A Lei nº 14.195, de 26.8.2021, dentre outras tantas alterações, modificou substancialmente as regras de “citações eletrônicas“ no Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16.3.2015).
No que se refere especificamente a essas alterações, aplica-se o art. 58, V, da Lei nº 14.195/2021: a lei entrará em vigor na data de sua publicação, que ocorreu eu 27.8.2021.
A pergunta central que nos interessa é: essas alterações aplicam-se ao processo penal também ?
Vamos lá, numa análise rápida e rebus sic stantibus.
O CPC dispunha no art. 246 que a citação seria feita:
I – pelo correio; II – por oficial de justiça; III – pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório; IV – por edital; V – por meio eletrônico, conforme regulado em lei.
Agora a redação foi alterada:
Art. 246. A citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até 2 (dois) dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça. I – (revogado); II – (revogado); III – (revogado); IV – (revogado); V – (revogado).
§ 1º As empresas públicas e privadas são obrigadas a manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente por esse meio.
§ 1º-A A ausência de confirmação, em até 3 (três) dias úteis, contados do recebimento da citação eletrônica, implicará a realização da citação: I – pelo correio; II – por oficial de justiça; III – pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório; IV – por edital.
§ 1º-B Na primeira oportunidade de falar nos autos, o réu citado nas formas previstas nos incisos I, II, III e IV do § 1º-A deste artigo deverá apresentar justa causa para a ausência de confirmação do recebimento da citação enviada eletronicamente.
§ 1º-C Considera-se ato atentatório à dignidade da justiça, passível de multa de até 5% (cinco por cento) do valor da causa, deixar de confirmar no prazo legal, sem justa causa, o recebimento da citação recebida por meio eletrônico.
§ 4º As citações por correio eletrônico serão acompanhadas das orientações para realização da confirmação de recebimento e de código identificador que permitirá a sua identificação na página eletrônica do órgão judicial citante.
Observe-se que o “meio eletrônico“, que era a última opção, passou a ser a primeira, sempre dependendo de“ regulação em lei“.
Ou seja, no processo civil, somente no caso de não haver a confirmação (do citando) em até três dias úteis, contado do recebimento da citação eletrônica é que se realizará, então, a tentativa de citação pelos, digamos assim, “meios tradicionais“ até então aplicados.
Em princípio, a cláusula do art. 3º do CPP sempre permite a interpretação extensiva ou analógica: ”Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.
Conforme sustentamos na companhia do Professor Eugênio Pacelli, “fala-se em interpretação extensiva quando o intérprete está autorizado a estender o âmbito de aplicação previsto expressamente na norma, de tal maneira que o sentido nela explicitado seja ampliado para atingir situações não contempladas expressamente, por omissão do legislador, seja deliberada, seja inconsciente. Quando se quer, por exemplo, atribuir determinado direito ao homem, a interpretação deve também se estender à mulher, desde que, é claro, se trate de situações de igualdade entre ambos, e, mais, que não se trate de norma incriminadora (matéria penal)”. E prosseguimos assentando que “por seu turno, analogia é o meio de autointegração com o qual se aplica às situações não previstas na norma jurídica uma regra específica elaborada para outra hipótese fática. Na analogia, portanto, a solução é encontrada mediante a criação de outra norma – criada pelo intérprete –, inicialmente destinada a regular apenas as situações nela descritas, enquanto na interpretação extensiva a solução é dada na e pela mesma regra legal. Pensamos que, a rigor, a distinção mais relevante ocorre apenas entre analogia e interpretação extensiva, na medida em que somente elas é que ostentam critérios efetivamente distintos para a solução dos problemas pendentes de regras específicas. Interpretação analógica não deixa de ser tanto um recurso típico da interpretação extensiva, no ponto em que oferece solução dentro do mesmo contexto legal, quanto também da própria analogia, já que a situação de fato por ela descoberta decorreria de um processo lógico típico da analogia (qualquer, de outro modo etc.)”. (Comentários ao CPP e sua Jurisprudência 13º edição, 2021, p. 29-30).
Não esqueçamos que o CPP tem regras específicas e relevantes no que se refere às intimações e citações:
Art. 798. Todos os prazos correrão em cartório e serão contínuos e peremptórios, não se interrompendo por férias, domingo ou dia feriado.
§ 1º Não se computará no prazo o dia do começo, incluindo-se, porém, o do vencimento.
§ 2º A terminação dos prazos será certificada nos autos pelo escrivão; será, porém, considerado findo o prazo, ainda que omitida aquela formalidade, se feita a prova do dia em que começou a correr.
§ 3º O prazo que terminar em domingo ou dia feriado considerar-se-á prorrogado até o dia útil imediato.
§ 4º Não correrão os prazos, se houver impedimento do juiz, força maior, ou obstáculo judicial oposto pela parte contrária.
§ 5º Salvo os casos expressos, os prazos correrão:
a) a intimação;
b) da audiência ou sessão em que for proferida a decisão, se a ela estiver presente a parte;
c) do dia em que a parte manifestar nos autos ciência inequívoca da sentença ou despacho.
No processo penal, os prazos correm da intimação (seja na forma da alínea “a” ou da alínea “b” do § 5º do art. 798 do CPP) e não poderemos cogitar de imposição de penalidades (tal como agora prevista no § 1º-C – embora sempre defendamos que, em lei específica, deveria ser prevista a hipótese para casos claros de violação da boa-fé objetiva também no processo penal para “as partes”).
Temos que visualizar que, na alínea “c” do § 5º do art. 798 do CPP, há previsão de que é valida a citação ou intimação contando-se o prazo “do dia em que a parte manifestar nos autos ciência inequívoca da sentença ou despacho” (analisamos detalhadamente essa sequência de atos nos itens 798.4 e seguintes dos Comentários ao CPP 2021, p. 1923 e ss).
Tratando especificamente do modo de contagem dos prazos, lá dissemos que “as regras anteriores do CPC de 1973 e as da Lei nº 13.105/2015 são inaplicáveis. No processo penal, o modo é diverso: os prazos são contados da data da intimação para a realização do ato processual (§ 5º, a), independentemente da ulterior juntada de mandado, carta precatória ou carta de ordem. Além disto, é irrelevante o número de réus: os prazos são comuns, contando-se das respectivas intimações, e não da juntada aos autos do último aviso de recebimento ou mandado citatório cumprido. Não se pode aplicar subsidiariamente o disposto no art. 231, CPC de 2015/art. 241, CPC de 1973 ao processo penal. Somente se pode acorrer a outras regras diante de eventual omissão no procedimento processual penal próprio (art. 3º, CPP). Como há regra específica, inviável a aplicação subsidiária do sistema do processo civil, malgrado, diga-se, se encontrem alguns precedentes (e, por isto, equivocados, data venia) nesse sentido”.
Dissemos acima ainda: o CPC agora alterou a ordem, a primeira hipótese de é a eletrônica, até então era a última.
O CPP prevê seus meios. O primeiro deve ser a pessoal “por mandado” ou “em audiência”, sendo que, sendo de outro modo com ciência inequívoca, poderia ser enquadrada a de forma eletrônica.
Nos Comentários alertamos ainda que, em nossa compreensão, “todas as situações anteriormente vistas são excepcionadas pela última regra: se a parte manifestar ciência inequívoca do teor da sentença ou decisão é nesse momento que se considerará realizada a intimação, adotando-se o modo de contagem previsto no § 1º” (item 798.4.3. Prazo contado da data da inequívoca ciência).
Claro que, nesse caso, depende de uma ação positiva da parte em manifestar sua ciência inequívoca do ato, de modo que seria dispensável a realização pelos outros meios previstos anteriormente.
Não esqueçamos ainda que, tratando da “comunicação eletrônica dos atos processuais”, o art. 5º da Lei nº 11.419/2006 dispõe que “as intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2º desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico“, bem assim seu § 1º estatui que “considerar-se-á realizada a intimação no dia em que o intimando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certificando-se nos autos a sua realização“.
É fato que a regra acima não trata de citações, apenas de intimações (lato sensu).
Mas diante de todas considerações traçadas, podemos cogitar que as citações e intimações também no processo penal sejam feitas de forma eletrônica. Ou seja, não vemos problema, embora não previsto expressamente em no Código de Processo Penal.
Importante destacar que sempre (foi dito: sempre !) se deverá ter a garantia de que o acusado (quando citado) ou réu (quando intimado) tenha ciência inequívoca do ato e que esse meio utilizado não lhe traga efetivamente prejuízo algum para a adoção das medidas cabíveis para o exercício de sua ampla defesa.
Basta imaginar que receber a cópia da denúncia de forma eletrônica ou de forma “física“ não faz, tecnicamente, diferença. Talvez até auxilie no momento em que tiver que “compartilhar“ o documento com quem fará sua defesa técnica no tempo mais expedido do que faria “pelo meio tradicional“.
Há se considerar ainda que a celeridade/eficiência (sem prejudicar jamais a efetiva garantia da ampla defesa, vamos insistir nesse ponto) é princípio não só constitucional (art. 37, CF/88), como também, complementado pelo dever de cooperação, está expressamente estampado no CPC (Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência), aplicáveis perfeitamente ao âmbito do processo penal (art. 3º, CPP) com as devidas adaptações.
Já tivemos oportunidade de deixar bem expresso que “num procedimento processual penal (investigativo ou já ação penal), a defesa não tem qualquer dever de cooperar quanto ao objeto da discussão. Ou seja, não tem dever de cooperar e produzir provas contra o interesse do réu ou investigado. Há se manter intangível o princípio “nemo tenetur se detegere”, na medida em que o ônus da prova acerca da autoria e materialidade é da acusação. A cooperação no processo não importará jamais produção de provas contra os interesses da defesa, mas não adotar procedimentos írritos com a finalidade de atrapalhar a busca das provas essenciais ao processo. Significa, apenas, que as partes deverão agir de modo a não comprometer o regular andamento do processo, já que o “fim da colaboração está em servir de elemento para organização de um processo justo idôneo a alcançar uma decisão de mérito justa e efetiva” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribumais, 2016, p. 101), inclusive em âmbito processual penal. Ou, como dizem ainda os mesmos autores, o “Estado Constitucional é um Estado marcado pelo seu dever de dar tutela aos direitos, com o que deve promover os fins ligados à pessoa humana e não antepor barreiras para o seu adequado desenvolvimento” (op. cit., p. 101). A equação é simples: por meio desse standart de comportamento, estimula-se e impõe-se que as partes adotem condutas compatíveis (e não írritas) para o desenvolvimento efetivo de seus papéis, inclusive na produção probatória. Sem excessos, nem deficiências. Sem abusos, muito menos prejuízos, compreendendo-se que o processo é instrumento para a efetiva realização do direito material, que se constitui naquilo que foi possível reconstruir e de forma célere no âmbito do processo, sobre o que se debruçará o juiz para decidir à luz do sistema vigente” (Comentários ao CPP, 2021, p. 1388-1389).
Esse entendimento de necessária colaboração das partes vem sendo reiteradamente sufragado pela jurisprudência do STF (v.g. Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 178.041/PR, STF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 4.3.2021, publicado no DJ em 8.3.2021) e também do STJ (v.g. Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 658.016/AP, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 20.4.2021, publicado no DJ em 26.4.2021).
Não se pode perder de vista também que há uma garantia de certificação na própria alteração da Lei nº 14.195/2021 ao prever (vide destaque já na origem do presente texto) “as citações por correio eletrônico serão acompanhadas das orientações para realização da confirmação de recebimento e de código identificador que permitirá a sua identificação na página eletrônica do órgão judicial citante“ (§ 4º). E se essa confirmação não for realizada no prazo de até 3 dias úteis (do ato de recebimento da citação eletrônica), aí terá que ser feito o procedimento de citação conforme a ordem prevista nas alíneas do § 1º-A do art. 246 do CPC.
Ou seja, tecnicamente, a citação por meio eletrônico pode trazer uma celeridade processual sem que haja prejuízo algum para a realização da efetiva ampla defesa, até porque sempre se admitiu a validade do ato quando demonstrada a ciência inequívoca da decisão.
Em adendo posterior à postagem originária, acrescento que olvidei de referir o art. 6º da Lei nº 11.419, que dispõe que “observadas as formas e as cautelas do art. 5º desta Lei, as citações, inclusive da Fazenda Pública, excetuadas as dos Direitos Processuais Criminal e Infracional, poderão ser feitas por meio eletrônico, desde que a íntegra dos autos seja acessível ao citando”.
De fato, há aqui uma exceção da regra geral da lei do processo eletrônico.
Entretanto, mesmo que não revogada ou ressalvada expressamente essa disposição (aparentemente contrastante com o CPP), não parece incompatível essa ideia de celeridade, na medida em que, recebendo a citação de forma eletrônica, se o citando não fizer a “confirmação“ nos moldes em que exigido e “orientado“, obviamente que não se lhe poderá impor qualquer ônus processual (muito menos a penalidade prevista no § 1º-C do art. 246 do CPC pode ser aplicada extensivamente no processo penal).Em razão dessa “ausência de confirmação“, a consequência será a necessidade de adoção da providência de citação tradicional, por mandado (ao invés de receber eletronicamente a cópia da denúncia, será pelas mãos do Oficial de Justiça). Ou seja, dependerá ainda da caracterização da “ciência inequívoca” do ato, voluntariamente feito pelo citando.
Em síntese, e mais uma vez afirmando se tratar de uma conclusão inicial diante da novidade trazida, concluímos que é possível cogitar a aplicabilidade dessa modalidade de ciência dos atos processuais – inclusive citação – por meio eletrônico também ao processo penal, por força do art. 3º do CPP, desde que não exista qualquer possibilidade de prejuízo efetivo ao réu.
Como dito, se “não confirmada a citação eletrônica“, deverá ser feita por mandado. São apenas 3 dias úteis, que poderão acelerar dias e dias, sobretudo quando necessária a expedição de carta precatória (mesmo que eletrônica) para a providência.
Evidente que o ideal é que houvesse expressa inclusão desse sistema também no processo penal (de 1941 até hoje, muitas tecnologias foram incorporadas também ao processo penal, essa poderia ser mais uma), mas nunca impondo sanções.
Salvo melhor juízo sempre!