Douglas Fischer e Carlos Gustavo Coelho de Andrade
Em texto de nossa autoria (https://temasjuridicospdf.com/juri-e-absolvicao-contra-a-prova-dos-autos-clemencia-absoluta-ou-arbitrio/), também anteriormente na Revista da Emagis (https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=2110), procuramos demonstrar, dialeticamente, que não há como se sustentar – constitucional e convencionalmente – a total impossibilidade de recurso quando a absolvição se fundar exclusivamente no quesito genérico e o decreto for absolutamente discrepante da prova dos autos (é dizer: a decisão é manifestamente contrária à prova dos autos).
Por coincidência, poucos dias após a publicação do texto (sujeito a todas as críticas, evidentemente), vimos decisão da 1ª Turma o STF (HC nº 178.777, por maioria, em 29.9.2020) reconhecer a impossibilidade de o Ministério Público recorrer de decisão do Tribunal do Júri que absolveu réu com base em quesito absoluto genérico.
A decisão (sem a participação agora do Ministro Luiz Fux, que tem entendimento contrário ao que firmado, pois na Presidência do STF) cassou a decisão do TJMG que determinara novo júri de pessoa que tentara matar a golpes de faca sua esposa ao tentar sair de um culto religioso por suposta “violação da honra”. Detalhe relevante: o réu foi confesso pela tentativa induvidosa de “feminicídio”, porém absolvido “por clemência”.
Poucas horas depois de anunciado referido julgamento, foi incluído em pauta pelo Ministro Gilmar Mendes o Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.225.185, com data prevista para 9.10.2020, que trata exatamente do tema, assim resumido
RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI E SOBERANIA DOS VEREDICTOS (ART. 5º, XXXVIII, C, CF). IMPUGNABILIDADE DE ABSOLVIÇÃO A PARTIR DE QUESITO GENÉRICO (ART. 483, III, C/C § 2º, CPP) POR HIPÓTESE DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS (ART. 593, III, D, CPP). ABSOLVIÇÃO POR CLEMÊNCIA E SOBERANIA DOS VEREDICTOS. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.
Vamos trazer aqui argumentos complementares a tudo que já posto anteriormente.
Importante referir também o Caso Roche Azaña x Nicarágua, decisão da Corte Interamericana de direitos Humanos, de 3.6.2020 (https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_403_esp.pdf).
O caso concreto, submetido à Corte IDH em 24.4.2019, pela Comissão Interamericana tratava do Caso “Pedro Bacílio Roche Azaña e seu irmão” contra o Estado da Nicarágua, em que havia sérios elementos de “execução” do envolvido e seu irmão no dia 14.4.1996 em consequência de disparos proferidos por agentes estatais contra o veículo em que eram transportados e a bordo do qual passaram dos controles migratórios sem que (ao que se presume) tenham atentado ao comando de pararem. Concluiu-se que o uso força legal (fuzis tipo AK) foi arbitrário, contrário aos princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, bem assim violou os direitos humanos e à vida das vítimas.
A Comissão destacou violações aos direitos fundamentais das vítimas e seus familiares por três fundamentos essenciais: a) falta de participação de Patrício Roche Azaña (sobrevivente, sendo que seu irmão Pedro faleceu pelos mesmos disparos) contra os presumidos autores; b) falta de motivação do veredito emitido pelos jurados que declararam a inocência das pessoas processadas; c) a impossibilidade legal de apelar de referido veredito.
A Comissão (não a Corte, que fique claro) sustentou que a ausência absoluta de motivação do veredito e a declaração de inocência NÃO deram condições de se estabelecer se tanto o processo como a conclusão permitiam saber se o uso letal da força foi legítima conforme os standards de finalidade legítima, necessidade e proporcionalidade, e que, além disso, constituiu uma fonte de denegação de justiça. A Comissão concluiu que o Estado violou os direitos às garantias judiciais e proteção judicial (consagrados nos artigos 8.1 e 25, em relação com o artigo 1.1, todos da Convenção), tudo em detrimento dos interesses das vítimas (atenção para o que sempre dizemos a respeito do assunto).
Em suas observações finais, a Comissão destacou que, malgrado os vereditos dos jurados tenham sido exarados sob a íntima convicção, não são por si só violadores da Convenção. O mais relevante é que, para que a conclusão NÃO SEJA ARBITRÁRIA, é que quem valora o veredito possa reconstruir, à luz das provas e do debate judicial, qual foi o curso lógico da decisão. Considerou que, no presente caso, a decisão absolutória não satisfez referido padrão, na medida em que NÃO se adotaram salvaguardas para um resultado que NÃO SEJA ARBITÁRIO.
No tópico a.3 (parágrafo 81 da sentença, que tratava da ausência de recurso contra a absolvição), a Comissão sustentou que a legislação da Nicarágua estabelecia a impossibilidade de recurso do Tribunal dos Jurados (tal como como decidiu a 1ª Turma do STF no HC 178.777, aqui no Brasil há poucos dias), procedimento esse que “não ofereceu as garantias suficientes para analisar a decisão e assegurar que ela não foi arbitrária nem violadora dos direitos e às garantias judiciais e à proteção judicial”.
De sua parte, a Corte assinalou – um dos argumentos – que o direito de acesso à justiça (dentre os quais os recursos) “deve assegurar, em tempo razoável, o direito das vítimas presumidas ou seus familiares que se faça todo o necessário para conhecer a verdade do que ocorreu, investigando, julgando e, se for o caso, sancionar os eventuais responsáveis” (parte final do parágrafo 84).
Tratando do “dever de motivação das decisões dos jurados e ausência de recursos contra a absolvição (item b.2, parágrafo 95), são elucidativas as considerações.
De fato, a falta de exteriorização da fundamentação do veredito não vulnera em si mesma a garantia da motivação, já que, em toda decisão sempre há uma motivação, mesmo no caso dos jurados, que não precisam exteriorizá-la. Mas é necessário que seja possível extrair-se uma racionalidade mínima no cotejo do veredito absolutório com a prova dos autos, sob pena de legitimar-se o arbítrio.
No caso concreto, não houve resolução específica pela Corte das conclusões da Comissão, na medida em que a Corte “considera que não é necessário analisar e nem pronunciar-se especificamente sobre a alegada falta de motivação da decisão dos jurados ou a alegada falta de recurso da absolvição toda vez que, ao não serem notificadas da existência do processo, as vítimas se viram impedidas de intervir processualmente na obtenção de justiça” (parágrafo 96).
Pode-se argumentar que a Corte não decidiu se a ausência de recurso (em determinadas situações) violaria a Convenção Interamericana.
De fato, ela impôs a condenação já com a primeira premissa, na medida em que a responsabilização foi só pelo fato de não se ter permitido às vítimas (uma delas sobrevivente e os familiares) intervirem no processo, inclusive (se fosse o caso) mediante o recurso. Mas é necessário que seja possível extrair-se uma racionalidade mínima no cotejo do veredito absolutório com a prova dos autos, sob pena de legitimar-se o arbítrio.
Mas não se pode negar a importância da fundamentação da Comissão, que deixou bem clara sua conclusão nesse sentido.
De qualquer modo, relevantes ainda as expressas considerações do Juiz EUGENIO RAÚL ZAFFARONI (fls. 49 e seguintes do julgado).
Começou expressamente afirmando que, “en el presente caso corresponde recalcar que la responsabilidad internacional del Estado en cuanto a la violación del Derecho Humano a la vida, no surge del mero resultado de las acciones de sus agentes en la supuesta aplicación de la fuerza de las armas de guerra suministradas por el propio Estado, sino de la posterior y arbitraria impunidad de éstos”.
Vamos enfatizar: a responsabilidade decorreu, em sua compreensão, da arbitrária impunidade dos agentes !
Mas sigamos na (sua) fundamentação.
Tal como defendemos na companhia do Professor Frederico Valdez Pereira (Obrigações Processuais Penais positivas, 2 ed, 2019), bem assim no texto antes referido, disse o e. Professor Zaffaroni em seu voto que “es deber del Estado agotar los recursos para investigar y sancionar los delitos cometidos en su territorio y que afectan bienes jurídicos que, desde la perspectiva del derecho internacional de los Derechos Humanos, sean también derechos cuya protección le impone la CADH”. Exatamente como também defendemos – que não se tratam de obrigações de resultado, mas de meio – , complementou que “esta Corte no condena ni exige la condena penal de los sujetos activos, sino que ante la notitia criminis que consta en las actuaciones ante el Tribunal, éste requiere que se haya investigado y, sólo si correspondiese condenado, por lo que prima facie ante esto estrados aparece como un posible delito”.
Em conclusão, complementou que os autores agiram com altíssima probabilidade de um homicídio doloso (na pior das hipóteses culposo) e ficaram impunes sem que se desse uma explicação razoável alguma disso, é dizer, houve uma impunidade arbitrária.
Por essa razão é que “la impunidad que se señala en esta misma sentencia como violatoria del Derecho Humano a la vida y a la integridad física, que representa al mismo tiempo el incumplimiento estatal de la obligación impuesta por el derecho internacional de garantizar la vida de toda persona, al que se vincula el Estado en función de su condición de parte de la CADH”.
Vamos repetir para que não se esqueça que a justiça criminal tem dupla função: de servir como escudo e, igualmente, como espada dos direitos fundamentais (ao contrário do que vemos em alguns escritos, defendendo o processo penal exclusivamente como forma de proteção dos direitos fundamentais dos investigados/processados).
Para além de todos os argumentos que destacamos no texto anterior, vimos também aqui que a Comissão e, obiter dictum, também a Corte IDH entendem como desprotetivas dos direitos humanos (das vítimas!) uma absolvição arbitrária, sem qualquer elemento que ampare a conclusão dos jurados.
Admitir absolvições com base no (terceiro) “quesito genérico”, mesmo que a conclusão seja manifestamente contrária a todas as provas dos autos, é arbitrariedade, que não encontra amparo no devido processo legal (constitucional e convencional).
Arbitrariedade que se renovaria diante da negação do acesso a um recurso efetivo (art. 25 da CADH) para a tutela do direito das vítimas.
Como ressaltamos anteriormente, há um amplo campo de discricionariedade ofertado aos jurados na apreciação da prova e das teses de acusação e defesa, mas não uma prerrogativa aleatória de clemência, outorgando impunidade por mero ato de vontade. Muito menos para crimes hediondos, crimes de ódio, execuções sumárias e feminicídios. Menos ainda de forma irrecorrível.
Veja-se que até mesmo o direito de graça, atribuído constitucionalmente ao Presidente da República, é passível de sindicância e é limitado pela Constituição, não podendo ser exercitado quando se tratar de crimes hediondos, diante do mandado expresso de criminalização do art. 5º, XLIII:
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
De forma semelhante, o país assumiu compromissos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção de Belém do Pará, que restringem a possibilidade de qualquer dos órgãos e poderes estatais agraciarem com impunidade fatos que possam encerrar violações de direitos humanos, muito menos por mero ato de vontade, desconectado da prova colhida: ao revés, há um dever internacional de se investigar de forma adequada, tempestiva e eficiente e de proceder a um julgamento justo, onde as provas produzidas possam ser consideradas e valoradas por critérios racionalmente compreensíveis.
Ao admitirmos a concessão de “clemências voluntariosas” (“arbitrárias”) nessas situações abriremos mão da efetiva proteção dos direitos fundamentais. Inclusive com o aumento (dos já absurdos índices nacionais) de feminicídios, homicídios, etc., pois sempre poderão ser amparados pela absolvição arbitrária travestida de “clemência”.
Parece-nos que esse não é o que diz a Constituição Federal, muito menos a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Continuamos firmes e convictos de que a Suprema Corte brasileira considerará tais premissas ao decidir o tema em repercussão geral nº 1.087, reconhecendo a necessidade de proteção estatal do direito fundamental à vida e impedindo que a clemência arbitrária, causadora de absolvição manifestamente contrária à prova dos autos, torne-se irrecorrível.
Caso contrário, podemos esperar novas condenações do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos pela impunidade de violações de direitos humanos. E mais execuções sumárias, crimes de ódio, feminicídios e ações de grupos de extermínio, amparadas na certeza de que bastará ganhar a empatia, consciente ou inconsciente, de quatro jurados pelas impróprias motivações dos assassinos.