STF: Duas decisões contraditórias para a mesma questão jurídica

Escrevemos anteriormente tentando demonstrar o equívoco tomado pelo STF no julgamento do Inquérito n. 4.435 (remetendo casos de crimes comuns com eventualmente conexos para a Justiça Eleitoral) e as consequências sobre o (verdadeiro) devido processo legal (https://temasjuridicospdf.com/crimes-eleitorais-e-os-eventualmente-conexos/).

Estamos absolutamente convictos do erro técnico do STF.

O que nos chama atenção agora são os precedentes abaixo comentados.

O primeiro, uma decisão de 1º.9.2020 da 2ª Turma do STF (empate na votação) em que, máxima vênia, foram desconsideradas todas as premissas até hoje válidas (e aceitas) pelo STF no que se refere ao tema de perpetuação de jurisdição. O acórdão não foi publicado até a presente data, 8.10.2020.

Tratava-se de um caso em que a investigação fora instaurada originariamente no STF a partir de dados de colaboração premiada (Inquérito nº 4.432). Como um dos investigados perdeu a prerrogativa de foro no STF (Petição nº 7.569), foi determinada a remessa dos autos à Justiça Eleitoral, por haver supostos indícios da prática (também) de crime eleitoral (até então a competência penal para os possíveis crimes eleitorais era do STF, sabido que o TSE não possui a competência criminal). Recebendo os autos, o Ministério Público Eleitoral determinou o arquivamento do inquérito quanto ao crime eleitoral (art. 350), por não haver qualquer elemento (justa causa) para o seu prosseguimento, determinando a devolução dos autos para a Justiça Federal para a análise de processamento dos delitos remanescentes (decisão que, já adiantamos, é absolutamente técnica e correta). Contra essa declinação, houve o ajuizamento da Reclamação nº 34.805-DF, negada monocraticamente pelo Relator, Ministro Edson Fachin, tendo-se interposto o agravo regimental, em que houve empate na votação. Os Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski proveram – de forma inédita, como se verá -– a reclamação para determinar a devolução dos autos à Justiça Eleitoral, mesmo que arquivada a investigação quanto ao crime eleitoral, que atrairia a competência especializada (nos moldes do precedente tomado no Inquérito nº 4.435).

Segundo o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, desrespeitou-se a decisão tomada pelo STF (daí a reclamação) ao determinar a remessa dos autos para a Justiça Eleitoral. Mais que isso, assentou que  o MPE promoveu o arquivamento dos delitos previstos no art. 350 do CE imediatamente após o recebimento dos autos,” não tendo sequer empreendido qualquer diligência investigativa para apurar os indícios de tais crimes”.

Ora, o equívoco dos dois votos prevalentes (por “empate”) são manifestos em nosso sentir.

Em primeiro lugar, reiteramos que, no leading case, o STF não decidiu que competiria à Justiça Eleitoral necessariamente julgar os fatos, mas apreciar se haveria a conexão probatória ou se realizaria a cisão processual, que se pode realizar inclusive por razões de conveniência processual (art. 80, in fine, CPP).

No caso em tela, quem tem a titularidade da opinio delicti disse não haver justa causa para o crime eleitoral, de modo que deveria ser arquivado, o que foi acolhido pelo Poder Judiciário Eleitoral. Essa decisão, aliás, é imutável (salvo se sobrevierem novos elementos de prova, art. 18, CPP). Nesse caso, então, é tecnicamente impossível haver a prorrogação da competência.

A conclusão tomada pelos dois votos apresenta-se dissociada da melhor técnica, notadamente porque não houve desrespeito ao que julgado no momento do declínio efetuado originariamente pelo STF.

A propósito, remetemos às anotações aos arts. 80 e 81 do CPP que fizemos nos Comentários ao CPP e sua jurisprudência juntamente com Eugênio Pacelli, destacando que, por exemplo, se mantido o raciocínio dos dois votos prevalentes, se, doravante, o Tribunal do Júri “desclassificar” a conduta do delito doloso (disser que não há o crime de sua competência), deverá se prorrogar na competência para o próprio crime e inclusive os demais eventualmente conexos.

Há se atentar que se houvesse denúncia pelo crime eleitoral (bem assim para alguns dos crimes conexos), devidamente recebida (ação penal instaurada), a eventual absolvição do crime eleitoral aí sim (e somente aqui) importaria em prorrogação de competência da Justiça Eleitoral para os demais casos.

No caso acima houve expressa negativa da existência de justa causa, de modo que a “opinio delicti” foi “negativa”, pela ausência de dados acerca do crime eleitoral (que faria a possível atração).

Atente-se bem que, mesmo que se dissesse haver o crime eleitoral, seria absolutamente legal e constitucional ao juízo prevalente determinar a cisão processual quanto aos demais crimes  inclusive por questões de conveniência processual (art. 80, CPP), de modo que as conclusões estampadas nos votos prevalentes revelam-se integralmente equivocadas à luz do sistema jurídico, na medida em que não se pode obrigar o Juízo Eleitoral a processar outros crimes sobretudo se assentada a inexistência de base suficiente (justa causa) do próprio crime prevalente.

Aliás, é absolutamente correta nesse sentido a decisão do STJ no sentido de que a competência do Juízo Eleitoral é “para análise da existência ou não de conexão e eventual conveniência de reunião dos feitos, orientação essa que guarda perfeita harmonia com o entendimento firmado no âmbito da Suprema Corte(Conflito de Competência nº 172.666/MG, STJ, 3ª Seção, unânime, DJ de 14.8.2020).

De modo mais objetivo até, esse entendimento foi corroborado pela 3ª Seção no CC nº 170.262-MG (DJ de 20.5.2020), em que, rechaçando a pretensão da defesa de que tudo fosse reunido na Justiça Eleitoral, assentou que “a Justiça Eleitoral já reconheceu sua incompetência para conduzir o inquérito policial, quando afirmou que “este inquérito está arquivado na Justiça Eleitoral, a pedido do Ministério Público Eleitoral, que manifestou a sua ciência, tendo a decisão de arquivamento e baixa na distribuição sido publicada no PJE”. Assim, se, na hipótese vertente, a Justiça Eleitoral não vislumbrou indícios suficientes de ilícito penal eleitoral ou conexão, não há como entender correta a interpretação competencial dada pelo Juízo de Direito oficiante”. Desse modo, se “nem a Justiça Eleitoral, nem o Ministério Público Eleitoral, nem o Parquet estadual, nem mesmo o MPF (como fiscal da ordem jurídica) reconheceram indícios de crime eleitoral, capazes de deslocar a competência da apuração em tela”, a conclusão é evidente no sentido de que não se poderia manter o feito na Justiça Especializada.

Em sentido manifestamente oposto do que acima demonstrado foi o entendimento da 1ª Turma do STF. No caso concreto, houve determinação de desmembramento (por força do decidido na AP 937, pelo STF) e remessa dos autos para o primeiro grau no Distrito Federal. Dentre outras pretensões, externadas por meio de agravo regimental,  expressamente a defesa postulou a remessa dos autos – se não reconhecida a conexão com outro feito em trâmite perante a 2ª Turma do STF – para a Justiça Eleitoral em Minas Gerais. Corretamente o aresto colegiado decidiu que, além de não haver nenhum elemento conectivo, a PGR já havia expressamente afastada a possibilidade (só agora em tese “admitida” pelo requerente) de que teria havido “suposto” crime eleitoral. Assim, e se reportando a outro julgado, assentou que não caberia ao Judiciário afirmar existir crime eleitoral, pois “é da essência do sistema acusatório uma nítida separação das funções de acusar e julgar, voltada precipuamente à preservação da imparcialidade e do distanciamento do juiz em relação a atos pretéritos ao processo judicial contraditório. Nesse contexto, tenho por inviável ao Poder Judiciário auditar as hipóteses investigatórias e, em antecipação à própria acusação, proceder à glosa de linhas de investigação, em um juízo prematuro que, em última análise, influenciará na própria formação da opinio delicti”. Por essa razão, não existindo qualquer plausibilidade, mesmo em tese, da existência de qualquer crime eleitoral, não há se fazer o deslocamento, rechaçando-se a tese que, na verdade, pretendia “escolher” o juízo competente (Justiça Eleitoral) por um suposto crime que sequer existia no caso concreto (Agravo Regimental na Petição nº 8.860/DF, Rel. Min. Rosa Weber, publicado no DJ em 22.9.2020).

O que chama muito a atenção – em contraste com o que decidido na Reclamação nº 34.805 – foi a decisão publicada hoje, dia 8.10.2020, em que o mesmo órgão colegiado (2ª Turma) decidiu denegar pretensão similar, assim estando fundamentado o indeferimento (voto do Ministro Gilmar Mendes): „Por sua vez, no caso dos autos, não vislumbro estrita aderência entre o ato reclamado e o paradigma, uma vez que não há elementos robustos de prova a indicarem prática de crime eleitoral , o que poderia atrair a competência do feito para julgamento na Justiça Eleitoral, na forma do que foi decidido no Inq 4.435-DF. […] No que tange aos crimes antecedentes, o órgão de acusação traz longa narrativa de fatos (eDOC 7, p. 14) da qual, em análise sumária, compatível com os limites cognitivos em sede de habeas corpu s, também não se desponta a prática de crime eleitoral. Verifica-se, ainda, que sequer houve apreciação de modo definitivo da questão arguida perante o Tribunal Regional Federal” (grifos no original).

No primeiro caso, não havia nenhum elemento de (pretenso) crime eleitoral (afirmado pelo MP Eleitoral, acolhido pelo Poder Judiciário). Mesmo assim, por empate na votação (que deveria valer apenas para habeas corpus, não para reclamação), determinou-se a “devolução” dos autos para a Justiça Eleitoral (que, como visto, é a competente pela decisão Plenária do STF para, se quiser, “cindir” o feito). Não havia aderência alguma aos precedentes do STF.

No segundo caso, foi dito (aí corretamente, segundo pensamos) que “não há elementos robustos de prova a indicarem a prática de crime eleitoral”, motivo pelo qual foi indeferida a remessa pretendida pelo reclamante.

Duas questões jurídicas idênticas com duas soluções diferentes sem que se apontasse, objetivamente, razões do distinguish.

É preciso coerência de fundamentação. Nada mais. E que fique claro: a crítica é exclusivamente jurídica, a partir da qual cada um pode tirar suas conclusões dos contrastes entre ambos julgados.

2 thoughts on “STF: Duas decisões contraditórias para a mesma questão jurídica

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