O texto de hoje é conciso. Será para, unicamente pela ótica jurídica, demonstrar que existem decisões com resultados diferentes para hipóteses iguais proferidas pelo mesmo órgão julgador.
Já escrevemos aqui (https://temasjuridicospdf.com/como-burlar-a-sumula-691-do-stf-mediante-o-ajuizamento-de-reclamacao-incabivel/ ) um alerta para as hipóteses em que são ajuizadas reclamações no STF, ensejando a burla à Súmula 691 do STF
Vamos reiterar prefacialmente que partimos da premissa de que é dever do Poder Judiciário corrigir toda forma de manifesta ilegalidade que se apresente nos casos postos a julgamento, observada uma premissa: presença de competência jurisdicional para o exame de determinada questão.
“Não conhecer” de uma irresignação significa a expressa afirmação de que aquele recurso (ou até mesmo habeas corpus, substitutivo do recurso próprio) não deveria ter chegado no tribunal superior, de apelação, ao STJ ou STF (e aí nem trataremos aqui da Súmula 691 do STF).
Noutras palavras (e exemplificativamente), recurso especial, recurso extraordinário, reclamação ou um habeas corpus “não conhecidos” (pressupostos de admissibilidade) trazem em si a carga de reconhecimento de que sequer é inaugurada a jurisdição de mérito do Tribunal.
Noutras palavras, tecnicamente não há autorização para que o tribunal “contorne” sua própria decisão de dizer que não cabe o recurso ou o writ para, na sequência, fazer uma análise “de ofício” e analisar todas demais questões sob outros ângulos que entenda eventualmente cabíveis.
Sabemos que a Súmula 691 do STF dispõe que “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de “habeas corpus” impetrado contra decisão do relator que, em “habeas corpus”, requerido a tribunal superior, indefere a liminar.
A “relativização” dessa súmula (já corriqueira, aliás) deu-se, pela primeira vez, no julgamento ocorrido em 5.10.2005 no bojo do HC nº 86.864. (paciente Flávio Maluf, depois concedido efeito extensivo a Paulo Maluf), embora o primeiro writ ajuizado no STF procurando o afastamento da Súmula 691 tenha sido ajuizado uma semana antes, em 29.9.2005, sob o nº 86.824 (teve perda de objeto posterior pela concessão da ordem no STJ – você pode pesquisar dados dessa impetração, de nossa autoria, aqui: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2326392).
De outro bordo, e conforme destacamos novamente em nossos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (2021, 13ª ed, p. 1696 e seguintes):
“A reclamação é um recurso específico previsto para, fundamentalmente, preservar a competência dos tribunais (estabelecida constitucionalmente) ou então para garantir a autoridade de suas decisões. Desse modo, a reclamação não poderá ser utilizada como sucedâneo recursal próprio quando não presentes as (restritas) hipóteses legais”.
A regulamentação da reclamação também está prevista nos arts. 13 a 18 da Lei nº 8.038/90. Mas a partir da vigência do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), o tema está regulamentado expressamente nos seus arts. 988 e seguintes, com as alterações da Lei nº 13.256/2016 (revogadas expressamente as normas da Lei nº 8.038/90 – art. 1.072, IV, CPC/2015):
Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
I – preservar a competência do tribunal;
II – garantir a autoridade das decisões do tribunal;
III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (Lei nº 13.256/2016)
IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência; (Lei nº 13.256/2016)
§ 1º A reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.
§ 2º A reclamação deverá ser instruída com prova documental e dirigida ao presidente do tribunal.
§ 3º Assim que recebida, a reclamação será autuada e distribuída ao relator do processo principal, sempre que possível.
§ 4º As hipóteses dos incisos III e IV compreendem a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam.
§ 5º É inadmissível a reclamação: (Lei nº 13.256/2016)
I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada;
II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.
§ 6º A inadmissibilidade ou o julgamento do recurso interposto contra a decisão proferida pelo órgão reclamado não prejudica a reclamação.
Art. 989. Ao despachar a reclamação, o relator:
I – requisitará informações da autoridade a quem for imputada a prática do ato impugnado, que as prestará no prazo de 10 (dez) dias;
II – se necessário, ordenará a suspensão do processo ou do ato impugnado para evitar dano irreparável;
III – determinará a citação do beneficiário da decisão impugnada, que terá prazo de 15 (quinze) dias para apresentar a sua contestação.
Art. 990. Qualquer interessado poderá impugnar o pedido do reclamante.
Art. 991. Na reclamação que não houver formulado, o Ministério Público terá vista do processo por 5 (cinco) dias, após o decurso do prazo para informações e para o oferecimento da contestação pelo beneficiário do ato impugnado.
Art. 992. Julgando procedente a reclamação, o tribunal cassará a decisão exorbitante de seu julgado ou determinará medida adequada à solução da controvérsia.
Art. 993. O presidente do tribunal determinará o imediato cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente.
Quando houver violação de competência do STF ou do STJ (importando ao caso as determinações em matéria criminal, quase sempre ligadas às determinações de foro por prerrogativa de função), a parte que se sentir atingida ou o próprio Procurador-Geral da República poderá ajuizar a reclamação perante o tribunal para que este determine ao órgão judicial inferior que está havendo violação de sua competência. Funciona como verdadeira avocatória. Há de se atentar que, perante os tribunais superiores, ao menos segundo nossa compreensão, a atribuição não é do Ministério Público Estadual. […]
Contudo, vemos seguidamente decisões do STF em reclamações ajuizadas que “não são conhecida”s (ou seja, “não é inaugurada a competência do tribunal”), na grande maioria das vezes contra atos de juízes de primeiro grau, nas quais – surpreendentemente ! – a Corte Suprema acaba “analisando habeas corpus de ofício”, quando não concedendo a ordem com indiscutível supressão de instância.
É preciso reiterar que a reclamação é uma espécie de irresignação ajuizada diretamente na Suprema Corte, enquanto o habeas corpus precisa observar o necessário escalonamento de acordo com as autoridades coatoras, nos estritos e exatos termos da Súmula 691 do STF.
Assim, se a reclamação é contra decisão de juiz de primeiro grau, o habeas corpus (inclusive de ofício) somente pode ser concedido em sede de tribunal de apelação correspondente, e não substitutivo à reclamação eventualmente não conhecida.
Então vamos comparar dois julgados, a proposta exordial.
No primeiro, publicado hoje, dia 27 de setembro de 2021, a 2ª Turma do STF assentou à unanimidade:
[…] A RECLAMAÇÃO NÃO PODE SER UTILIZADA COMO ATALHO PROCESSUAL DESTINADO A PERMITIR A SUBMISSÃO IMEDIATA DE LITÍGIO AO EXAME DIRETO DESTA SUPREMA CORTE. DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA: EXIGÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO EXPRESSA DE IMPEDIMENTO DOS JUÍZES, SOB PENA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. INOCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE. POLO PASSIVO DA DEMANDA EM PRIMEIRO GRAU DE JUSRIDIÇÃO ENVOLVENDO APENAS UM ÚNICO MAGISTRADO: […]
III – A reclamação “não pode ser utilizada como um (inadmissível) atalho processual destinado a permitir, por razões de caráter meramente pragmático, a submissão imediata do litígio ao exame direto desta Suprema Corte” (trecho do voto do Ministro Celso de Mello, Relator da Rcl 18.270-AgR/ RO, Segunda Turma). […] (Embargos de Declaração na Reclamação nº 32.080-SP, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, unânime, sessão virtual de 10.9.2021 a 17.9.2021, DJ 27.9.2021)
Ficou bem claro que não cabia utilizar a reclamação como um “atalho”, desrespeitando-se o rito devido e observando-se os níveis de jurisdição.
Já noutro feito, temos o seguinte:
Agravo regimental em reclamação. 2. Processual Penal. 3. Competência da Justiça Eleitoral. Inq 4.435. Processo de índole subjetiva. Não cabimento da reclamação. 4. Habeas corpus de ofício. Elementos que apontam para a existência de crime eleitoral. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (Agravo Regimental na Reclamação nº 43.130-RJ, Rel. Ministro Gilmar Mendes, julgado em 25.5.2021, publicado no DJ em 1º.9.2021)
A decisão acima também foi tomada pela 2ª Turma do STF (com votos prevalentes dos Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que também votaram no primeiro caso). Do relatório do último processo supramencionado, verifica-se o agravo regimental foi interposto pela PGR contra decisão proferida em reclamação ajuizada, “com fundamento no art. 102, inciso I, alínea l, da Constituição, contra ato do Juiz da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro”.
Noutras palavras, foi reconhecida como inadmissível a reclamação (ausência dos pressupostos), porém deferido habeas corpus de ofício (com evidente burla do disposto na Súmula nº 691, pois o caso fora ajuizado contra ato do juiz de primeiro grau).
Dois casos idênticos: reclamações contra atos de juízes de primeiro grau.
Duas decisões diferentes:
- numa deferido habeas corpus de ofício, mesmo que “não conhecida” a reclamação;
- noutra, não admitido o habeas corpus de ofício, pois “a reclamação não pode ser utilizada como um (inadmissível) atalho processual destinado a permitir, por razões de caráter meramente pragmático, a submissão imediata do litígio ao exame direto desta Suprema Corte”.
Apenas uma constatação fática e jurídica dentre tantas que ocorrem.
Basta acompanhar os julgados publicados diariamente.
Tirem suas conclusões, porém eminentemente jurídicas, por favor. É do que estamos tratando aqui.
Salvo melhor juízo sempre.
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