Por
Alexander Araujo de Souza e
Renata Christino Cossatis
1. A natureza das sanções de improbidade administrativa. Já se abordou outrora[1] sobre o extraordinário avanço levado a efeito pela Constituição da República de 1988, a qual ampliou a tutela à probidade administrativa para o campo civil, indo muito além das Constituições anteriores[2], trazendo, ainda, um bem estruturado arcabouço de combate à corrupção e à violação dos bens jurídicos relativos à res publica.
No entanto, passados dezenove anos da vigência da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), a discussão sobre a natureza jurídica das sanções nela previstas se renova diante das patentes atecnias trazidas pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, que a modifica. Isto, sobretudo, no que toca à possibilidade de importação da regra especial estabelecida no art. 5º, LX, da Constituição da República de que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (reproduzida no parágrafo único do art. 2º do Código Penal) para a sua aplicação no âmbito das ações de improbidade.
O presente estudo, com efeito, não pretende esmiuçar as alterações constantes do projeto de lei nº 2.505, sancionado e promulgado com a Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Ao contrário, almeja-se demonstrar a patente desarmonia que se provocaria no sistema jurídico pátrio, bem como a inquestionável colisão teleológica com as normas da Constituição da República e dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, com a tentativa de se transportar, de maneira casuística e seletiva, regras exclusivas do Direito Penal para a sistemática da improbidade administrativa regrada pela Lei nº 8.429/92[3].
A tutela da probidade teve seu nascedouro nos crimes de responsabilidade, avançou para o Direito Penal e alçou braços em direção ao Direito Administrativo, com o alcance de todo e qualquer servidor público. Contudo, a Constituição de 1988 deu a ela, inegavelmente, roupagem cível[4], tendo sido bastante claro o constituinte originário ao ressalvar, em seu art. 37, §4º, que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade e bens e o ressarcimento ao erário… sem prejuízo da ação penal cabível”.
A ampliação da tutela da probidade administrativa para além do campo político-criminal é perfeitamente coerente com a evolução do conceito de moralidade e com o reconhecimento das práticas ímprobas e corruptivas como as mais graves violações aos direitos fundamentais[5]. Bem como com a preocupação, cada vez maior, em se educar o gestor público[6], como também os cidadãos em geral, ao respeito à legalidade e à moralidade.
Já tendo a Constituição estatuído não se tratar a ação de improbidade de uma ação penal, a Lei nº 14.230/21, em seu art. 17-D, pouco contribuiu para que se desvelasse a sua natureza, limitando-se a dispor que “não constitui ação civil”. A única interpretação plausível que se pode conferir ao referido dispositivo legal, sem que importe violação ao texto constitucional, é o de que a ação de improbidade não se cuida de uma “ação civil pública”[7]. Isso porque, ato contínuo, o legislador prossegue estatuindo ser “vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos”, que são objetos próprios da ação prevista no art. 129, III, da Constituição da República.
De fato, não faria sentido a ciência penal, que se consubstancia na ultima ratio, punir os delitos de corrupção sem que houvesse um sistema legislativo amplo, de caráter extrapenal, que alcançasse também aqueles que não se submetem ao estatuto jurídico próprio dos servidores públicos em geral, como o Chefe do Executivo e os membros do Legislativo. Sem falar na necessidade de se criarem mecanismos próprios voltados ao ressarcimento ao erário de natureza não-penal, o que, sem dúvidas, contribui para o salto evolutivo necessário ao desenvolvimento político-econômico[8] do País.
Pretender equiparar e, portanto, transfigurar as sanções da Lei de Improbidade Administrativa àquelas previstas no Direito Penal traduz interpretação em patente descompasso com o comando contido na parte final do § 4º do art. 37 da Constituição e inegável retrocesso na proteção da coisa pública.
Da mesma forma, encampar a tese de que se trataria de sanções de natureza administrativo-disciplinar[9] e, por isso, receberiam as mesmas garantias do Direito Penal, constitui evidente desvirtuamento de institutos jurídicos. Busca-se enxergar uma inexistente identidade substancial entre pena e sanção ao ato de improbidade, sob o argumento de que isso daria suporte à doutrina da unidade da “pretensão punitiva” (ius puniendi) do Estado, cujo principal corolário seria a aplicação dos princípios próprios do Direito Penal ao chamado Direito Administrativo sancionador. A incoerência seria tão grande quanto dizer que uma margarida é uma rosa somente pelo fato de ambas serem flores e exalarem perfumes. Não se deve esquecer, porém, da eloquente advertência de Shakespeare de que uma “rosa é uma rosa, e tem perfume de rosa, ainda que se pretenda dar a ela outro nome”[10]. Com efeito, não é o nome que se queira dar a um instituto que lhe confere essência. Alguns exemplos práticos são elucidativos da malsinada incoerência.
Uma multa por infração de trânsito, uma multa decorrente de sentença penal condenatória e uma multa por violação a ato atentatório à dignidade da justiça (art. 334, §8º, do Código de Processo Civil) decididamente não possuem idêntica natureza jurídica. Não a possuem, apesar de diminuírem igualmente a fortuna do infrator e de ostentarem idêntico nomen iuris como sanção prevista em lei. Ao contrário, suas naturezas se diferenciam substancialmente em razão do sistema jurídico próprio em que estão inseridas e pela respectiva autoridade que as aplica (judiciária ou administrativa).
Pretender equiparar as sanções da Lei de Improbidade Administrativa às previstas no Direito Penal, forçando a aplicação àquelas da mesma principiologia inerente a este, representa a mesma incoerência de se sustentar que a multa administrativa por infração ao art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro[11] necessita ser precedida dos princípios do Direito Penal aplicáveis à multa, que constitui pena por violação à norma incriminadora constante do art. 306 do mesmo diploma[12]. No caso do art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro, a multa administrativa é aplicada sem qualquer discussão a respeito dos princípios do ne bis in idem, do favor rei, do in dubio pro reo, tampouco sobre a existência, ou não, de foro por prerrogativa ao infrator. O mesmo se diga quanto a uma multa aplicada no âmbito do processo civil – como uma astreinte ou outra de natureza puramente sancionatória, como aquela prevista no § 8º do art. 334 do Código de Processo Civil. Também aqui não se importa a principiologia própria do Direito Penal, apesar de o aspecto punitivo-pedagógico também lhes ser inerente e a consequência prática a mesma, qual seja, a diminuição do patrimônio do sancionado.
Também em outro campo do direito, o da responsabilização civil, às ações por ato ilícito, lastreadas no art. 186 do Código Civil, no qual tanto se sustenta a teoria do punitive damage, não se aplicam os princípios inerentes ao Direito Penal, ainda que a coerção judicial também apresente natureza punitivo-pedagógica. Com efeito, não se pode olvidar que cada ramo do direito conta com princípios que lhe são próprios. Assim, da mesma maneira, a presunção de legitimidade dos atos praticados por agentes públicos, inerente ao Direito administrativo, não se aplica na seara criminal.
O Direito Penal, portanto, não pode deixar de ser a ultima ratio em matéria punitiva para se tonar a prima causa, ao sabor das circunstâncias. Inconcebível que se extirpem apenas as partes convenientes da ciência criminal para serem transportadas para a seara da improbidade administrativa, tornando-as axiomas isolados de seu arcabouço, sob o superficial argumento de proteção às “garantias fundamentais do réu”. A transmutação, em verdadeiro desvirtuamento da natureza das sanções previstas na Lei de Improbidade, com a finalidade única de se favorecerem corruptos e ímprobos, importa em patente desarmonia do sistema jurídico. Pinçar princípios próprios de um ramo jurídico, como o Direito Penal, para transportá-los a outro, sem se verificar a compatibilidade do enxerto com o corpo para o qual é transplantado, equivale à retirada da pedra angular de um sistema piramidal para se tentar encaixá-la em outro qualquer, sob o argumento de uma possível semelhança. A ruína será inevitável em ambas as situações[13].
No caso do Direito Penal, verificar-se-á a banalização de garantias que foram criadas para um sistema considerado como a ultima ratio em matéria punitiva. Além disso, importará ruptura do contrato social[14]pelo qual os cidadãos da República abdicaram de parcela de suas liberdades para a formação do corpo estatal e de parcela de sua propriedade para a constituição da coisa pública. Isso, inquestionavelmente, também traz instabilidade e rebaixamento, ainda maiores, do Brasil no ranking internacional de percepção da corrupção[15], além de colocar o País, como se verá adiante, na contramão dos tratados internacionais por ele firmados em matéria de combate à corrupção.
Conclusivamente, parafraseando Shakespeare, uma sanção de improbidade administrativa nada mais é que (desculpe-se o truísmo)… uma sanção de improbidade administrativa, e não uma pena criminal. Àquela, portanto, como se verá, não se aplicam os princípios próprios do Direito Penal.
2. A impossibilidade de aplicação retroativa da nova Lei de Improbidade Administrativa. Os ordenamentos jurídicos da família romano-germânica adotam, como regra, o princípio de que as leis devem regular fatos futuros, não retroagindo para alcançar situações constituídas sob a vigência da lei revogada ou modificada. É o que estatui, dentre nós, o art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/42)[16]. Cuida-se do princípio da irretroatividade das leis, o qual apenas se excepciona em matéria penal, quando a lei nova seja, de qualquer maneira, mais benéfica ao seu infrator, aplicando-se a fatos constituídos sob a égide da lei anterior.
A Constituição da República de 1988 estabeleceu, em seu art. 5º, XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. No mesmo sentido, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) foi explícita em estabelecer que “ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado”. A retroatividade em matéria penal da lex mitior, portanto, constitui exceção ao princípio geral da irretroatividade das leis.
Referida exceção encontra sua justificativa no fato de o Direito Penal se consubstanciar na ultima ratio em matéria punitiva, o mais potente poder de que dispõe o Estado de limitar a liberdade de seus súditos[17]. Justamente em razão disso, conta este ramo do direito com princípios próprios, cuja aplicação não encontra justificativa em relação aos demais sistemas. O favor rei, do qual é um corolário a máxima in dubio pro reo[18], a proibição de analogia in malam partem e a retroatividade da lei penal mais benéfica exemplificam nítidas limitações ao ius puniendi.
Diante da excepcionalidade da retroação da lex poenalis mitior, cumpre lembrar a existência do princípio geral de direito segundo o qual, desde o Direito Romano, as exceções se interpretam restritivamente (exceptiones sunt strictissimae interpretationis)[19]. Assim, a exceção relativa à retroatividade da lei penal mais benéfica ao transgressor não deve ser interpretada extensivamente, mas remanescer nos estritos parâmetros das normas penais repressivas. Isto foi o que almejou explicitamente o constituinte de 1988, pois não estatuiu simplesmente que a “lei” (civil ou administrativa) não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; ao contrário, circunscreveu a possibilidade de retroação à “lei penal” mais benéfica. Igualmente o fez a já citada Convenção Americana de Direitos Humanos ao se referir expressamente a condutas “delituosas”.
Como já se assentou, possuindo, portanto, as sanções aos atos de improbidade natureza cível, ainda que se queira, sob a roupagem das expressões direito administrativo “sancionador” ou “disciplinar”, equipará-las às penas criminais, impossível aplicar-se a retroatividade da lei mais benéfica ao ímprobo. A propósito, a própria Lei nº 14.230/21, em seu art. 1º, § 4º, estabeleceu que se aplicam “ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”. Ora, esta regra se refere não aos princípios constitucionais de direito penal, mas expressamente aos princípios do direito administrativo sancionador (como o contraditório e a ampla defesa, assegurados expressamente no art. 5º, LV, da Constituição da República, aos “litigantes, em processo judicial ou administrativo”). E não há a menor sombra de dúvidas de que o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5º, LX) encontra-se constitucionalmente limitado, de maneira estrita, à seara criminal.
A título de exemplo, relativamente à prescrição dos atos de improbidade administrativa, com os novos prazos e regras trazidos pela Lei nº 14.230/21, estes decididamente devem reger apenas as situações jurídicas aperfeiçoadas após a sua entrada em vigor, jamais aquelas constituídas sob a égide das disposições vigentes anteriormente.
Portanto, aos atos de improbidade praticados antes da vigência da Lei nº 14.230/21 não se aplicam as regras por esta inovadas, como a prescrição em 08 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato (art. 23), a suspensão pelo prazo de 180 dias em razão da instauração do inquérito civil (art. 23, § 1º), as hipóteses de interrupção da prescrição (art. 23, § 4º), a retomada do curso do prazo prescricional, após a sua interrupção, pela metade (art. 23, § 5º), tampouco a prescrição intercorrente reconhecível de ofício (art. 23, § 8º). Nestas hipóteses, aperfeiçoadas sob a égide das disposições anteriores da Lei nº 8.429/92, aplica-se o princípio geral do tempus regit actum. Ou seja, regem-se pela lei em vigor ao tempo da sua prática, submetendo-se aos prazos constantes da redação originária dos incisos I[20], II e III do art. 23 da Lei nº 8.429/92, bem como às demais normas gerais de natureza cível sobre a prescrição, inclusive no que toca às suas causas interruptivas e à inovação da prescrição intercorrente prevista no art. 206-A do Código Civil (com redação dada pela recente Lei nº 14.195/21).
Vale relembrar, ainda, que o Brasil é signatário da Convenção de Mérida, introduzida no ordenamento jurídico pátrio mediante o Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, que promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003, cujo art. 29 determina: “Cada Estado Parte estabelecerá, quando proceder, de acordo com sua legislação interna, um prazo de prescrição amplo para iniciar processos por quaisquer dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção e estabelecerá um prazo maior ou interromperá a prescrição quando o presumido delinquente tenha evadido da administração da justiça.”. Ora, se para o Direito Penal, ultima ratio, cujas sanções são penas prisionais, convencionou-se internacionalmente que os prazos prescricionais para o combate à corrupção devem ser mais amplos, seria inconcebível que, no âmbito extrapenal, repita-se, cível, os prazos da tutela da coisa pública fossem mais exíguos.
Nota-se que a Nova Lei de Improbidade está patentemente na contramão da Convenção de Mérida, ao prever, por exemplo, que “interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da interrupção, pela metade do prazo” (art. 23, § 5º). Não se pode pretender, assim, ao arrepio das mais comezinhas normas de interpretação, que ela se aplique aos fatos constituídos antes de sua entrada em vigor. Cumpre lembrar que até mesmo o célebre Cesare Beccaria, considerado pai de todos os garantistas penais, sustentava que determinados delitos graves nem sequer deveriam ser beneficiados pela prescrição[21]. E não há dúvidas de que a corrupção, bem como os atos de improbidade administrativa, consubstanciam-se em ilícitos gravíssimos[22], os quais o legislador deveria não somente punir com rigor, mas também estabelecer prazos prescricionais amplos, a fim de que eles não corroam os direitos fundamentais dos cidadãos e, por outro lado, não valham “a pena” para aqueles que os cometem.
Outro princípio penal absolutamente inaplicável na esfera da improbidade administrativa é o da abolitio criminis. Não há que se falar, nesta sede, de novatos legis in mellius para efeito de reconhecimento de abolitio “criminis”, pois, obviamente, de crime não se trata e nunca se tratou. Assim, continuam sendo regidas pela antiga normativa vigente à época em que praticadas as condutas dolosas ou culposas, bem como as suas respectivas sanções, que se adequavam às tipologias descritivas e seus respectivos sancionamentos constantes da redação anterior da Lei nº 8.429/1992. Por outro lado, as novas regras trazidas pela Lei nº 14.230/21, com a redação que esta deu aos arts. 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92, serão aplicáveis somente aos fatos cometidos após a entrada em vigor daquela lei, isto é, a partir de 26 de outubro de 2021.
Além disso, a tentativa de se transportar a abolitio criminis para o sistema civil de improbidade, no qual há a formação de coisa soberanamente julgada após dois anos da prolação da sentença (art. 975 do Código de Processo Civil), por força da proteção constitucional do art. 5º, XXXVI, importaria em grave violação ao princípio da isonomia entre aqueles cujo trânsito em julgado já se operou e aqueles cujos processos ainda tramitam ou nem sequer se iniciaram. Isso pelo fato de inexistirem, na seara civil, os mecanismos típicos e excepcionalíssimos do processo penal, como a revisão criminal prevista no art. 622 do Código de Processo Penal, manejável a qualquer tempo.
Finalmente, não se deve olvidar que, independentemente da existência, ou não, de ato de improbidade de natureza dolosa ou culposa, ou de possível reconhecimento de prescrição, intercorrente ou não, remanescerá sempre a necessidade de ajuizamento da imprescritível ação de ressarcimento de danos ao erário (art. 37, §5º, da Constituição), lastreada, inclusive, nas regras de responsabilização civil[23].
3. Conclusões. A Lei nº 14.230/21 não alterou, e nem poderia, a natureza jurídica das sanções relativas aos atos de improbidade ante a clara redação do art. 37, §4º, da Constituição. Tendo esta ressalvado a ação penal cabível, e não possuindo o sancionamento aos atos ímprobos natureza política ou administrativa, forçoso reconhecer sua natureza civil.
A pretensa equiparação da sanção cível ao ato de improbidade à pena criminal, em contrariedade ao texto constitucional, com o único objetivo de favorecer o ímprobo, ampara-se em um superficial argumento de que as garantias fundamentais do Direito Penal lhe seriam extensíveis, sem ao menos obtemperar que cada sistema possui peculiaridades muito próprias. O ius puniendi encontra-se limitado por garantias excepcionais pelo fato de constituir a maior violência do Estado na esfera individual, em nada comparável às sanções previstas na Lei de Improbidade.
Logo, a garantia da retroatividade da lei penal mais benéfica, reservada pelo constituinte originário excepcionalmente ao Direito Penal, não pode ser transplantada para a sistemática dos atos de improbidade administrativa. Não há, portanto, que se reconhecer a aplicação retroativa das novas regras trazidas pela Lei nº 14.230/21 aos fatos praticados anteriormente à sua vigência, seja uma pretensa abolitio criminis, pois de crime não se trata, seja a prescrição das ações com fulcro nas novas normas sobre prazos e causas interruptivas e suspensivas.
Desarmonizar os sistemas jurídicos com uma equivocada aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21 traria nefastas consequências ao enfrentamento aos atos ímprobos e corruptivos e à proteção ao erário. Isso tudo diante de um preocupante cenário em que o Brasil é visto pelos organismos internacionais como sendo o portador dos piores índices quando o assunto é enfrentamento da corrupção e sobre usurpação da coisa pública. O The World Justice Project (WJP) Rule of Law Index[24], em sua última atualização em 2021, aponta o Brasil ostentando a posição 138ª entre 139 países, com o Poder Legislativo mais corrupto do mundo, perdendo apenas para a Guatemala. No mesmo relatório, o Brasil é o país na 132ª posição em relação à punição de agentes públicos pela misconduct, perdendo, inclusive, para o Haiti. Sobre a eficiência e efetividade da Justiça brasileira em matéria de punição de ilícitos, o Brasil se encontra na infeliz posição 133ª entre 139 países.
[1] COSSATIS, Renata Christino. Os Agentes Políticos e a Improbidade Administrativa. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2010/trabalhos_22010/renatacossatis.pdf. Acesso em 03 de janeiro de 2022.
[2] Assim, por exemplo, o art. 57, alínea “f”, da Constituição de 1934; o art. 85, alínea “d”, da Constituição de 1937; o art. 89, V, da Constituição de 1946; e o art. 84, V, da Constituição 1967.
[3] Na Pet 3240, o Ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, deixou consignada posição, com a qual não concordamos, de uma possível identidade entre as sanções: “A perda de bens, a suspensão de direitos e a multa são penas que têm, do ponto de vista substancial, absoluta identidade com as decorrentes de ilícitos penais, conforme se pode ver do art. 5.º, XLVI, da Constituição.” (STF, Pleno, Publicado 22.08.2018).
[4] Analisou-se a natureza jurídica dos atos de improbidade administrativa em trabalho anterior: COSSATIS, Renata Christino. Os Agentes Políticos e a Improbidade Administrativa. op. cit.
[5] Assim, SOUZA, Alexander Araujo de. Criminalità organizzata. Minaccia alla democrazia e ai diritti fondamentali. Roma: Aracne, 2016, p. 128, No mesmo sentido, Mantovani, Ferrando. La proclamazione dei diritti umani e la non effettività dei diritti umani (accanimento contro la vita o cultura della vita)?. In Rivista italiana di diritto e procedura penale. Milano: Giuffrè, 2003, p. 42. A propósito, em 2017, o alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Al Hussein, em reunião do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, citando o Brasil, afirmou: “A corrupção viola o direito de milhões de pessoas pelo mundo, ao roubar deles o que deveria ser um bem comum e impedindo direitos fundamentais como saúde, educação ou acesso à Justiça” , complementando: “recentes escândalos de corrupção, incluindo sérias alegações com altos funcionários do Brasil e de Honduras, mostram como a corrupção está profundamente enraizada em todos os níveis de governo em muitos países das Américas, muitas vezes ligados ao crime organizado e tráfico de drogas (…) Isso mina as instituições democráticas e promove uma erosão da confiança pública. (…) Progresso para destapar, processar a corrupção em todos os níveis de governo é um passo essencial para garantir respeito pelos direitos dos povos, incluindo a Justiça“. Disponível em: https://exame.com/brasil/citando-brasil-onu-alerta-que-a-corrupcao-ameaca-a-democracia/. Acesso em 28 de dez. de 2021.
[6] Há dois séculos não havia, no Brasil, regras de responsabilização e educação do gestor público. Previa o art. 99 da Constituição Imperial: “A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.
[7] Sustentando, neste sentido, não ser a ação de improbidade administrativa uma ação civil pública, veja-se Carvalho Filho, José dos Santos. Ação civil pública, comentários por artigo. Lei nº 7.347, de 24.07.85. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 78.
[8] Como consignou Dallagnol, Deltan, “Os índices de corrupção de um país são inversamente proporcionais à competitividade de suas empresas no cenário global. Time que se acostuma a ganhar comprando juiz e os adversários não ganha quando o jogo é pra valer (…). A concorrência desleal não estimula os músculos empresariais.” O mesmo autor ainda arremata: “Além disso, a corrupção é um fator que aumenta a imprevisibilidade e o risco nos negócios” (A luta contra a corrupção. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa, 2017, pp. 45/46).
[9] Igualmente não se trata, por óbvio, de sanções de natureza política. O julgamento político foi reservado, pela Constituição da República, ao próprio Poder Legislativo, o que se verifica no elenco de competências atribuídas ao Senado Federal em seus arts. 52 e 55, §2º. Além disso, a sentença no processo de improbidade administrativa imprescinde de fundamentação jurídica, tal como preceitua o art. 489 do Código de Processo Civil, exigência esta desnecessária em caso de julgamento político.
[10] William Shakespeare, em sua obra Romeo and Juliet, em diálogo entre estes, deixou consignado: “What’s in a name? That wich we call a rose by any other name would smell as sweet”.
[11] Dispõe o art. 165 do CTB: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração – gravíssima; Penalidade – multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses”.
[12] Dispõe o art. 306 do CTB: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.
[13] A reflexão sobre a desarmonia de um sistema é coerentemente traduzida pelo Imperador Romano Marco Aurélio nas percucientes palavras: “como dizem os pedreiros que as pedras quadrangulares que se integram nos muros ou nas pirâmides, ao se ajustarem uma nas outras segundo certa combinação, encontram a harmonia. Em síntese, existe, com efeito, uma única harmonia”. (MARCO AURÉLIO. Meditações. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: Editora Edipro, 2019, p. 58)
[14] O grande teórico do contrato social já havia deixado consignado: “Rien n’est plus dangereux que l’influence des intérêts privés dans les affaires publiques, et l’abus des lois par le Gouvernement est un mal moindre que la corruption du Législateur, suite infaillible des vues particulières. Alors l’État étant altéré dans sa substance, toute reforme devient impossible. Un peuple qui n’abuserait jamais du Gouvernement n’abuserait pas non plus de l’indépendance; un peuple qui gouvernerair toujours bien n’aurait pas besoin d’être gouverné”. (Rousseau, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Flamarion, 2001, pp. 105-16)
[15] O Brasil no ranking da transparência internacional de 2020 encontra-se com pontuação 94, ao lado da Etiópia e Cazaquistão, numa classificação entre a 38ª posição dos países mais corruptos. Em posição imediatamente melhor que a do Brasil estão a Colômbia e o Equador. Disponível em: https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/ipc-indice-de-percepcao-da-corrupcao-2020 Acesso em 28 de dezembro de 2021.
[16] Dispõe o referido art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: “A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.
[17] Como assevera Ferrajoli, Luigi, “la potestà di punire e di giudicare resta sicuramente, come scrissero Montesquieu e Condorcet, il più “terribile” e “odioso” dei poteri: quello che si esercita in maniera più violenta e diretta sulle persone e nel quale si manifesta in forma più conflittuale il rapporto tra stato e cittadino, tra autorità e libertà, tra sicurezza socieale e diritti individuali” (Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. 8ª ed. Roma-Bari: Laterza, 2004, p. XV)
[18] Neste sentido, ainda uma vez, Ferrajoli, Luigi, “(…) si capisce, su questa base, come il principio equitativo del favor rei – di cui è un corollario la massima in dubio pro reo – non solo non contraddice, ma è addirittura una condizione necessaria per integrarei il tipo di certezza razionale perseguita dal garantismo penale” (Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. cit., p. 84).
[19] A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça por diversas vezes fez referência a tal princípio geral de direito em relação aos mais variados ramos do direito. Confira-se: “(…) Assim, por se tratar de regra de exceção, não admite interpretação extensiva ou analógica. Nesse sentido, é vasta a jurisprudência do STJ: “O Código Civil explicitamente consolidou o preceito clássico – ‘Exceptiones sunt strictissimae interpretationis‘ (“interpretam-se as exceções estritissimamente’, no art. 6º da antiga Introdução, assim concebido: “A lei que abre exceção a regras gerais, ou restringe direitos, só abrange os casos que especifica”(…) As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente. Os contemporâneos preferem encontrar o fundamento desse preceito no fato de se acharem preponderantemente do lado do princípio geral as forças sociais que influem na aplicação de toda regra positiva, como sejam os fatores sociológicos, a Werturteil dos tedescos, e outras. (…)”(Carlos Maximiliano, in” Hermenêutica e Aplicação do Direito “, Forense, p. 184/193) 5. Aliás, a jurisprudência do E. STJ, encontra-se em sintonia com o entendimento de que as normas legais que instituem regras de exceção não admitem interpretação extensiva. (REsp 806027 / PE ; Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, DJ de 09.05.2006; REsp 728753 / RJ , Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ de 20.03.2006; REsp 734450 / RJ , deste relator, DJ de 13.02.2006; REsp 644733 / SC ; Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, Rel. p/ acórdão, este relator, DJ de 28.11.2005) – REsp 829.726/PR , Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 29/06/2006, DJ 27/11/2006, p. 254” (STJ, Primeira Turma, REsp 829726/PR, Rel. Min. Luiz Fux).
[20] Neste particular, Garcia, Emerson; Pacheco, Rogério, sustentam, inclusive que a contagem do prazo de 05 (cinco) anos previsto originariamente no inciso I do art. 23 se inicie do término do último mandato outorgado ao agente: “a associação do termo a quo do lapso prescricional à cessação do vínculo está diretamente relacionada à influência que poderá ser exercida pelo agente na apuração dos fatos, o que reforça a tese de que a prescrição somente deve se principiar com o afastamento do agente.” (Improbidade administrativa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 646).
[21] Como asseverou o célebre Beccaria, Cesare, “Parimenti quelli delitti atroci, dei quali lunga resta la memoria negli uomini, quando sieno provati, non meritano alcuna prescrizione in favore del reo che si è sottratto colla fuga” (Dei delitti e delle pene. Milano: Società Tipografica dei Classici Italiani, 1821, p. 45).
[22] Ainda uma vez nos servimos das palavras de Dallagnol, Deltan: “A corrupção é uma serial killer que mata em silêncio. Ela se disfarça de buracos em estradas, falta de medicamentos, crime de rua, miséria. Mas, como se esconde, dificilmente é responsabilizada pelas mortes que causa. Porém as pessoas que sofrem suas consequências existem e têm nome. E ninguém está livre de ser a próxima vítima. Todos nós temos razões de sobra para nos indignar e tomar uma atitude.” (op. cit., p. 40).
[23] Vale aqui lembrar o raciocínio traçado para fatos antecedentes à Lei de Improbidade: “O dever de reparar o dano causado a outrem preexistia à Lei nº 8.429/92, no mínimo desde o direito romano, o que afasta o argumento de que, tratando-se de diploma que institui determinada sanção, não estariam sujeitos a ressarcimento os danos anteriores à sua vigência.” (Garcia, Emerson; Pacheco, Rogério. Improbidade administrativa. op. cit., 568). Assim como para as hipóteses de prescrição: “(…) tem-se que somente as demais sanções previstas nos feixes do art. 12 da Lei de Improbidade serão atingidas pela prescrição, não o ressarcimento do dano (material ou moral), o qual poderá ser a qualquer tempo perseguido”. (idem, op. cit., p. 644).
[24] Disponível em: https://worldjusticeproject.org/our-work/research-and-data/wjp-rule-law-index-2021. Acessado em 06.01.2022.