Com o advento da Lei nº 13.964/2019, alterou-se parcialmente a redação do art. 312 do CPP, que trata da prisão preventiva.
Agora consta expressamente o que há muito – e corretamente – a jurisprudência já vinha reconhecendo também como requisitos para a decretação de uma prisão preventiva (para além dos indícios da autoria e prova da materialidade): o chamado periculum libertatis (perigo de liberdade do agente que supostamente cometeu o crime) e o “fumus comissi delicti“.
Além de prever ainda a possibilidade de conversão em preventiva de uma medida cautelar menos gravosa (§ 1º do art. 312 c/c § 4º do art. 282, ambos do CPP), está expresso no § 2º que a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada (uma obviedade, até porque todas decisões devem ser motivadas) em “receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada“.
Veja-se que o requisito complementar do § 2º biparte-se, para, juntando-se ao “receio de perigo“, de forma alternativa, estejam também presentes a “existência concreta de fato novos“ ou “contemporâneos“ que justifiquem a aplicação da medida adotada.
O propósito aqui é analisar como é que, efetivamente, deve ser compreendida a contemporaneidade da medida cautelar.
Então vamos ser claros: invocar literalidades ou “conceituações“ de “dicionários de português“ pode levar, para assim dizer, a não tão boas compreensões e interpretações.
Conforme defendemos juntamente com Pacelli (Comentários ao CPP, 2021, 13ª ed, p. 910-911), ”além da necessária motivação e fundamentação, a decisão que decretar a preventiva deve levar em consideração a existência de fatos novos OU contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada. Embora possa parecer uma nova exigência legal, há muito esse requisito já era considerado como de demonstração essencial, notadamente pelos tribunais superiores, para a justificação de medidas extremas de prisões cautelares. De qualquer modo, o tema da atualidade do risco à ordem pública merece que se considere, na linha de precedentes, especialmente da Suprema Corte, a exigência de uma apreciação particularizada, devendo-se avaliar “se o lapso temporal verificado neutraliza ou não, em determinado caso concreto, a plausibilidade concreta de reiteração delituosa”. Ou seja, especialmente em delitos permanentes, embora as condutas originárias (antecedentes) da lavagem possam estar distantes do período atual, a manutenção de atos que configurem crime permanente (da própria lavagem) poderá autorizar a decretação da preventiva, desde que, mediante a devida fundamentação, demonstre-se a presença da necessidade e dos requisitos legais”.
Esse o ponto central: a contemporaneidade não está ligada necessariamente ao tempo do fato, mas, quando descoberto e iniciada a apuração do fato, se, nesse exato momento, esse decurso de prazo neutraliza ou não o elemento acerca da necessidade da preventiva mediante os demais requisitos.
Noutras palavras, se quando se descobrem eventuais indícios de autoria, faz-se necessária a prisão cautelar, mesmo que desse momento ao passado já tenha decorrido certo período que se possa dizer “não muito atual“. Essa atualidade não é, repitamos, do tempo do crime, mas do tempo do processo apuratório juntamente com os demais requisitos legais.
Atente-se que, notadamente em crimes complexos, um fato pode ter sido praticado já passado “bom tempo“, mas somente descoberto/apurado mais recentemente.
Fazer uma interpretação “literal“ de que o fato é “não contemporâneo“ (ou seja, exclusivamente pela ótica de cronos) com a medida cautelar eventualmente decretada implica numa interpretação que vem, indevidamente, favorecer – contra as próprias disposições legais e constitucionais de “proteção” diante da “necessidade” – aquele(s) que pratique(m) conduta(s) mais complexas ou de difícil apuração, mas que preencham os requisitos legais da prisão cautelar.
É que o se vê normalmente em delitos cometidos pela criminalidade organizada e/ou crimes de colarinho branco (sistema financeiro, sonegação fiscal, corrupção, lavagem de dinheiro, corrupção e demais delitos complexos contra similares), nos quais da descoberta e apuração dos fatos já transcorreu determinado prazo que não se pode dizer, exclusivamente pela ótica temporal transcorrida, sejam “contemporâneos“ (embora a abertura terminológica da expressão).
Essa é a razão pela qual entendemos absolutamente correta a interpretação no sentido a contemporaneidade “diz respeito aos motivos ensejadores da prisão preventiva e não ao momento da prática supostamente criminosa em si, ou seja, é desimportante que o fato ilícito tenha sido praticado há lapso temporal longínquo, sendo necessária, no entanto, a efetiva demonstração de que, mesmo com o transcurso de tal período, continuam presentes os requisitos (i) do risco à ordem pública ou (ii) à ordem econômica, (iii) da conveniência da instrução ou, ainda, (iv) da necessidade de assegurar a aplicação da lei penal“ (Agravo Regimental no HC n. 190.028, STF, 1ª Turma, Ministra Rosa Weber, publicado no DJ em 11.2.2021), compreensão que também foi firmada mais recentemente pelo STJ no julgamento do Habeas Corpus nº 661.801/SP (Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, unânime, julgado em 22.6.2021, publicado no DJ em 25.6.2021).
Na mesma linha foi a compreensão da 5ª Turma do STJ, para quem o “decurso de tempo entre a data dos fatos e a decretação da prisão não sustenta, por si só, a alegação de ausência de contemporaneidade apta a revogar a medida extrema, mormente porque, os indícios de autoria surgiram no decorrer da investigação, sendo a medida extrema contemporânea à identificação do réu e ao oferecimento da denúncia“ (Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 665.804/MT, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 8.6.2021, publicado no DJ em 14.6.2021).
Exatamente por isso, em complemento, em se tratando de delitos permanentes (como a lavagem de dinheiro, por exemplo), deve-se afastar a tese de “eventual ausência de contemporaneidade da medida, visto que os valores ilicitamente percebidos pelo recorrente ainda não foram inteiramente recuperados, de modo que, tendo em vista a amplitude e o grau de sofisticação das operações criminosas desveladas, pode-se presumir, com grau razoável de probabilidade, que esses valores ainda podem ser submetidos a novas condutas de lavagem de capitais“. […] (Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus nº 131.502/PR, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 15.12.2020, publicado no DJ em 17.12.2020).
A gravidade concreta aliada a outros fatores também pode ensejar essa interpretação: “não há se falar em ausência de contemporaneidade como argumento hábil a infirmar a necessidade de manutenção da prisão preventiva do recorrente”, pois “além de não ser relevante o lapso temporal transcorrido desde a data apontada como a da última conduta delituosa até a expedição do decreto prisional, o longo período de tempo pelo qual perdurou a prática das condutas criminosas, somado à extrema gravidade concreta da empreitada delitiva, impede o esvaziamento do periculum libertatis pelo mero decurso do tempo“. (Recurso em Habeas Corpus nº 131.011/RS, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 17.11.2020, publicado no DJ em 9.12.2020).
Não se olvide ainda que, ao se debater esse tema da contemporaneidade, tem-se que considerar que “as dinâmicas de perpetração e investigação de crimes de responsabilidade e de crimes contra a Lei de Licitações, de caráter mais burocrático, possuem dinâmica temporal diversa de outros crimes, como roubo, tráfico, homicídio. As investigações geralmente partem de conclusões extraídas por órgãos de controle, como tribunais de contas e controladorias, no bojo de procedimentos posteriores, que nunca ocorrem em paralelo aos fatos em apuração, o que gera uma aparente solução de continuidade entre a perpetração de crimes e a imposição de medidas acautelatórias. Esses crimes ocorrem no aparelho burocrático, no bojo de procedimentos administrativos, e só vêm a público após a instauração de outros procedimentos administrativos instaurados para fins de correição e de controle. Ao mesmo tempo, os administradores seguem suas atividades e, se dedicados à malversação de recursos públicos, seguirão constrangendo as práticas da boa administração, que só serão de conhecimento público muito tempo depois. Não há falar em falta de contemporaneidade entre o afastamento do cargo de prefeito em 2020 por fatos ocorridos em 2013, 2014 e 2015“. (Habeas Corpus nº 567.154/PB, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 23.6.2020, publicado no DJ em 30.6.2020).
E, de forma derradeira, dentro do propósito e dos limites aqui propostos, não se pode esquecer que (em nossa visão, corretamente) o STF assentou (por sua composição plenária e de forma unânime, já destacado também anteriormente) que “a aferição da atualidade do risco à ordem pública, como todos os vetores que compõem a necessidade de imposição da prisão preventiva, exige apreciação particularizada, descabendo superlativar a análise abstrata da distância temporal do último ato ilícito imputado ao agente. O que deve ser avaliado é se o lapso temporal verificado neutraliza ou não, em determinado caso concreto, a plausibilidade concreta de reiteração delituosa. A situação dos autos sinaliza que os atos atribuídos ao paciente teriam ocorrido de modo não ocasional, ultrapassando a marca de 7 anos de duração, com a ocorrência de repasses contínuos e com saldo a pagar, circunstâncias que sugerem o fundado receio de prolongamento da atividade tida como criminosa‘ (Habeas Corpus n. 143.333 – PR, STF, Plenário, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 12.4.2018, publicado no DJ em 21.3.2019).
Portanto, a contemporaneidade não é exclusivamente em relação cronológica do momento do fato, mas em face de, quando apurado, pelas particularidades do caso, há necessidade da prisão cautelar, pois deve-se avaliar se o lapso decorrido neutraliza ou não a necessidade da imposição da medida cautelar extrema.
Salvo melhor juízo, sempre.
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