino. E nessun consenso politico – del parlamento, o della stampa, o dei partiti o della pubblica opinione – può surrogare la prova mancante di un’ipotesi accusatoria.” (Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale, cit., p. 553).
14 Souza, Alexander Araújo. O Ministério Público como Instituição de Garantia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 138.
15 Mazzuoli, Valério; et alli. O controle de convencionalidade pelo Ministério Público, 2020, p.164 -165.
16 Fischer, Douglas; Pereira, Frederico Valdez. Obrigações Processuais Penais Positivas e as decisões das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos. 2023, 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
17 Numa das condenações sofridas pelo Brasil na Corte IDH (Caso Pimenta Sales), de 30.6.2022, houve a reafirmação do entendimento do Tribunal no sentido de tem reconhecido “que la evaluación del plazo razonable se debe analizar en cada caso concreto, en relación con la duración total del proceso, lo cual podría también incluir la ejecución de la sentencia definitiva. De esta manera, ha considerado cuatro elementos para analizar si se cumplió con la garantía del plazo razonable, a saber: (i) la complejidad del asunto, (ii) la actividad procesal del interesado, (iii) la conducta de las autoridades judiciales, y (iv) la afectación generada en la situación jurídica de la presunta víctima” (§ 106 da sentença). Dissemos nós a respeito desse “quarto” requisito: “Uma informação essencial: esse quarto critério refere-se à afetação do interessado/vítima, que, dependendo do caso posto a julgamento, pode ser violação do direito da vítima do crime, violação do direito do processado ou mesmo do preso. Vai depender do caso concreto ! Noutras palavras, são os quatro quesitos concomitantemente que devem ser analisados concomitantemente, revelando-se assim que a proteção, a depender do caso de quem está demandando, não é apenas ao investigado/processado, mas também da própria vítima do crime não punido, na mesma dimensão da garantia convencional e constitucional. A razão ? Porque deve-se considerar que o art. 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos (ao tratar de “proteção judicial”) dispõe que “toda pessoa” (e não apenas “todo investigado ou processado”) “tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais” Fischer, Douglas. In: https://temasjuridicospdf.com/cuidado-duracao-razoavel-do-processo-para-quem-e-quais-criterios/ Acesso em 4 mar 2025.
18 Fischer, Douglas; Pacelli, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. Salvador:Judpodivm, 2025, 17ª ed., item 565.1.3.
19 Fischer, Douglas; Pacelli, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. Salvador:Judpodivm, 2025, 17ª ed., p. 213.
20 Vide anotações ao item 577.1.2 dos Comentários ao CPP, op. Cit. Além, as seguintes decisões, e.g.:[…] A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o Ministério Público dispõe de legitimidade processual para defender em juízo violação à liberdade de ir e vir por meio de habeas corpus. […] (Habeas Corpus nº 99.948-RS, STF, 2ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 14.5.2013, publicado no DJ em 21.6.2013). […] O pedido de reconhecimento de incompetência absoluta do Juízo processante afeta diretamente a defesa de um direito individual indisponível do paciente: o de ser julgado por um juiz competente, nos exatos termos do que dispõe o inciso LIII do art. 5º da Constituição Federral. O Ministério Público, órgão de defesa de toda a Ordem Jurídica, é parte legítima para impetrar habeas corpus que vise ao reconhecimento da incompetência absoluta do juiz processante de ação penal. Ordem parcialmente concedida para que, afastada a preliminar da ilegitimidade, o Tribunal Estadual aprecie o mérito como entender de Direito (Habeas Corpus nº 90.305-3-RN, STF, Rel. Min. Ayres Britto, publicado no DJ em 25.5.2007). […] A legitimidade para a impetração do habeas corpus é abrangente, estando habilitado qualquer cidadão. Legitimidade de integrante do Ministério Público, presentes o múnus do qual investido, a busca da prevalência da ordem jurídico-constitucional, e, alfim, da verdade […] (Habeas Corpus nº 79.572-GO, STF, Rel. Min. Marco Aurélio, 2ª Turma, publicado no DJ em 22.2.2002).
21 E há uma gama de casos em que a “jurisprudência é criada” por “repetição de meras ementas”, sem que se tenha decidido efetivamente o que foi informado nesse resumo. É o que já denominamos outrora de “hermentismo” (palavra inexistente, claro), que procura expressar num vocábulo “a hermenêutica das ementas”.
22 Fischer, Douglas; Pacelli, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. Salvador:Judpodivm, 2025, 17ª ed., item 385.1.
23 Dias. Jorge. Direito processual penal. 1. ed. Reimpressão, Coimbra, 2004, p. 195.
24 Goldschmidt, James. Problemas jurídicos e políticos do processo penal. Tradução Mauro Fonseca Andrade, Mateus Marques. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 70.
25 Andrade, Mauro Fonseca. Sistema Processuais Penais e seus Princípios Reitores. 2ª ed.. 2013. Curitiba/Juruá, p. 274-275.
26 Pereira, Frederico Valdez; Fischer, Douglas. Prova, Verdade e as obrigações processuais penais positivas. In: Salgado, Daniel de Resende e outros (org). Altos Estudos sobre a Prova no Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 61 e ss.
27 Pereira, Frederico Valdez; Fischer, Douglas. Obrigações Processuais Penais Positivas e as decisões das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos. 4 ed. Porto Alegre: Livaria do Advogado, p. 121.
28 Pereira, Frederico Valdez; Fischer, Douglas. Prova, Verdade e as obrigações processuais penais positivas. In: Salgado, Daniel de Resende e outros (org). Altos Estudos sobre a Prova no Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2023, p. 65.
29 Luigi Gerrajoli sustenta que “o Estado deve preocupar-se com as infraçõescometidas pelos senhores -corrupção, balanços falsos, valores sem origem e ocultos, fraudes ou lavagem de dinheiro, ao contrário do que normalmente se faz em relação à propaganda da necessária punição exclusiva dos crimes que “ocorrem nas ruas. (Ferrajoli, Luigi. Democracia y garantismo. Edición de Miguel Carbonell. Madrid: Editorial Trotta, 2008, p. 254)
30 Reportamos ao julgamento do Plenário do STF no RE nº 418.376-5, notadamente o voto do Ministro Gilmar Mendes.