Parece não haver dúvidas que existe(m) direito(s) à duração razoável do processo. A pergunta que se impõe fazer (e tentar esclarecer ao final) é: essa “garantia” é para proteção de quem ?
Normalmente ouve-se referências em julgados e em algumas parcelas da doutrina que essa seria uma “garantia individual” do investigado ou processado. Há quem proponha atenuantes genéricas (art. 66, CP) ou até mesmo a extinção do processo, inclusive com condenação firmada, quando o processo “estiver demorando demais”, pois tal circunstância seria um fator de “pena” para o próprio processado. Não vamos entrar discussão.
Na jurisprudência, vemos referências como essas. e.g.:
Penal e Processo Penal. Inquérito. Agravo Regimental. 2. Decisão de arquivamento parcial das investigações. Recurso interposto que busca o arquivamento integral. 3. Alegação de ausência de justa causa e de tramitação por prazo desarrazoado. 4. Possibilidade de trancamento de investigações pelo Poder Judiciário. Precedentes. 5. Direito do investigado à razoávelduração do processo. 6. Possibilidade de arquivamento mesmo em casos de possível declínio com base no precedente da QO na AP 937. 7. Demonstração do excesso de prazo e da ausência de elementos mínimos que justifiquem a continuidade das investigações. 8. Provimento do recurso, com o arquivamento integral das investigações. (Petição nº 8186, STF, 2ª Turma, Relator Min. Edson Fachin, Redator do acórdão Ministro Gilmar Mendes, publicado em 6.4.2021)
Penal e processo penal. Inquérito originário. Recurso contra decisão que declinou da competência para as instâncias inferiores. Alegação de excesso de prazo e da ausência de elementos mínimos de autoria e materialidade delitiva. Possibilidade de arquivamento de investigações pelo STF em casos de constrangimento ilegal ou de violação dos direitos do investigado. Precedentes. Necessidade de elementos mínimos de corroboração das declarações dos colaboradores premiados. Direito à razoávelduração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88). Provimento do recurso para determinar o arquivamento das investigações, ressalvada a possibilidade de reabertura caso surjam novas provas (art. 18 do CPP). (Agravo Regimental na Petição nº 7833, STF, Relator Ministro Edson Fachin, Redator do Acórdão Ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, publicado no DJ em 13.5.2021)
Não estamos enfrentando as conclusões de cada caso, mas as premissas, voltadas à proteção exclusiva dos investigados/processados.
Com efeito, desde a EC nº 45, a inserção do inciso LXXVIII ao art. 5º deixou expresso que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
E afirmamos de forma bem tranquila que esse direito humano (convencionalmente tratado) até nem precisaria “normatização” interna, pois, pelo menos a partir de 2004, já integrava o ordenamento jurídico com status constitucional, por força do disposto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
Mas estamos absolutamente tranquilos em assentar que, muito antes dessas noveis disposições constitucionais, o Brasil já se obrigara, por sua adesão voluntária, a obedecer o que previsto especialmente na Convenção America de Direitos Humanos, que garante em seu art. 7.5 que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
Deixa-se claro desde já que a discussão aqui posta não abrangerá também o tema de liberdade x duração de prisões cautelares.
O tema central é saber: quais são os requisitos para aferir a duração razoável do processo e para proteção de quem está(ão) direcionado esse princípio.
Encontramos em doutrina a seguinte referência:
[…] a doutrina dos sete critérios não restou expressamente acolhida pelo TEDH como referencial decisivo, mas tampouco foi completamente descartada, tendo sido utilizada pela Corte em diversos casos posteriores e servido de inspiração para um referencial mais enxuto: a teoria dos três critérios básicos; a saber:
a) a complexidade do caso;
b) a atividade processual do interessado (imputado);
c) a conduta das autoridades judiciárias.
Esses três critérios têm sido sistematicamente invocados, tanto pelo TEDH, como também pela Corte Interamericana de Direitos Humanos” (Lopes Jr, Aury. Direito Processual Penal, 2022, 17 ed., p. 113 (Esses argumentos são praticamente idênticos ao que consta em outra obra em coautoria com Gustavo Badaró, Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável, 2 ed)..
Adiante destaca (agora incorporando à argumentação a novel regra constitucional já retromencionada):
“Em síntese, o art. 5º, LXXVIII, da Constituição recepcionou o direito ao processo penal no prazo razoável, mas infelizmente a legislação ordinária (com meritórias exceções) em geral não fixou prazos com sanção, acolhendo assim a doutrina do não prazo, fazendo com que exista uma indefinição de critérios e conceitos. Nessa vagueza, cremos que quatro deverão ser os referenciais adotados pelos tribunais brasileiros, a exemplo do que já acontece nos TEDH e na CIDH:
• complexidade do caso;
• atividade processual do interessado (imputado), que obviamente não poderá se beneficiar de sua própria demora;
• a conduta das autoridades judiciárias como um todo (polícia, Ministério Público, juízes, servidores etc.);
• princípio da razoabilidade.
Ainda não é o modelo mais adequado, mas, enquanto não se tem claros limites temporais por parte da legislação interna, já representa uma grande evolução.(Op. cit., p. 115)
Veja-se que agora foi acrescido um ”quarto” requisito, o princípio da razoabilidade.
Nosso propósito aqui não é discutir quais são os “melhores critérios”, mas, no máximo, esclarecer o leitor, pois com todas as vênias, parece que a doutrina retromencionada (e às vezes citadas sem devido cuidado) não atentou para um detalhe relevantíssimo, que, em nosso juízo, modifica – e muito ! – a condução que se deva dar para a discussão da razoável duração do processo.
O motivo da redação desse brevíssimo texto decorreu de vários questionamentos apresentados por leitores em face de argumentos desenvolvidos junto com Frederico Valdez Pereira na obra Obrigações Processuais Penais Positivas e as decisões do TEDH e da Corte IDH, na qual, a partir da 3ª edição (2022), abordamos em detalhes as 10 primeiras condenações do Brasil na Corte Interamericana, sendo que recentemente foi divulgada a a 11ª condenação.
Vamos apresentar nossos argumentos (com as fontes, para quem sejam checadas na origem e o leitor tire as suas conclusões, não as “nossas conclusões”): parece que escapou à análise da doutrina a íntegra do que efetivamente decidido pela Corte Interamericana, especialmente quanto aos critérios para a definição de quando se está violando o direito a uma razoável duração do processo.
Iniciemos pela 11ª condenação, no caso Sales Pimenta vs. Brasil (sentença de 30 de junho de 2022, divulgada em outubro de 2022).
Vejamos os parágrafos 106 e 107 da sentença (confira aqui: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_454_por.pdf):
“b.2 Plazo razonable
106. La Corte ha señalado que el derecho de acceso a la justicia en casos de violaciones a los derechos humanos debe asegurar, en tiempo razonable, el derecho de las PRESUNTAS VÍTIMAS o sus familiares a que se haga todo lo necesario para conocer la verdad de lo sucedido e investigar, juzgar y, en su caso, sancionar a los eventuales responsables. Asimismo, una demora prolongada en el proceso puede llegar a constituir, por sí misma, una violación a las garantías judiciales”.
107. Asimismo, el Tribunal ha establecido que la evaluación del plazo razonable se debe analizar en cada caso concreto, en relación con la duración total del proceso, lo cual podría también incluir la ejecución de la sentencia definitiva. De esta manera, ha considerado cuatro elementos para analizar si se cumplió con la garantía del plazo razonable, a saber:
(i) la complejidad del asunto,
(ii) la actividad procesal del interesado,
(iii) la conducta de las autoridades judiciales, y
(iv) la afectación generada en la situación jurídica de la presunta VÍCTIMA.
La Corte recuerda que corresponde al Estado justificar, con fundamento en los criterios señalados, la razón por la cual ha requerido del tiempo transcurrido para tratar los casos y, en la eventualidad de que este no lo demuestre, la Corte tiene amplias atribuciones para hacer su propia estimación al respecto. El Tribunal reitera, además, que se debe apreciar la duración total del proceso, desde el primer acto procesal hasta que se dicte la sentencia definitiva, incluyendo los recursos de instancia que pudieran eventualmente presentarse”. (os destaques e grifos são nossos)
Atente-se que, sim, há um quarto requisito, mas, segundo o entendimento de muito tempo da Corte IDH, ele está direcionado com a análise da “afetação gerada na situação jurídica da VÍTIMA”, e não com o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade em si (considerando interesse do réu ou investigado).
Como temos a preocupação de informar tudo ao leitor (para que cada um tire suas conclusões, é preciso frisar isso), ao final do quarto requisito elencado na sentença acima há uma nota de rodapé, de número 183, que tem o seguinte teor: “La Corte ha afirmado que para determinar la razonabilidad del plazo se debe tomar en cuenta la afectación generada por la duración del procedimiento en la situación jurídica de la persona involucrada, considerando, entre otros elementos, la materia de la controversia. Cfr. Caso Asociación Nacional de Cesantes y Jubilados de la Superintendencia Nacional de Administración Tributaria (ANCEJUB-SUNAT) Vs. Perú, supra, párr. 148, y Caso Digna Ochoa y familiares Vs. México, supra, párr. 131 y nota al pie 209”.
No caso da segunda remissão, o Caso Digna Ochoa:”El 2 de octubre de 2019 la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (en adelante “la Comisión Interamericana” o “la Comisión”) sometió a la jurisdicción de la Corte el caso “Familiares de Digna Ochoa y Plácido Vs. México” (en adelante “el Estado” o “México”). De acuerdo con lo indicado por la Comisión, el caso se relaciona con la alegada existencia de irregularidades graves en la investigación de la muerte de la defensora de derechos humanos Digna Ochoa y Plácido (en adelante “Digna Ochoa”), ocurrida el 19 de octubre de 2001.
No §131 desse julgado consta a identidade de critérios: “131. La Corte ha establecido que la evaluación del plazo razonable se debe analizar en cada caso concreto, en relación con la duración total del proceso, lo cual podría también incluir la ejecución de la sentencia definitiva. Así, ha considerado CUATRO elementos para analizar si se cumplió con la garantía del plazo razonable, a saber: a) la complejidad del asunto; b) la actividad procesal del interesado207; c) la conducta de las autoridades judiciales, y d) la afectación generada en la situación jurídica de la presunta víctima”.(os destaques e grifos são nossos)
No processo retromencionado, ficou expresso nos parágrafos 98 e 99 da sentença Corte IDH (novembro de 2021):
98. La Corte ha establecido que, de conformidad con la Convención Americana, los Estados Partes están obligados a suministrar recursos judiciales efectivos a las víctimas de violaciones a los derechos humanos (artículo 25), recursos que deben ser sustanciados de conformidad con las reglas del debido proceso legal (artículo 8.1), todo ello dentro de la obligación general, a cargo de los mismos Estados, de garantizar el libre y pleno ejercicio de los derechos reconocidos por la Convención a toda persona que se encuentre bajo su jurisdicción (artículo 1.1).
99. El Tribunal ha señalado en su jurisprudencia reiterada que, en casos de privación de la vida, es fundamental que los Estados identifiquen, investiguen efectivamente y, eventualmente, sancionen a sus responsables, pues de lo contrario se estarían creando, dentro de un ambiente de impunidad, las condiciones para que este tipo de hechos se repitan. El deber de investigar es una obligación de medios y no de resultado, que debe ser asumida por el Estado como un deber jurídico propio, que no dependa única o necesariamente de la iniciativa procesal de las víctimas o de sus familiares o de la aportación privada de elementos probatorios. (os destaques e grifos são nossos)
No final do § 131 desse caso, ao tratar do quarto quesito (a afetação gerada na situação jurídica da vítima), há uma nova remissão, agora ao “Caso Olivares Muñoz y otros Vs. Venezuela, párr. 123”. Nessa sentença, está expresso que “el Tribunal ha establecido en su jurisprudencia constante que una demora prolongada enel proceso puede llegar a constituir, por sí misma, una violación a las garantías judiciales. El Tribunal ha establecido que la evaluación del plazo razonable se debe analizar en cada caso concreto, en relación con la duración total del proceso, lo cual podría también incluir la ejecución de la sentencia definitiva. Así, ha considerado cuatro elementos para analizar si se cumplió con la garantía del plazo razonable, a saber: a) la complejidad del asunto; b) la actividad procesal del interesado; c) la conducta de las autoridades judiciales, y d) la afectación generada en la situación jurídica de la presunta víctima”. (os destaques e grifos são nossos – íntegra aqui(https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_415_esp.pdf )
Analisemos então outro caso brasileiro, a 9ª condenação, no Caso “Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antôniod e Jesus e seus familiares vs Brasil” – sentença de 15.7.2022). Está no § 223 (agora em português, aqui https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_por.pdf): “223. O Tribunal também já estabeleceu que a avaliação do prazo razoável deve ser analisada em cada caso concreto, em relação à duração total do processo, o que poderia também incluir a execução da sentença definitiva. Dessa forma, vem considerando QUATRO elementos para analisar se foi cumprida a garantia do prazo razoável, a saber: (i) a complexidade do assunto; (ii) a atividade processual do interessado; (iii) a conduta das autoridades judiciais; e (iv) o prejuízo à situação jurídica da suposta vítima”.(os destaques e grifos são nosso)
Na condenação brasileira no Caso Xucuru (sentença de 5 de fevereiro de 2018, aqui https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf), temos no § 135: “A jurisprudência deste Tribunal considerou QUATRO elementos para determinar se se cumpriu ou não a garantia do prazo razoável, a saber: a) a complexidade do assunto; b) a atividade processual do interessado; c) a conduta das autoridades judiciais; e d) o dano provocado na situação jurídica da pessoa envolvida no processo”. (os destaques e grifos são nossos)
Não vamos nos alongar nas citações, elas já estão bem claras, salvo melhor juízo, demonstrando que, segundo a Corte IDH, o quarto quesito (que existe !) é, na maioria das situações, a análise sobre o que a demora gera não para o investigado ou réu, mas para as vítimas do processo.
Uma informação essencial: esse quarto critério refere-se à afetação do interessado/vítima, que, dependendo do caso posto a julgamento, pode ser violação do direito da vítima do crime, violação do direito do processado ou mesmo do preso. Vai depender do caso concreto !
Noutras palavras, são os quatro quesitos concomitantemente que devem ser analisados concomitantemente, revelando-se assim que a proteção, a depender do caso de quem está demandando, não é apenas ao investigado/processado, mas também da própria vítima do crime não punido, na mesma dimensão da garantia convencional e constitucional.
A razão ? Porque deve-se considerar que o art. 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos (ao tratar de “proteção judicial”) dispõe que “toda pessoa” (e não apenas “todo investigado ou processado”) “tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
É (também) por isso que o inciso LXXVIII do art. 5º da CF prevê que a garantia ali assegurada é a TODOS (não apenas procesados ou investigados), no âmbito judicial e administrativo, à razoável duração do processo e os meios que garantam a sua celeridade na tramitação.
Mas é importante igualmente não esquecer que, conforme destacamos em nossa obra mencionada, todas as 11 condenações do Brasil na Corte IDH foram por violação dos direitos das VÍTIMAS dos CRIMES COMETIDOS a um processo num prazo razoável e eficiente (como obrigação de meio).
Noutras palavras, nenhuma das condenações contra o Brasil na Corte IDH (que, para muitos, é um “país punitivista”) envolveram reconhecimento de violações de direitos dos investigados ou processados, mas sim das vítimas dos crimes contra elas cometidos !
E por também esse prisma (esse “quarto requisito”) que devemos atentar mais para a duração razoável do processo, ao contrário do que encontramos em julgados e em manifestações doutrinárias.
Que fique claro que não queremos que sejam “retiradas garantias” de investigados ou processados (muito antes pelo contrário), mas que sejam considerados todos os direitos e garantias protegidos constitucional e convencionalmente.
Sempre sugerimos conferir todas as nossas fontes de referência, como forma de propiciar sempre um debate aberto e dialético, mas com absoluta lisura das premissas desenvolvidas.
Por fim, cada leitor tem total autonomia para tirar suas conclusões, pois não pretendemos convencer ninguém, o objetivo foi unicamente esclarecer os questionamentos feitos em razão de nossas considerações na obra referida. Nada mais, nada menos.
Clique aqui para fazer o download da íntegra do texto