Todos estão literalmente estarrecidos pelas notícias que correm nos noticiários e mídias sociais a respeito do que está ocorrendo (novamente) com os Yanomami. Deixarei de tecer análises subjetivas, talvez perdesse o foco do objetivo único do presente texto, que é, no máximo, tentar esclarecer quais foram os parâmetros tomados pelo STF no conhecido “Caso Haximu”, sobre a definição dos delitos de genocídio e homicídios, bem assim a competência para julgamento, além de considerações finais a respeito das chamadas obrigações processuais penais positivas.
Relembremos rapidamente o caso.
Tratou-se de um massacre praticado em 1993 por garimpeiros contra 12 (doze) integrantes do grupo indígena Yanomami e julgado pelo STF em 2006 (Recurso Extraordinário nº 351.487-Roraima). Nesse caso, foram denunciados Pedro Emiliano Garcia e outros pelos delitos de genocídio (art. 1º, letras “a”, “b” e “c” da Lei nº 2.889/56), associação para o genocídio (art. 2º, Lei nº 2.889/56) – previstos como crimes hediondos (conforme hoje o art. 1º, parágrafo único, I, Lei nº 8.072), lavra garimpeira (art. 21, Lei nº 7.805/89), contrabando (art. 334, cp), ocultação de cadáveres (art. 211, CP), crimes de dano (art. 163, I, II e IV) e “quadrilha ou bando” (hoje, associação criminosa, art. 288, CP). Não houve denúncia pelos 12 homicídios. Houve condenação pelo genocídio. O recurso extraordinário movido ao STF sustentou que a competência para o julgamento seria do júri federal (porque o genocídio fora praticado por meio de homicídios), e não do juízo federal de Boa Vista/RR, como ocorreu.
O STF não acolheu a tese defensiva.
O voto-condutor, da lavra do Ministro Cezar Peluso, defendeu que o caso seria, em tese, de genocídio em concurso formal com vários crimes de homicídio em continuidade delitiva. A solução seria sim a competência do Tribunal do Júri, com a vis atrativa para o julgamento também do genocídio. Entretanto, como os réus não foram denunciados (e, obviamente, nem condenados) pelos homicídios, não se poderia anular o caso pois se estava diante de recurso exclusivo da defesa, vedada eventual reformatio in pejus.
Essa a sintética situação do que ocorreu nos autos.
Queremos agora é explicitar de forma mais simples o que ficou assentado pelo STF a respeito do que seria o delito de genocídio, nos termos do voto-condutor, acolhido pelo plenário da Corte Suprema.
O acórdão ficou assim ementado (e recomendamos a leitura de sua íntegra, disposta ao final do presente texto, inclusive com alguns destaques):
1. CRIME. Genocídio. Definição legal. Bem jurídico protegido. Tutela penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter coletivo ou transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Consumação mediante ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção e a outros bens jurídicos individuais, constituem modalidade executórias. Inteligência do art. 1º da Lei nº 2.889/56, e do art. 2º da Convenção contra o Genocídio, ratificada pelo Decreto nº 30.822/52. O tipo penal do delito de genocídio protege, em todas as suas modalidades, bem jurídico coletivo ou transindividual, figurado na existência do grupo racial, étnico ou religioso, a qual é posta em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens jurídicos individuais, como o direito à vida, a integridade física ou mental, a liberdade de locomoção etc..
2. CONCURSO DE CRIMES. Genocídio. Crime unitário. Delito praticado mediante execução de doze homicídios como crime continuado. Concurso aparente de normas. Não caracterização. Caso de concurso formal. Penas cumulativas. Ações criminosas resultantes de desígnios autônomos. Submissão teórica ao art. 70, caput, segunda parte, do Código Penal. Condenação dos réus apenas pelo delito de genocídio. Recurso exclusivo da defesa. Impossibilidade de reformatio in peius. Não podem os réus, que cometeram, em concurso formal, na execução do delito de genocídio, doze homicídios, receber a pena destes além da pena daquele, no âmbito de recurso exclusivo da defesa.
3. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ação penal. Conexão. Concurso formal entre genocídio e homicídios dolosos agravados. Feito da competência da Justiça Federal. Julgamento cometido, em tese, ao tribunal do júri. Inteligência do art. 5º, XXXVIII, da CF, e art. 78, I, cc. art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal. Condenação exclusiva pelo delito de genocídio, no juízo federal monocrático. Recurso exclusivo da defesa. Improvimento. Compete ao tribunal do júri da Justiça Federal julgar os delitos de genocídio e de homicídio ou homicídios dolosos que constituíram modalidade de sua execução.
Vamos pontuar as conclusões, para facilitar.
1. Em 1948, a Assembleia Geral da ONU adotou a Convenção para a Prevenção e Represeção do Crime de Genocídio, dispondo-se no art. 2º a seguinte definição:
”Qualquer dos seguints atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étcnico, racional ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de oacsionar-lhe a destruição física, total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”.
O Estatuto de Roma, que instituiu o TPI, estabeleceu a competência (referida na época do julgamento pelo STF) de quatro categorias de crimes, dentre elas o de genocídio. E no art. 6º do Estatuto há definição do crime de genocídio nos mesmos moldes do art. 2º da Convenção: “Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocídio” qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étcnico, racional ou religioso, enquanto tal: a) homicídio de membros do grupo; b) ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo”.
2. No Brasil, a Convenção foi ratificada pelo Decreto nº 30.822/1952, está previsto em três dispositivos legais, cabendo destaque – aqui – à Lei nº 2.889/1956, que dispõe:
Art. 1º. Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étcnico, racial ou regilioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar mediadas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.
As penas serão: do art. 121, § 2º, do CP, na hipótese da letra “a”; com as do art. 129, § 2º, CP, da letra “b”; com as do art. 270, CP, da letra “c”; com as do art. 125 do CP, no caso da letra “d”; e com as penas do art. 148 do CP, no caso da letra “e”
É importante alertar que, conforme jurisprudência de muito tempo do STF, as convenções internacionais não podem tipificar crimes internamente, devendo haver lei brasileira específica assim prevendo (princípio da legalidade).
Mas vale o alerta do relator no caso em comento:
”O que orienta a discussão aqui é a delimitação conceitual do bem jurídico protegido pelo crime de genocídio, como pressuposto metodológico da resposta à questão última de saber se incide, ou não, o disposto no art.5º, XXXVIII, letra “d”, da Constituição da República, que estatui a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.
3. Conforme previsto em nossa legislação, assentou-se que o genocídio corporifica crime autônomo contra bem jurídico coletivo, diversos dos ataques individuais que compõem modalidades de sua execução (que pode ocorrer de várias formas). Noutras palavras, “o desvalor do crime de genocídio não absorve nem dilui o desvalor dos crimes contra bens jurídicos individuais ofendidos na prática dos atos próprios de cada modalidade de sua execução”. Desse modo, “o tipo penal do genocídio não corresponde à soma de um crime de homicídio mais um elemento especial “(intenção de destruir um grupo”) – quando a causa seria da competência do Tribunal do Júri -, até porque pode ser praticado mediante outras formas que não a do homicídio. O homicídio é, aí, só modalidade de execução do delito, o que desloca a competência para o domínio do critério da consução”.
E a seguir se reconheceu que não se pode aplicar “a consução dos homicídios pelo crime de genocídio, já que, em nosso ordenamento, a cominação da sanção penal logo revela que o desvalor do homicídio não está absorvido pelo desvalor da conduta do crime de genocídio”.
De forma mais explícita, agora analisando o caso concreto, o relator assentou que “quem matar doze membros de um grupo, com a intenção de destruí-lo, no todo ou em parte, receberá uma só pena, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos, pela prática de genocídio, sem prejuízo da pena relativa a cada um dos ataques aos bens jurídicos personalíssimos. Absurdo palpável seria aplicar a quem mate diversos membros de um grupo, com a particular intenção de o destruir, a pena de um só homicídio, posto que qualificado, no lugar de tantas quantas sejam devidas por todos os homicídios”.
4. E a conclusão, tal como anunciado, foi a de que “havendo concurso entre crimes dolosos contra a vida (os homicídios) e o crime de genocídio, a competência para julgá-los todos seria do Tribunal do Júri, à luz do artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal, e do artigo 78, inciso I, do Código de Processo Penal”. Só não houve a anulação do caso concreto, porque não houve denúncia pelos 12 crimes de homicídios, senão apenas pelo genocídio, e o recurso levado à Corte Suprema era exclusivo da defesa, de modo que haveria reformatio in pejus.
5. Assim, ficou expresso no julgamento do STF que o genocídio NÃO é crime doloso contra a vida, mas contra a existência de grupo nacional, étnico, racial ou regilioso. Nos termos da legislação brasileira, o crime de genocídio pressupõe o dolo específico “com a intenção de destruir, no todo ou em parte” os grupos protegidos, mediante as condutas-meio previstas nas alíneas “a” a “e” do art. 1º da Lei nº 2.889/1956.
São esses os parâmetros hoje vigentes e estipulados pelo STF para que se possa cogitar de delito de genocídio, sem prejuízo de todos os demais crimes que possam ter ocorrido de forma autônoma.
E a questão que complementa agora é destacar a relevância de que esse(s) crime(s) cometido(s) atualmente seja(m) apurado(s) na máxima medida, com rapidez e eficiência, de modo a responsabilizar firmemente quem os tenha cometido.
Conforme defendemos na companhia de Frederico Valdez Pereira no livro “Obrigações Processuais Penais Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos” (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 3 ed, 2022, p. 95), “partindo da noção dos direitos fundamentais como objeto indispensável de proteção criminal (pela perspectiva integral dos direitos fundamentais), tais obrigações processuais são extraídas não apenas de disposições específicas, relativas à proteção dos direitos à vida, integridade física e psíquica, liberdade individual, vida privada e familiar, mas também de cláusula genérica que exige dos países o respeito dos direitos de todos aqueles que estejam sob a jurisdição do Estado. São reconhecidas, assim, obrigações reais e positivas dos Estados membros, que consistem no dever de seus órgãos internos assegurar a salvaguarda desses direitos, prevenindo a violação e esclarecendo judicialmente o cometimento de fatos ilícitos, como forma de efetuar sua repressão, não apenas formal e simbólica, mas adequada e concreta”.
De relevo também acentuar que ambas as Convenções (Americana e Europeia de Direitos Humanos) possuem regras que impõem aos Estados signatários obrigações de respeitar e fazer valer os direitos e liberdades. É importantíssimo frisar que são obrigações de dupla vinculação: negativas, vedando aos Estados a violação de Direitos Humanos; e positivas, pois exigem das partes a adoção de medidas necessárias e suficientes para tutelar esses direitos, impedindo a violação deles por terceiros e reprimindo eficazmente eventuais lesões a esses valores fundamentais da vida em sociedade.
Ao contrário do que apregoado por alguns setores da doutrina (preocupada apenas com as vinculações negativas), as cláusulas convencionais protetivas dos direitos fundamentais exigem a postura dentro dos sistemas jurídicos domésticos de condução de investigações aprofundadas, céleres e diligentes, tendo como finalidade a tentativa de esclarecer os fatos e punir os responsáveis ao final do processo (identificando-se nítida hipótese de prevenção geral). Nesse ponto, há tempos sustentamos, na linha do próprio STF, a existência de um garantismo positivo, que impõe esse dever estatal de atuação em prol da proteção de direitos humanos e/ou fundamentais.
Portanto, e como anunciado acima, fica muito claro que os deveres processuais positivos decorrem diretamente, como implicações imediatas, dos direitos humanos protegidos também nas convenções.
Assim, os ordenamentos jurídico-penais internos devem estar ajustados a prevenir, esclarecer e sancionar de forma efetiva e eficaz as lesões verificadas (op. cit., p. 189). Havendo notícia da possibilidade de afronta a direitos penalmente tutelados por instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, exige-se das autoridades a séria tentativa de esclarecer todas as circunstâncias do fato e os eventuais responsáveis, com vistas à eventual punição. E tal esforço deve ser impulsionado prontamente, em procedimento diligente e ágil, adequado à reconstrução dos fatos e à completa identificação das responsabilidades (op. cit., p. 109).
Em apertada síntese, as obrigações processuais penais positivas consistem num dever imposto aos Estados Partes (garantismo positivo) de conduzir procedimento investigativo eficiente e processo penal apto a buscar o acertamento dos fatos ilícitos e a punição dos eventuais responsáveis, sob pena de violação concreta dos dispositivos das convenções regionais de direitos humanos que estipulam a salvaguarda dos direitos fundamentais envolvidos nas práticas ilícitas (op. Cit., p. 121).
Na esperança de que não tenhamos repetição desses fatos no futuro, é importante a adoção de providências preventivas e repressivas (sérias e eficientes), até mesmo para evitarmos mais mortes e também condenações no Brasil na Corte IDH, até porque, no presente momento, foram 11 condenações, todas elas por violações dos direitos das vítimas dos crimes cometidos.
Acesse aqui a íntegra do texto em formato pdf e também a íntegra do julgado do STF