A (emblemática e equivocada) DECISÃO DO STF “POR EMPATE” NA RECLAMAÇÃO Nº 34.796

Houve notícias nos meios de comunicação que, no dia 14.9.2021, a 2ª Turma do STF, por EMPATE na votação (2×2 votos) decidiu anular processo envolvendo o então Deputado Eduardo Cunha sob o argumentos de que, aplicando-se (retroativamente!) uma mudança de entendimento jurisprudencial sobre processamento penal (Inquérito 4.435), o competente para o julgamento do caso seria a Justiça Eleitoral.

Conforme certidão eletrônica (http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5694116), provendo agravo regimental “a Turma, por empate na votação, deu provimento, em parte, ao recurso, a fim de reconhecer a incompetência do Juízo da 13ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de Curitiba/PR, determinando, por consequência, a remessa da AP 5051606-232016.4.04.7000/PR e dos feitos acessórios ao Juízo Eleitoral do Rio de Janeiro/RJ competente, a quem caberá a análise da validade dos atos decisórios e instrutórios realizados, nos termos do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, Redator para o acórdão, e do Ministro Gilmar Mendes, vencidos os Ministros Edson Fachin (Relator) e Nunes Marques, que negavam provimento ao agravo regimental […]  2ª Turma, 14.9.2021”.

A decisão foi tomada na Reclamação 34.796.

A tese foi de que teria havido a “violação do juiz natural”.

Sugiro a leitura com calma, para que cada um tire suas conclusões.

O texto é longo, já aviso. Mas necessário, para não incorrer aqui de omitir NENHUM DADO que considere relevante.

Quem recebe as informações não pode ficar atrelado a versões parciais ou a “head lines”, muito menos a “discursos abertos e, quando não,  vazios de conteúdo” de supostas violações de direitos fundamentais.

Se houver dúvidas, pesquise em fontes abertas e em andamentos processuais não cobertos por qualquer restrição de sigilo judicial, como eu fiz, sobretudo analisando as decisões que julgaram todos os  incidentes, requerimentos e recursos formulados (processo 50516062320164047000).

Dá trabalho manual, pesquisar, ler todas as linhas …  mas é importante esclarecer para quem efetivamente quer compreender a realidade das coisas.

Trarei aqui as minhas, que são eminentemente jurídicas, que fique claro.

Aos fatos e, depois, aos fundamentos.

Por ocupar foro por prerrogativa de função, o (então) Deputado Eduardo Cunha foi denunciado em 4.3.2016  perante o STF pela prática dos seguintes crimes:  corrupção passiva majorada (art. 317, § 1º do Código Penal), lavagem de dinheiro (art. 1º, V, e § 4º, da Lei nº 9.613/98), evasão de divisas (art. 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86) e de omissão ou declaração falsa em documento eleitoral (art. 350, CE).

A denúncia foi recebida pelo plenário em 22.6.2016.

Ao ter o mandado cassado, o STF (atentem: o STF !) determinou a remessa dos autos especificamente para uma localidade: a 13ª Vara Federal de Curitiba para continuar o processamento como de direito.

Disse o e. relator, saudoso Ministro Teori Zavascki:

“Como visto, a situação fática descrita, em que se destaca suposta solicitação e recebimento de vantagem indevida decorrente da aquisição de um campo de petróleo em Benin, país da região ocidental da África, guarda aparente pertinência com inquéritos e ações penais relacionadas a supostos crimes envolvendo a Petrobras, em curso perante a 13ª Vara Federal de Curitiba, o que enseja a remessa dos autos a esse juízo.

Por essas razões, determino, tão logo publicado o acórdão de recebimento da denúncia, a remessa destes autos e dos da AC 4007 e a eles vinculado ao juízo da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, para que LÁ TENHAM CURSO, como de direito”.

A primeira conclusão que fica é bem clara: ao contrário do que se vê em argumentos lançados a esmo por alguns (aliás, a reclamação diz que houve “usurpação de competência”), o Juízo da 13ª Vara Federal não usurpou competência constitucional, ele apenas CUMPRIU a ordem do Supremo Tribunal Federal, que determinou a remessa dos autos àquela localidade para o devido processamento, presente a conexão.

Disso não houve recurso na época, houve concordância !

Em decisão e 13 de outubro de 2016, em razão de ratificação (parcial) da denúncia pelos promotores naturais do caso, a decisão proferida foi a seguinte:

[…] Em 14/09/2016 foi determinada, pelo eminente Ministro Teori Zavascki, a remessa dos autos a esse juízo, pelo qual já tramita a ação penal 5027685-35.2016.4.04.7000 proposta contra outras pessoas envolvidas supostamente no mesmo fato e que é resultado do desmembramento do próprio Inquérito 4146, conforme autorização do Supremo Tribunal Federal (Cláudia CordeiroCruz, Idalécio de Castro Rodrigues de Oliveira, João Augusto Rezende Henriques e Jorge Luiz Zelada).

Em vista da mudança da legitimidade para a propositura da denúncia e da competência, determinei a intimação do MPF para ratificar ou não a denúncia (evento 4).

O MPF apresentou a petição do evento 7, ratificando a denúncia oferecida pelo Procurador Geral da República, salvo quanto à imputação do crime eleitoral do art. 350 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965). Quanto a este, argumentou que não teria-se caracterizado, por falta de lesão ao bem jurídico próprio, ou porque estaria absorvido pelo crime de lavagem. Alega ainda que, no caso de processamento do crime eleitoral, necessário o desmembramento do processo em relação à ele com encaminhamento à Justiça Eleitoral.

Causa certa estranheza a necessidade de ratificação da denúncia pelo MPF local, já que a anterior foi produzida por órgão de maior hierarquia no Ministério Público Federal. Ainda assim, considerando o deslocamento entre as instâncias da legitimidade para a persecução, após a perda do mandato parlamentar do acusado, trata-se de providência pertinente, sem olvidar evidentemente a hierarquia presente.

No caso, observo que o MPF apresentou motivos razoáveis para não ratificar a denúncia no que se refere à imputação do crime eleitoral.

Na denúncia originária, consistiria ele, o crime eleitoral, na falta de declaração, pelo então Deputado Federal Eduardo Cosentino da Cunha e quando do registro de sua candidatura perante o Egrégio Tribunal Superior Eleitoral, dos valores existentes nas contas off-shores mantidas no exterior e que teriam sido utilizadas, segundo a denúncia, para receber valores de propina de corrupção e para lavagem de dinheiro.

Tal conduta resta absorvida pela imputação de corrupção e lavagem, especialmente pela última. Do contrário, em toda imputação de corrupção e lavagem de dinheiro contra agente político, seria inevitável a imputação desse delito eleitoral menor.

Além disso, é evidente que, com tal omissão, o acusado não pretendia vulnerar a regularidade do processo eleitoral, bem jurídico protegido pela Lei n.º 4.737/1965, mas sim apenas manter em segredo a existência dessas contas no exterior, eventualmente  utilizadas, segundo a denúncia, como receptáculos de pagamento de vantagem indevida. Sem afetação concreta ou abstrata do bem jurídico protegido pela Lei nº 4.737/1965, não há configuração material do tipo do art. 350 da Lei nº 4.737/1965.

A esse respeito, “o crime de falsidade ideológica prescrito no art. 350 do Código Eleitoral exige finalidade eleitoral para que reste configurado” (CC 35.519/PR, Rel. Min. Arnaldo Esteves, STJ, Terceira Seção, un., DJU 02/03/2005).

Por outro lado, caso fosse dado processamento a esta imputação, seria forçoso o desmembramento da ação penal, com remessa dessa imputação específica à Justiça Eleitoral, já que à Justiça Federal não compete o julgamento de crimes eleitorais.

Com efeito, a jurisprudência pacífica do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, como apontado pelo MPF, é no sentido de que a conexão entre crime eleitoral e crime federal enseja a obrigatória separação dos processos, pois a competência da Justiça Eleitoral não se estende aos crimes federais, já que a competência da Justiça Federal, definida constitucionalmente, se sobrepõe às regras de conexão da legislação ordinária (precedentes CC 126.729/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Seção, un., j.24/04/2013, CC 39.357/MG, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, un., j. 09/06/2004, CC 19.478/PR, Rel. Ministro Fontes de Alencar, Terceira Seção, un., j. 28/03/2001).

A medida ainda seria bastante inconveniente, pois na prática representaria duplicação da instrução em duas esferas da Justiça, além da atribuição à Justiça Eleitoral do encargo de processar e julgar fatos de extrema complexidade, envolvendo ocultação de patrimônio no exterior. Sem embargo da capacidade da Justiça Eleitoral, o seu propósito é o de processar crimes que digam respeito diretamente a infrações da legislação eleitoral, o que não é exatamente o caso.

Então, considerando cumulativamente a ausência de tipicidade material do crime eleitoral, a absorção da falsidade ideológica pelos crimes de corrupção e de lavagem e o inconveniente do desmembramento, reputo razoável a posição do MPF em não ratificar a denúncia quanto à imputação do crime eleitoral do art. 350 da Lei n.º 4.737/1965.

Não havendo a ratificação, fica prejudicado o recebimento da denúncia exclusivamente quanto a esta imputação.

Embora desnecessariamente, já que trata-se de decisão do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro, ratifico igualmente o recebimento no que se refere a todos os demais crimes, apenas para evitar ulteriores questionamentos.

Realmente não era caso de “ratificação”, mas efetivamente não havia o crime eleitoral.

Mais que isso: a jurisprudência da época era uníssona no sentido da OBRIGATÓRIA CISÃO processual se houvesse crime eleitoral (atenção: se houvesse !).

O mais relevante é que a decisão foi BENÉFICA ao reconhecer que não tinha crime eleitoral.

Dessa decisão, a defesa se manifestou em 1º de novembro de 2016. Em nenhum momento (repita-se: nenhum momento) sustentou que os autos deveriam ir para a Justiça Eleitoral.  Aliás, a DEFESA sustentou que o MPF não ratificou a denúncia apresentada contra o réu com base em duas PREMISSAS IRRETOCÁVEIS, pois o acusado não pretendia vulnerar a regularidade do processo eleitoral, bem jurídico protegido pela Lei n.º 4.737/1965.

Está muito claro: a defesa do réu CONCORDOU que NÃO HAVIA CRIME ELEITORAL e que a decisão do Juízo ESTAVA CORRETA !

Comportamento contraditório anos depois ?

Poder-se-ia argumentar eventualmente: mas houve “violação do juiz natural” !

Nunca foi arguido em tempo oportuno, foi apenas cumprida ordem do STF anterior. E essa situação JAMAIS poderia ser revista contra O RÉU, mesmo que se diga que foi proferida por juiz que não tivesse competência para tanto.

Não se esqueça que as regras de conexão e continência não são de FIXAÇÃO de competência, mas de sua modificação.

Juiz natural está relacionado com as regras de fixação (prévia) dos critérios para tanto, evitando-se a “escolha” do julgador (e nem entraremos aqui na discussão no sentido de que regras infraconstitucionais não poderiam modificar regras constitucionais que fixam  a competência).

Conforme já destacamos (https://temasjuridicospdf.com/crimes-eleitorais-e-os-eventualmente-conexos/) em 5.10.2020 (muito antes do julgado retromencionado e já “antevendo” o que de fato poderia ocorrer, mesmo que “por empate”):

[…] 10.1 A situação extrema em que réu absolvido sumariamente da prática de crime eleitoral quer, mediante reclamação no STF, a anulação da decisão absolutória para, como consequência, deslocar competência para a Justiça Eleitoral de todos os crimes que responde de forma remanescente.

Há situações extremas que demonstram que a real finalidade de alguns é exclusivamente buscar a indevida nulificação de processo criminal que foi instruído e processado segundo a observância das regras de competência processual.

No bojo da Reclamação n. 34.796, ajuizada em 10.5.2019, após 3 anos da prática do ato processual, determinado réu em ação penal perante a 13ª Vara Federal de Curitiba/PR quer que se afaste a decisão que, sendo-lhe benéfica, rechaçou a existência de elementos de crime previsto no art. 350 do Código Eleitoral, tendo como efeito material verdadeira absolvição sumária.

Originariamente, esse (agora) reclamante possuía prerrogativa de foro no STF e, nessa condição, teve contra si recebida a denúncia ofertada pelo Procurador-Geral da República no dia 22.6.2016 (Inquérito n. 4.146)  por suposto crime do art. 350, Código Eleitoral, além da prática de de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Em virtude da perda de seu mandato em 14.9.2016, os autos foram remetidos para a 13ª Vara Federal em Curitiba (pela conexão com outra ação penal). Ao receber os autos, o juízo de primeiro grau enviou os autos ao Ministério Público para que ratificasse ou não a denúncia. O MPF ratificou a denúncia, salvo quanto ao crime eleitoral, por entender que não havia nenhum substrato fático quanto ao crime eleitoral.  O juízo de primeiro grau reconheceu expressamente a “ausência de tipicidade material do crime eleitoral”, ratificando o recebimento da denúncia unicamente quanto aos demais fatos.

Duas observações importantes:

1) Como sustentamos há muito, tecnicamente não seria caso de “ratificação da denúncia”, pois ela fora recebida pelo juízo competente à época (Plenário do STF). Presente o princípio do tempus regit actum, deveria ter sido dado regular andamento ao feito no estágio que se encontrava;

2) Malgrado essa circunstância, não há dúvida alguma de que a decisão do juízo de primeiro grau (diante da manifestação do Ministério Público) implicou verdadeira absolvição sumária quanto ao delito do art. 350 do Código Eleitoral. Mesmo que se possa argumentar eventualmente que o juízo federal não poderia absolver sumariamente réu sobre fato que estivesse fora de sua competência, impende rememorar que, na linha de pacífica jurisprudência do STF, essa decisão – por ser mais favorável ao réu – não pode ser objeto de revisão, pois transitou em julgado (vedada a reformatio in pejus ). Essa a razão, inclusive, pela qual o réu, devidamente intimado desse ato de absolvição sumária, não apresentou irresignação alguma (até porque, em tese, faltaria interesse jurídico no recurso, pois se tratava de decisão com cunho efetivamente mais favorável).

A ação penal prosseguiu em relação aos três fatos correlatos a crimes da competência da justiça federal comum (crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas), com sentença condenatória proferida em 30.3.2017, sendo confirmada pelo TRF4 em 21.11.2017.

Passados aproximadamente 3 anos da decisão que lhe foi favorável – e não apresentada nenhuma irresignação – o réu ajuizou a reclamação retromencionada no STF sob o fundamento de que a decisão do juízo de primeiro grau teria “afrontado” o que decidido pelo Plenário do STF anteriormente (com o recebimento da denúncia em relação aos quatro fatos originariamente imputados). A finalidade está bem clara nos “pedidos” da reclamação: suspender ação penal em andamento, além de execução penal de outra condenação, com concessão de liberdade, restabelecendo-se a “autoridade” da decisão proferida pelo Plenário do STF, de modo que os autos sejam remetidos para a Justiça Eleitoral.

Como se vê, a reclamação (totalmente desvirtuada de seus propósitos legais) foi ajuizada com a finalidade de “restabelecer” uma situação mais gravosa ao reclamante, embora a pretensão é uma nulidade por suposta violação do juiz natural.

A pretensão é descabida por três fundamentos essenciais.

O primeiro é que, de acordo com a uníssona jurisprudência do STF, a reclamação não se presta para, de modo transverso, substituir o recurso que deveria ter sido interposto na época contra a decisão agora objeto da reclamação. Atente-se para que a Suprema Corte reafirma cotidianamente que “a reclamação, por expressa determinação constitucional, destina-se a preservar a competência desta Suprema Corte e garantir a autoridade de suas decisões, ex vi do artigo 102, I, l, da CF além de salvaguardar o estrito cumprimento dos enunciados da Súmula Vinculante, nos termos do artigo 103-A, § 3º, da Constituição, incluído pela EC n. 45/2004″. Nesse particular, “a jurisprudência desta Suprema Corte estabeleceu diversas condicionantes para a utilização da via reclamatória, de sorte a evitar o uso promíscuo do referido instrumento processual”. Essa a razão pela qual a “reclamação é impassível de ser manejada como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, bem como é inadmissível a sua utilização em substituição a outras ações cabíveis” .

O segundo é que, como aqui defendido, o precedente do STF tomado em 2019 não pode ter efeitos retroativos para incidir sobre decisão tomada no ano de 2016, em que a finalidade única não é proteger qualquer direito fundamental do reclamante, mas unicamente “implantar” uma suposta nulidade (de modo retroativo) em ato jurisdicional perfeito, materialmente correto e em benefício do próprio reclamante. A jurisprudência é reiterada do STF no sentido de ser inviável o uso da reclamação para questionar a violação da autoridade de decisão deste Supremo Tribunal quando o ato reclamado é anterior ao parâmetro suscitado“ . Ou seja, a decisão „reclamada“ foi tomada muito tempo antes do „novo entendimento paradigmático“ invocado na reclamação. A solução é imperiosa no sentido do seu total descabimento.

E ainda nesse tópico: na mesma linha de jurisprudência do STF , convém relembrar que não cabe eventual concessão de habeas corpus de ofício em reclamação não admitida, sob pena de supressão de instância. Não se pode esquecer que a reclamação é uma espécie de irresignação ajuizada diretamente na Suprema Corte, enquanto o habeas corpus precisa observar o necessário escalonamento de acordo com as autoridades coatoras. Assim, se a reclamação é contra decisão de juiz de primeiro grau, habeas corpus (inclusive se ofício) somente pode ser concedido em sede de tribunal de apelação correspondente.

E o terceiro diz exatamente com o fato de que a pretensão deduzida viola, direta e frontalmente, a boa fé objetiva. A propósito do tema, cita-se que, bem recentemente, o STJ reafirmou que “o art. 5º do Código de Processo Civil de 2015, pelo qual “[a]quele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”, tem aplicação no Código de Processo Penal.” Assim, “a contradição entre o direito arguido e a anterior conduta processual ofende a boa-fé objetiva, na medida do nemo potest venire contra factum proprium”. É que, “consoante dispõe expressamente o art. 565 do Código de Processo Penal, nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa. Isso porque ninguém pode se beneficiar da própria torpeza, diante do princípio da lealdade processual, derivado da boa-fé” . Na mesma linha, assentou que “vige no sistema processual penal o princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, não sendo lícito à parte arguir vício para o qual concorreu em sua produção, sob pena de se violar o princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza – nemo auditur propriam turpitudinem allegans”.

E para sedimentar qualquer plausibilidade de pretensões como a noticiada, veja-se que a própria Suprema Corte não admite a reclamação que, ajuizada de forma claramente desvirtuada, viole a boa-fé objetiva: “[…] 1. A reclamação, por expressa determinação constitucional, destina-se a preservar a competência desta Suprema Corte e garantir a autoridade de suas decisões, ex vi do artigo 102, I, l, da CF além de salvaguardar o estrito cumprimento dos enunciados da Súmula Vinculante, nos termos do artigo 103-A, § 3º da Constituição, incluído pela EC n. 45/2004. […]  2. A boa-fé objetiva impede que a defesa se valha de suposto prejuízo a que deu causa, nos termos do artigo 565 do Código do Processo Penal. Precedentes: HC 91.711, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 21/11/2013 e HC 103.039-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 18/08/2011.  […]  8. Agravo regimental desprovido.”

Vamos destacar ainda que, após a CONCORDÂNCIA DA DEFESA com a não ratificação da denúncia em primeiro grau, relataremos uma sequência de fatos importantes no decorrer da instrução do processo até o esgotamento das instâncias ordinárias, com a interposição de recursos especial e extraordinário, destacando-se que, somente após a mudança de orientação jurisprudência do STF foi apresentada “tese” de que os autos deveriam ser remetidos para a Justiça Eleitoral (embora a defesa sempre tenha sustentado correta a decisão que afastou o crime eleitoral, vamos insistir).

Sentença proferida em 30.3.2017.

Nas razões de apelação (26 de junho de 2017), apresentadas perante o TRF4, a defesa ratificou o acerto da decisão ao não processar o delito eleitoral, não impugnando nada a respeito do assunto (vide o voto-condutor do julgamento).

Alguns recursos internos, todos indeferidos.

O mérito do recurso foi julgado em 21 de novembro de 2017.

Embargos de declaração postos em 18 de dezembro de 2017 (não acolhidos, sem nenhuma tese sobre o tema de suposta competência eleitoral, conforme voto-condutor).

Recursos Especial e Extraordinários em 30 de abril de 2018 (absolutamente nada quanto a questões eleitorais).

Em razão de determinação de processamento de embargos infringentes (originariamente indeferidos), foram interpostos novamente Recurso Especial e Extraordinário em 21 de março de 2019, e, pela primeira vez (modificando toda a linha defensiva), pede-se a incompetência da Justiça Federal por conta do “precedente do Inquérito 4.435”.

Atente-se que a defesa – que ATÉ ENTÃO concordava inexistir crime eleitoral e que, portanto, a competência era federal – passou a sustentar que a ação penal deveria ser toda anulada.

Até então não havia “violação do juiz natural” …

Mesmo que proferida uma decisão “absolutória” (ou com os mesmos efeitos dela) por um juiz absolutamente incompetente, a jurisprudência há muito assenta (de modo correto) que:

DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. […]  ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. DECISÃO PROFERIDA POR JUÍZO ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTE. PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA MILITAR POR FATO ANALISADO NA JUSTIÇA COMUM. IMPOSSIBILIDADE: CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL PERANTE O JUÍZO COMPETENTE. IMPOSSIBILIDADE. COISA JULGADA. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. […] 2. A decisão que absolveu sumariamente o ora paciente no âmbito da Justiça Comum, em virtude da incidência de causa excludente de ilicitude, impossibilita a instauração de ação penal perante a Justiça Especializada, uma vez que o Estado-Juiz já se manifestou sobre o fato. Ainda que se trate de decisão proferida por juízo absolutamente incompetente, deve-se reconhecer a prevalência dos princípios do favor rei, favor libertatis e ne bis in idem, de modo a preservar a segurança jurídica que o ordenamento jurídico demanda. Precedentes. […] (Habeas Corpus n. 362.054–PB, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 9.8.2016, publicado no DJ em 23.8.2016)

Vamos reiterar o que dissemos no mesmo texto já publicado e antes mencionado:

4. Pressupostos fundamentais para cogitar  deslocamento de competência para análise de possível reunião processual segundo os critérios da jurisprudência do STF.

É certo que praticamente todos os precedentes exarados pelo Supremo Tribunal Federal a respeito do tema dizem com análises de reunião ou cisão processual envolvendo competência por prerrogativa de foro (índole constitucional). E não haveria de ser de forma diversa, pois, como dito anteriormente, a competência constitucional do STF se dá exclusivamente nesses casos. Porém, e também na linha do que destacado, o tratamento da competência por prerrogativa de foro e em razão da matéria deve ser exatamente o mesmo.

Fixada essa premissa, há se formular outra pergunta: será qualquer fato ou arguição na justiça comum de “possível” crime eleitoral conexo que ensejará o deslocamento da competência ?

A resposta é seguramente não.

De forma absolutamente correta, o Supremo Tribunal Federal há muito vem entendendo que, para haver o deslocamento de um feito de instância inferior, é fundamental haver dados objetivos e concretos quanto a um fato em tese criminoso de sua competência.

A propósito, veja-se exemplificativamente que “a simples menção de nomes de parlamentares, por pessoas que estão sendo investigadas em inquérito policial, não tem o condão de ensejar a competência do Supremo Tribunal Federal para o processamento do inquérito, à revelia dos pressupostos necessários para tanto dispostos no art. 102, I, ‘b’, da Constituição”(Agravo Regimental na Reclamação nº 2.101/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Plenário, julgado em 1º.7.2002, publicado no DJ em 20.9.2002). 

No mesmo sentido, assentou-se que a “simples referência ao nome de três congressistas surgida no contexto de determinado procedimento penal instaurado em primeira instância. […] Sem que se evidencie a presença, fundada em bases concretas, de indícios reveladores de autoria ou de participação ativa, em prática delituosa, de autoridade detentora de prerrogativa de foro, a simples referência ao seu nome, feita em sede de determinado procedimento penal, não basta, só por si, para legitimar o deslocamento, para o  Supremo Tribunal Federal, da competência penal de que se acha investido órgão judiciário de inferior jurisdição. […] (Agravo Regimental na Medida Cautelar na Reclamação n. 26.574, STF, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 1º.6.2017, publicado no DJ em 5.6.2017). No mesmo diapasão, o STJ reconheceu que “a simples menção do nome de autoridades, em conversas captadas mediante interceptação telefônica, não tem o condão de firmar a competência por prerrogativa de foro”, sendo indispensável aferir se há indícios efetivos de participação de autoridades em condutas criminosas. […] (Habeas Corpus n. 422.642-SP, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 25.9.2018, publicado no DJ em 2.10.2018)

É preciso deixar bem claro que não serão meras ilações ou possibilidades/probabilidades de ocorrência de fato criminoso eleitoral que ensejarão o deslocamento da competência: será fundamental a indicação de  dados objetivos e concretos. Sem que tenha sido preenchido esse (primeiro) pressuposto não há se falar, em hipótese alguma, em pretensão a deslocamento da competência da Justiça comum (federal ou estadual) para a eleitoral para a análise da possível manutenção dos feitos de forma unificada.

Atente-se que o STJ bem apreendeu essa questão em precedente recente, inclusive posterior ao julgado paradigmático do STF:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL QUE TEVE INÍCIO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E FOI REMETIDO PARA A JUSTIÇA ESTADUAL DE BELO HORIZONTE/MG. JUSTIÇA COMUM ESTADUAL X JUSTIÇA ELEITORAL. CORRUPÇÃO PASSIVA E ATIVA, LAVAGEM DE DINHEIRO, CARTEL E FRAUDE A LICITAÇÕES RELACIONADAS À CONSTRUÇÃO DA CIDADE ADMINISTRATIVA DE MINAS GERAIS. SUPOSTO PAGAMENTO DE PROPINA DE 3% DO VALOR DAS OBRAS, QUE SERIA DESTINADO A FUTURAS CAMPANHAS ELEITORAIS DO ENTÃO GOVERNADOR/MG. AUSÊNCIA DE EVIDÊNCIAS DA DESTINAÇÃO DA SUPOSTA PROPINA PAGA. INVIABILIDADE DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DO CRIME DE CAIXA 2 (ART. 350 DO CÓDIGO ELEITORAL). COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL.

1. Não há como se reconhecer a evidência de indícios suficientes da existência do crime eleitoral conhecido como “caixa 2” (art. 350 do Código Eleitoral) se a menção a tal delito consta apenas em depoimento de um colaborador premiado (à época executivo da Odebrecht), que afirma ter ouvido do então Presidente da Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais – CODEMIG – que os supostos pagamentos de propina – correspondentes a 3% do valor recebido pela Construtora por sua participação na obra da Cidade Administrativa de Minas Gerais – seriam destinados a futuras campanhas eleitorais do então Governador de Minas Gerais, mas o depoimento não é amparado por qualquer prova da destinação eleitoral da verba.

2. Corrobora a inverossimilhança da destinação eleitoral da noticiada propina o fato de que não existe congruência entre a época dos supostos pagamentos indevidos e a proximidade de eleições, já que os pagamentos ilícitos foram majoritariamente realizados nos anos de 2008 e 2009, períodos em que o investigado era Governador de Minas Gerais e não disputava qualquer eleição a cargo público.

3. De mais a mais, a Justiça Eleitoral já reconheceu sua incompetência para conduzir o inquérito policial, quando afirmou que “este inquérito está arquivado na Justiça Eleitoral, a pedido do Ministério Público Eleitoral, que manifestou a sua ciência, tendo a decisão de arquivamento e baixa na distribuição sido publicada no PJE” (e-STJ fl. 1.062).

– Nessa linha de raciocínio, em recente julgado, alicerçado na decisão plenária do Supremo Tribunal Federal no INQ n. 4.435-AgR/DF, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, o eminente Ministro ALEXANDRE DE MORAES julgou procedente o pedido ofertado na Reclamação n. 38.275-TO, apontando a Justiça Eleitoral como a competente para reconhecer o crime eleitoral ou eventual conexão existente (decisão de 18/2/2020).

Logo, se, na hipótese vertente, a Justiça Eleitoral não vislumbrou indícios suficientes de ilícito penal eleitoral ou conexão, não há como entender correta a interpretação competencial dada pelo Juízo de Direito oficiante.

– Aliás, no ponto, nem a Justiça Eleitoral, nem o Ministério Público Eleitoral, nem o Parquet estadual, nem mesmo o MPF (como fiscal da ordem jurídica) reconheceram indícios de crime eleitoral, capazes de deslocar a competência da apuração em tela.

4. A possibilidade de descoberta de outras provas e/ou evidências, no decorrer das investigações, levando a conclusões diferentes, demonstra não ser possível firmar peremptoriamente a competência definitiva para julgamento do presente inquérito policial. Não obstante, tendo em conta que a definição do Juízo competente em tais hipóteses se dá em razão dos indícios coletados até então, revela-se a competência da Justiça Estadual para condução do Inquérito Policial. 5. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da Vara de Inquéritos de Belo Horizonte/MG, o suscitante. (Conflito de Competência n. 170.262/MG, STJ, 3ª Seção, unânime. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13.5.2020, publicado no DJ em 20.5.2020)

Ou seja, não cabe falar agora que, em feitos que já houve processamento por crimes comuns, se houvesse uma (remota) possibilidade de existir crime eleitoral (eventualmente) conexo não processado até o momento de forma conjunta, deveria haver a anulação dos feitos (das respectivas provas e eventuais condenações), deslocando-se tudo para a Justiça especializada, para recomeço dos processamentos. É raso e despido de qualquer plausibilidade técnica o raciocínio que envereda por uma linha tão simplória, com todas as venias de estilo. Veremos na sequência a fundamentação técnica a respeito do tema.

Prosseguindo dentro desse tópico, uma advertência fundamental: se já instaurada ação penal em determinado juízo com inquéritos possivelmente conexos também em andamento, o deslocamento desses inquéritos para a Justiça Eleitoral analisar eventual competência sua não deslocará a ação penal já em andamento em que não há qualquer imputação de crime eleitoral. Ou seja, e na linha do que já mencionado, a mera possibilidade da existência de fatos a serem apurados em inquéritos não implicará jamais o concomitante deslocamento de ação penal em tese conexa que já corre perante juízo (natural) competente (em razão dos fatos imputados, que delimitam a competência). O que poderá ocorrer é, no máximo, se devidamente comprovado ulteriormente o crime eleitoral num dos procedimentos investigatórios (com a respectiva denúncia recebida) é que o juízo prevalente poderá “avocar os processos que corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva“, hipótese em que “a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas” (art. 82, CPP).

É dizer: se houvesse qualquer possibilidade (mais remota que fosse) de responsabilização por crimes eleitorais (conexos que fossem com os crimes comuns), não haveria reunião processual se já proferida sentença definitiva (de mérito). Art. 82 do CPP: “ Se, não obstante a conexão ou continência, forem instaurados processos diferentes, a autoridade de jurisdição prevalente deverá avocar os processos que corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva. Neste caso, a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas”.

Rememoremos que as regras de conexão e continência alteram a competência, que está fixada previamente na Constituição e na legislação (juiz natural).

Isso é basilar no processo penal !

Além de tudo, para haver deslocamento de competência, deve haver indícios mínimos do “crime” da “justiça prevalente”.

Há muito a jurisprudência sólida do STF assenta essa premissa.

Embora tratando de temas de prerrogativa de foro (que, tal qual em razão da matéria, é tema de competência absoluta), assentou o Ministro Gilmar Mendes que “esta Corte já fixou balizas interpretativas quanto ao procedimento a ser adotado, caso surjam, no curso de investigação, indícios de coautoria, participação ou prática de crimes conexos ou continentes por autoridades com prerrogativa de foro em Tribunais. A primeira orientação é de que as investigações e ações penais devem ser remetidas ao foro mais graduado, que, por sua ver, decidirá sobre a própria competência. Por sua vez, caso entenda conveniente, o Tribunal, realizará a cisão subjetiva e objetiva dos feitos, na forma do art. 80 do CPP. Caso opte pela cisão, poderá devolver à instância inferior o julgamento de fatos e pessoas sem prerrogativa de foro”. Desse modo, “os indícios de responsabilidade penal da autoridade com prerrogativa de foro devem ter o mínimo de consistência. Não basta ”a simples menção ao nome de autoridades detentoras de prerrogativa de foro, seja em depoimentos prestados por testemunhas ou investigados, seja na captação de diálogos travados por alvos de censura telefônica judicialmente autorizada, assim como a existência de informações, até então, fluidas e dispersas a seu respeito” – Rcl 25.497, AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 14.2.2017. No mesmo sentido: Rcl 2.101, AgR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 20.9.2002; HC 82.647, Segunda Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 25.4.2003”. (Reclamação 26.885-RJ, julgado em 23.5.2017, publicado no DJ em 25.5.2017).

Tal qual no deslocamento em razão da prerrogativa de foro, também em razão da matéria para haver o deslocamento deve-se ter elementos minimamente seguros da existência do crime que o  justifique para a competência prevalente, não sendo meras suposições que podem sustentar tal posicionamento. É esse o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, talvez olvidado no caso concreto !

Além disso, fosse aceitável esse “raciocínio” de deslocamento com um simples “acho que pode ter crime prevalente”, toda descoberta ulterior de possíveis fatos conexos com outros já processados importariam em deslocamento dos processos já sentenciados com as anulações dos feitos dos “primeiros crimes apurados”, o que não encontra guarida na jurisprudência nem na doutrina minimamente comprometida com os postulados básicos de um “justo processo penal”.

Relevante ainda enfatizar que NUNCA houve arguição de incompetência federal (apenas cumprimento da ordem determinada anteriormente pelo STF) e que o precedente acerca de análise de possível conexão de crimes eleitorais com outros comuns só passou a existir (em “virada de entendimento jurisprudencial” por apertada diferença, causando verdadeira surpresa) em 14 de março de 2019 (vide aqui  http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5149810) .A reclamação foi ajuizada posteriormente ao julgado paradigma, às 18h13min25s do dia 10 de maio de 2019, ou seja, posterior à decisão do STF que foi invocada.

Relembremos: NÃO CABE RECLAMAÇÃO com fundamentação de ATO ANTERIOR ao precedente invocado, conforme assentado pelo STF: Inviável o uso da reclamação para questionar a violação da autoridade de decisão deste Supremo Tribunal quando o ato reclamado é anterior ao parâmetro suscitado” (Agravo Regimental na Reclamação nº 34.599, STF, 1ª Turma, unanimidade, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em sessão virtual de 3.4.2020 a 14.4.2020, publicado no DJ em 13.5.2020).

Se não cabe reclamação, repristinamos o que sustentamos aqui (https://temasjuridicospdf.com/como-burlar-a-sumula-691-do-stf-mediante-o-ajuizamento-de-reclamacao-incabivel/): “Concluindo e reiterando o que já afirmado: se não é admitida a reclamação ou qualquer outro recurso (inadmissibilidade significa que não é inaugurada a competência do tribunal para a apreciação da irresignação), não cabe a concessão de qualquer medida ex officio, notadamente quando isso importar (na grande maioria das vezes) em burla à vedação da supressão de instâncias”.

Em decisão de 27 de junho de 2019, assentou o Ministro Edson Fachin: considerando sustentar-se na inicial ter havido ‘manipulação da competência’ pelo Juiz Federal, bem como levando em conta a coleta de parecer pela Procuradoria-Geral da República, tenho por bem solicitar informações à autoridade reclamada (Juízo da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR)”.

De qualquer modo, importa ver ainda que, no mérito da discussão, decidiu (de modo absolutamente técnico e jurídico) o Ministro Edson Fachin (acompanhado pelo Ministro Nunes Marques):

[…] 2. Como ressaltado, esta Reclamação foi ajuizada com fundamento no art. 102, I, “l”, da Constituição Federal, tendo por objeto alegado descumprimento, por parte do Juízo da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR, de acórdão proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal por ocasião do recebimento da denúncia ofertada nos autos do INQ 4.146.

A decisão reclamada, como se vê, é originária da mesma relação processual em que se deu o pronunciamento jurisdicional do Plenário do Supremo Tribunal Federal tido por descumprido, sendo cabível, em tese, a reclamação constitucional.

Nada obstante, conforme se depreende da documentação que instrui o pleito, a decisão objurgada foi proferida em 13.10.2016, e consistiu, em síntese, no juízo de prejudicialidade do recebimento da denúncia ofertada em desfavor do reclamante no tocante ao delito previsto no art. 350 do Código Eleitoral, diante da manifestação do Ministério Público Federal pela aplicabilidade do princípio da consunção e sua absorção pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Esse específico decisum, desde então – 13.10.2016 – não foi objeto de insurgência pelas partes, sendo alcançado, por isso, pela preclusão máxima que obsta o manejo da reclamação constitucional, nos termos do art. 988, § 5º, I, do Código de Processo Civil, bem como do entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal no Enunciado 734 da sua Súmula, redigido nos seguintes termos:

“Não cabe reclamação quando já houver transitado em julgado o ato judicial que se alega tenha desrespeitado decisão do Supremo Tribunal Federal”.

Na espécie, tratando-se de decisão que importou na extinção da pretensão punitiva pela rejeição, em parte, da denúncia, eventual irresignação seria manifestável pela via do recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581, I, do Código de Processo Penal, o que, repiso, não se verificou, já que tanto o reclamante como o Ministério Público Federal permaneceram inertes

Constato, desse modo, a existência de causa impeditiva ao conhecimento desta Reclamação. Entretanto, aprecio as razões declinadas pelo reclamante na forma do pleito subsidiário, perscrutando-as para a verificação da ocorrência de eventual nulidade passível de ser remediada mediante Habeas Corpus ex officio, nos termos do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal.

Suscitando ofensa ao princípio do juiz natural, deseja o reclamante a declaração de nulidade da ação penal em que foi condenado pela prática de crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, insurgindo-se, depois de quase 3 (três) anos da data em que proferida, contra a decisão do Juízo da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR que julgou prejudicado o recebimento da denúncia ofertada pela Procuradoria-Geral da República no tocante ao delito de falsidade ideológica eleitoral, previsto no art. 350 do Código Eleitoral.

De fato, em sessão de julgamento realizada no dia 22.6.2016, o Plenário desta Corte Suprema recebeu, em parte, a denúncia ofertada nos autos do INQ 4.146 em desfavor do reclamante, nos termos da seguinte ementa:

“INQUÉRITO. IMPUTAÇÃO DOS CRIMES PREVISTOS NO ART. 317, § 1º, C/C ART. 327, § 2º, DO CÓDIGO PENAL, ART. 1º, V, e § 4º, DA LEI 9.613/1998, ART. 22, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 7.492/1986 E ART. 350 DA LEI 4.737/1965, NA FORMA DO ART. 69 DA LEI PENAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. COOPERAÇÃO DE TRANSFERÊNCIA DE PROCEDIMENTO CRIMINAL DA SUÍÇA PARA O BRASIL. VIABILIDADE. INÉPCIA DA PEÇA ACUSATÓRIA POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. AFASTAMENTO. DESCRIÇÃO SUFICIENTE DAS CONDUTAS ATRIBUÍDAS AO DENUNCIADO, ASSEGURANDO-LHE O EXERCÍCIO DA AMPLA DEFESA. ATENDIMENTO AOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DE INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE. MAJORANTE DO ART. 327, § 2º, DO CP. EXCLUSÃO. DENÚNCIA PARCIALMENTE RECEBIDA. 1. Nos termos do art. 4º, § 13, da Lei 12.850/2013, não há indispensabilidade legal de que os depoimentos referentes a colaborações premiadas sejam registrados em meio magnético ou similar, mas somente uma recomendação para assegurar maior fidelidade das informações. Inexiste, portanto, nulidade ou prejuízo à defesa pela juntada apenas de termos escritos, sobretudo quando não foi realizada a gravação dos depoimentos. 2. A tradução para o vernáculo de documentos em idioma estrangeiro só deverá ser realizada se tal providência tornar-se absolutamente ‘necessária’, nos termos do que dispõe o art. 236 do Código de Processo Penal. 3. A transferência de procedimento criminal, embora sem legislação específica produzida internamente, tem abrigo em convenções internacionais sobre cooperação jurídica, cujas normas, quando ratificadas, assumem status de lei federal. Exsurgindo do contexto investigado, mediante o material compartilhado pelo Estado estrangeiro, a suposta prática de várias condutas ilícitas, nada impede a utilização daquelas provas nas investigações produzidas no Brasil, principalmente quando a autoridade estrangeira não impôs qualquer limitação ao alcance das informações e os meios de prova compartilhados, como poderia tê-lo feito, se fosse o caso. É irrelevante, desse modo, qualquer questionamento sobre a dupla tipicidade ou o princípio da especialidade, próprios do instituto da extradição. 4. Tem-se como hábil a denúncia que descreve todas as condutas atribuídas ao acusado, correlacionando-as aos tipos penais declinados. Ademais, ‘não é lícito ao Juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória. Poderá fazê-lo adequadamente no momento da prolação da sentença, ocasião em que poderá haver a emendatio libelli ou a mutatio libelli, se a instrução criminal assim o indicar’ (HC 87324, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, DJe de 18.5.2007). 5. É incabível a causa de aumento do art. 327, § 2º, do Código Penal pelo mero exercício do mandato parlamentar, sem prejuízo da causa de aumento contemplada no art. 317, § 1º (Inq 3.983, minha relatoria, Tribunal Pleno, DJe 12.05.2016). A jurisprudência desta Corte, conquanto revolvida nos últimos anos (Inq 2606, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 11.11.2014, Dje-236, divulg. 1.12.2014, public. 2.12.2014), exige uma imposição hierárquica ou de direção (Inq 2191, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 8.5.2008, processo eletrônico Dje-084, divulg. 7.5.2009, public. 8.5.2009) que não se acha nem demonstrada nem descrita nos presentes autos. 6. Afigura-se suficiente ao recebimento da denúncia a existência de fartos indícios documentais que demonstram que o acusado teria ocultado e dissimulado a origem de valores supostamente ilícitos, mediante a utilização de meios para dificultar a identificação do destinatário final, por meio de depósitos em contas vinculadas a ‘trusts’. 7. A existência de elementos indiciários que indicam a plena disponibilidade econômica sobre os ativos mantidos no exterior, ainda que em nome de trusts ou empresas offshores, torna imperativa a admissão da peça acusatória pela prática do crime de evasão de divisas. 8. É certo que o tipo penal do art. 350 do Código Eleitoral exige expressamente, para sua configuração, que a omissão de declaração que deva constar do documento público seja realizada com fins eleitorais. No caso, há indícios que esse comportamento deu-se em razão de o denunciado não ter como justificar a existência de valores no exterior, em soma incompatível com seu patrimônio. Ao lado disso, conforme firme orientação deste Supremo Tribunal Federal, a aferição do elemento subjetivo, em regra, é matéria que se situa no âmbito da instrução processual: INQ 3588-ED, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJe de 16.4.2015; INQ 3696, minha relatoria, Segunda Turma, DJe de 16.10.2014. 9. Denúncia parcialmente recebida, com exclusão somente da causa de aumento prevista no art. 327, § 2º, do Código Penal” (INQ 4.146, Rel.: Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 22.6.2016).

Como se extrai da ementa transcrita, dentre as imputações atribuídas ao reclamante, admitiu-se a deflagração da persecução penal à apuração do suposto delito de falsidade ideológica eleitoral narrado na incoativa, previsto no art. 350 do Código Eleitoral.

Posteriormente, por meio de decisão monocrática proferida em 14.9.2016, o então Relator, o saudoso Ministro Teori Zavascki, diante da noticia da superveniente perda do mandato parlamentar no qual se encontrava investido o aqui reclamante, declinou da competência do Supremo Tribunal Federal, direcionando os autos ao Juízo ora reclamado, oportunidade na qual Sua Excelência, após sumariar os fatos narrados na denúncia, externou as seguintes considerações:

“(…) Como visto, a situação fática descrita, em que se destaca suposta solicitação e recebimento de vantagem indevida decorrente da aquisição de um campo de petróleo em Benin, país da região ocidental da África, guarda aparente pertinência com inquéritos e ações penais relacionadas a supostos crimes envolvendo a Petrobras, em curso perante a 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, o que enseja a remessa dos autos a esse juízo. 4. Por essas razões, determino, tão logo publicado o acórdão de recebimento da denúncia, a remessa destes autos e dos da AC 4007 a eles vinculado ao juízo da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, para que lá tenham curso, como de direito”.

Nota-se, portanto, que partiu do próprio Supremo Tribunal Federal, na pessoa do saudoso Relator do INQ 4.146, que atuou nos limites das atribuições e poderes conferidos pelo Regimento Interno desta Corte, a determinação para o encaminhamento dos autos ao Juízo da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR para a continuidade do processamento da ação penal deflagrada, mesmo havendo na imputação admitida a descrição da prática de um delito da competência da Justiça Eleitoral.

E como se depreende do extrato de movimentação processual do aludido caderno indiciário, essa referida decisão não foi objeto de qualquer impugnação pelas partes, Ministério Público Federal ou defesa, ainda que viável a eventual insurgência por meio de agravo regimental cabível.

Não havendo, portanto, objeção à decisão proferida pelo saudoso Ministro Teori Zavascki, os autos foram encaminhados ao referido Juízo que, de plano, instou o Ministério Público Federal a se manifestar, oportunidade em que a Procuradoria da República no Paraná assentou e requereu:

“(…) Deixa de ratificar a denúncia em relação ao FATO 08 denunciado pelo Procurador Geral da República, consistente no crime de FALSIDADE IDEOLÓGICA PARA FINS ELEITORAIS, previsto no art. 350 do Código Eleitoral, por não possuir pertinência em relação às investigações conduzida pela 13ª Vara Federal de Curitiba.

Em primeiro lugar, trata-se de prática criminosa absorvida pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Do contrário, todas as imputações existentes por corrupção e lavagem de dinheiro deveriam ser acompanhadas da acusação do art. 350 do Código Eleitoral porque o agente político não declara à Justiça Eleitoral de forma ostensiva os recebimentos espúrios de seus crimes contra a administração pública

Além disso, não se vislumbra na referida conduta a violação do bem jurídico tutelado pela norma eleitoral relacionado aos valores referentes à liberdade do exercício do voto, a regularidade do processo eleitoral e à preservação do modelo democrático. Em outras palavras, ao omitir seus recursos espúrios existentes no exterior, o réu EDUARDO COSENTINO DA CUNHA não intentava especificamente violar nenhum bem jurídico protegido pelo Código Eleitoral. Sobre o tema:

(…) Assim, em razão do princípio da consunção, o MPF deixa de ratificar o oferecimento da denúncia em relação ao FALSIDADE IDEOLÓGICA PARA FINS ELEITORAIS previsto no art. 350 do Código Eleitoral.

Caso não seja este o entendimento de Vossa Excelência, de forma subsidiária, o MPF requer a cisão do caso para que julgamento do FATO 08, apenas, dê-se perante a Justiça Eleitoral, permanecendo as demais acusações sob a jurisdição da 13ª Vara Federal de Curitiba, na linha da jurisprudência pacífica do STJ:

(…) Em conclusão, o MPF ratifica o oferecimento da denúncia proposta pelo Procurador Geral da República, salvo em relação ao crime eleitoral. Subsidiariamente, o MPF requer a cisão do crime eleitoral, com o processamento dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro perante esse Juízo”.

Diante de tal cenário, o Juízo da 13ª Vera Federal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR proferiu a decisão reclamada, na qual reconheceu a atipicidade material da conduta atribuída ao reclamante no tocante ao delito previsto no art. 350 do Código Eleitoral, oportunidade em que consignou:

(já transcrevemos acima)

Conforme já anotado e também esclarecido pelo Juízo reclamado, a presente Reclamação é a primeira oportunidade em que a defesa técnica do reclamante insurge-se contra a aludida decisão, a qual se encontra inequivocamente acobertada pela preclusão máxima, diante do seu conteúdo benéfico e não sindicável, portanto, nem mesmo pela ação prevista em lei para a desconstituição da coisa julgada no âmbito penal.

Com efeito, não se pode perder de vista que as garantias processuais dispostas pelo Poder Constituinte Originário na Constituição Federal de 1988 são previsões em favor do jurisdicionado como forma de controle e contenção do exercício da jurisdição, um dos Poderes do Estado. Ou seja, trata-se de um conjunto de condições de inexorável observância para que a intervenção estatal na propriedade ou na liberdade do indivíduo seja considerada legítima no Estado de Direito.

A ratio da garantia prevista no art. 5º, LIII, da Constituição Federal, a qual materializa o princípio do juiz natural, não é outra senão assegurar ao indivíduo que, nas hipóteses previstas em lei, a restrição à liberdade de locomoção ou a prática de atos expropriatórios de bens somente serão efetivados com a observância ao devido processo legal e pelo juízo competente, conforme normas de distribuição da jurisdição previamente estabelecidas.

Por natureza, nas hipóteses em que não há ameaça ou lesão à liberdade de locomoção ou ao patrimônio do indivíduo por atos praticados pelo Estado-juiz, as garantias constitucionais permanecem incólumes, não havendo, portanto, nulidade a ser sanada.

É justamente essa a situação retratada nesta Reclamação, uma vez que, mesmo considerando ter sido proferida por juízo incompetente, o que não se afirma, a decisão que reconhece a atipicidade material de determinada conduta ou a considera absorvida pelas demais denunciadas, restringindo ou diminuindo o espectro da pretensão acusatória estatal, é inequivocamente benéfica ao denunciado, a qual, caso não seja objeto de pronto questionamento por parte do órgão ministerial, está sujeita aos efeitos da coisa julgada que, diante do seu conteúdo, sequer pode ser objeto de revisão criminal, em respeito ao princípio do favor rei.

Isso porque, no pleito formulado nesta Reclamação encontra-se, por certo, implícito o pedido para que o reclamante seja novamente processado pela prática do delito previsto no art. 350 do Código Eleitoral para que, então, a Justiça Especializada, delibere acerca da sua configuração ou não, após a renovação dos atos instrutórios. Tal pretensão, no entanto, sequer foi manifestada pelo órgão acusatório, o que importaria na prestação da jurisdição criminal em ofensa ao princípio dispositivo, porquanto ausente a provocação da autoridade constitucionalmente legitimada para o exercício da pretensão punitiva, nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal.

Nada obstante o juízo positivo de admissibilidade da incoativa pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no INQ 4.146, nele incluída a autorização para a deflagração da persecutio criminis in judictio pelo crime previsto no art. 350 do Código Eleitoral, o posterior decote da imputação pelo órgão do Ministério Público Federal com atribuição perante o juízo indicado por esta Corte como competente – e o consequente acolhimento por este, culminando em convicção sumária de extinção, em parte, da pretensão punitiva -, não configura desrespeito à autoridade daquela decisão, porque, além de não implementar ameaça ao direito de locomoção do reclamante, trata-se de atos praticados no legítimo exercício da autonomia funcional garantida aos órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Por oportuno, trago à colação os ensinamentos de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes, os quais sustentam na obra “As nulidades no processo penal” que a incompetência constitucional do juízo implica no vício de inexistência do ato jurisdicional prolatado, insuscetível, portanto, de surtir efeitos válidos, salvo em uma hipótese:

“(…) Por isso nova leitura também merece o art. 564, I, do CPP, no que respeita à incompetência constitucional: nesse caso, não ocorrerá nulidade, mas inexistência dos atos praticados pelo juiz incompetente.

Como já se viu, a coisa julgada exerce o papel de sanatória geral dos atos nulos, e até dos inexistentes praticados no processo, antes da sentença; só mediante revisão criminal ou habeas corpus poderá ser arguida a nulidade ou a inexistência de atos processuais, cobertos pela coisa julgada material. Não haverá, assim, possibilidade de desconstituir a coisa julgada que tenha favorecido o réu. Mas, em se tratando de sentença inexistente (proferida por juiz constitucionalmente incompetente, em contraste com o art. 5.º, LIII, da CF), esta simplesmente não transitaria em julgado, sendo nenhuma sua eficácia. Poderia o vício ser declarado pro societate, formulando a acusação nova pretensão punitiva e, na arguição de coisa julgada oferecida pela defesa (arts. 95, V, e 110 do CP), argumentar com a não-ocorrência desta, por ser a sentença inexistente?

Não. Em se tratando de processo penal, o rigor técnico da ciência processual há de ceder perante os princípios maiores do favor rei e do favor libertatis. E o dogma do ne bis in idem deverá prevalecer, impedindo nova persecução penal a respeito de fato delituoso que foi objeto de outra ação penal.

É certo que o ne bis in idem, como impedimento para o segundo juiz de manifestar-se em outro processo, contra o mesmo réu e pelo mesmo fato, é princípio que se liga tecnicamente à coisa julgada, em sua função negativa. E que, na hipótese de sentença juridicamente inexistente, não se forma a coisa julgada. Mas, no terreno da repressão penal, no qual estão diretamente em jogo valores supremos do indivíduo – vida, liberdade, dignidade -, o ne bis in idem assume dimensão de proteção autônoma, sendo reconhecido mesmo naqueles casos em que não se poderia falar, tecnicamente, em coisa julgada.

(…) Nessa ótica, ‘perseguido’ que foi penalmente o acusado, ainda que perante juiz constitucionalmente incompetente, que o absolveu, não poderá ser novamente processado pelo mesmo fato, apesar de a sentença não ter aptidão para passar em julgado. Até porque a garantia do juiz constitucionalmente competente é erigida em favor do ‘processado’ e do ‘sentenciado’.

A categoria da inexistência da teoria geral perde força no processo penal, sempre que haja uma absolvição, a qual acaba surtindo efeitos jurídicos para impedir um novo julgamento pelo mesmo fato apontado como delituoso” (As nulidades no processo penal. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 43-44 – destaques no original).

Embora todos esses fundamentos sejam suficientes para afastar o citado constrangimento ilegal imposto ao reclamante, calha acrescer um argumento de ordem pragmática e consequencial que, no sistema de nulidades regulamentado pelo legislador ordinário, também impede a pretendida concessão de Habeas Corpus ex officio.

Com efeito, sendo certo que, diante da coisa julgada formada acerca do juízo de atipicidade, não é possível repristinar a acusação atribuída ao paciente pela prática do delito previsto no art. 350 do Código Eleitoral, eventual declaração no sentido de que a jurisdição no caso concreto deu-se por autoridade incompetente teria como consequência tão somente a anulação dos atos decisórios proferidos, nos termos do art. 567 do Código de Processo Penal, sem importar, entretanto, em alteração da jurisdição da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR, à míngua de imputação de crime eleitoral passível de ser sindicado pela Justiça Eleitoral.

 Nesse hipotético cenário, não ocorrendo qualquer alteração da atual competência jurisdicional com o eventual acolhimento da pretensão formulada nesta Reclamação, fica evidenciada a inexistência do imprescindível prejuízo na eiva suscitada, nos termos do art. 563 do Código de Processo Penal.

Por fim, embora seja certo que a pretensão do reclamante apoia-se, a princípio, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal confirmada na sessão do dia 14.3.2019, por ocasião do julgamento do AgRg no INQ 4.435/DF, no qual se assentou a competência absoluta da Justiça Eleitoral para processar e julgar os crimes eleitorais bem como os demais com este conexos, ressalto que, de modo algum, a decisão reclamada não padece de teratologia.

É que, à época, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, Corte incumbida pelo Poder Constituinte Originário para dirimir conflitos de competência identificados entre autoridades judiciárias vinculadas a tribunais diversos (art. 105, I, “d”, da CF/88), era consolidada no sentido da obrigatoriedade da separação dos processos nos casos de crimes eleitorais e federais conexos, conforme ilustram precedentes citados na decisão reclamada, dentre os quais destaco:

[…]

Por tais razões, não se vê o constrangimento ilegal apontado pelo reclamante. 3. Ante o exposto, com fundamento no art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, nego seguimento à Reclamação. Após o trânsito em julgado, arquivem-se. Publique-se. Intime-se. Brasília, 1ºde agosto de 2019.”

Nunca é demais repisar a necessidade de observância da boa-fé objetiva, evitando-se comportamentos contraditórios.

Conforme uníssono entendimento no STF e no STJ, a declaração de nulidade de um ato processual deve ser precedida de demonstração de agravo concreto suportado pela parte, sob pena de se prestigiar apenas a forma, em detrimento do conteúdo do ato. Neste caso, os argumentos defensivos não demonstraram de que maneira a continuidade da tramitação do feito perante a Justiça estadual paranaense teria inviabilizado o exercício das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, de modo que não se pode reconhecer o vício apontado, pois, a teor do art. 563, mesmo os vícios ensejadores de nulidade absoluta não dispensam a demonstração do efetivo prejuízo, em atenção ao princípio do pas de nullité sans grief. 5. A defesa conhecia o suposto vício desde o oferecimento da denúncia, mas quedou-se inerte nas diversas oportunidades que teve para se manifestar sobre o tema, suscitando a questão tão somente no bojo do recurso de apelação, o que caracteriza a chamada nulidade de algibeira, conduta incompatível com o princípio da boa-fé e da cooperação, que norteiam o comportamento das partes no processo penal. […] (Habeas Corpus nº 676.669/PR, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17.8.2021, publicado no DJ em 20.8.2021).

Noutras palavras, e como bem assentado pelo Ministro Schietti Cruz, a jurisprudência desta Corte Superior entende que não pode arguir nulidade a parte que lhe tenha dado causa ou que para ela tenha concorrido, conforme ocorrido na espécie. Inteligência do art. 565 do CPP”, pois “ é dever das partes contribuir para uma prestação jurisdicional célere e efetiva e evitar atuação contraditória a seus próprios atos (princípio da lealdade processual)” […] (Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus nº 88547/PE, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15.6.2021, publicado no DJ em 22.6.2021).

Não por outra razão que TAMBÉM O STF vem reconhecendo que “no sistema processual penal vigoram os princípios da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, não sendo lícito à parte arguir vício para o qual concorreu em sua produção, sob pena de se violar o princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza – nemo auditur propriam turpitudinem allegans”. […] (Embargos Declaratórios no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 187.927/SP, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em sessão virtual de 28.8.2020 a 4.9.2020, publicado no DJ em 5.10.2020).

 A Corte Interamericana de Direitos Humanos definiu a impunidade como “a falta em seu conjunto de investigação, persecução, captura, instrução processual e condenação dos responsáveis pelas violações dos direitos protegidos pela Convenção Americana, uma vez que o Estado tem a obrigação de combater tal situação por TODOS os meios legais disponíveis, já que A IMPUNIDADE PROPICIA A REPETIÇÃO CRÔNICA DAS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS E TOTAL DESPROTEÇÃO DAS VÍTIMAS e seus familiares” (Corte IDH, Caso Ivcher Bronstein. Sentença de 6 de fevereiro de 2001. Série C, n. 74, par. 186; Corte IDH, Caso do Tribunal Constitucional. Sentença de 31 de janeiro de 2001. Série C, n, 71, par. 123; Corte IDH, Caso Bámaca Velásquez. Sentença de 25 de novembro de 2000. Série C n. 70, par. 211).

De forma bastante contundente, a Corte IDH ainda assentou (poucos divulgam isso em terras brasileiras …) que as funções “garantistas” do juiz “NO se agota en posibilitar un debido proceso que garantice la defensa en juicio, sino que debe además asegurar en un tiempo razonable el derecho de la víctima o sus familiares a saber la verdad de lo sucedido y a que se sancione a los eventuales responsables”(Myrna Mack Chang c. Guatemala, sentença de 25.11.2003, série C, nº 101, especialmente parágrafos 204-211).

Não esqueçamos ainda as palavras de Marie-Christine Fuchs y Andrés Felipe Villegas Gutiérrez, no prefácio da obra “Corrupción y derecho peprevención, investigación y sanción – Estudio comparado” (2021), que “no es atrevido decir que la corrupción es el obstáculo más grande y difícil de superar para que en los países de la región se fortalezca y consolide efectivamente el Estado de derecho y un sistema democrático respetuoso de los derechos humanos. Esto se mostró de manera aguda con la explosión del escándalo de corrupción de Odebrecht y Lava Jato hace un poco más de cuatro años, extendido desde Brasil a la  mayor parte de América Latina”.

Por fim, nessa obra, no texto inaugural, Cláudio Nash bem pontua que “los Estados tienen el deber de adoptar medidas eficacez destinadas a investigar y sancionar los actos de corrupción de agentes estatales y no estatales”, devendo ainda “sancionar y ejecutar las sanciones y recuperar los frutos ilícitos obtenidos mediante corrupción”.

Respeitosamente, o equívoco jurídico da decisão (por empate) é enorme.

Não houve violação do devido processo legal.

Com a inusitada “anulação” por aplicação de precedente sobre regras processuais de forma “retroativa” a momentos processuais sem questionamento no momento adequado, a violação foi ao efetivo e verdadeiro justo processo, especialmente porque a competência foi expressamente determinada originariamente pelo Supremo Tribunal Federal (sem que tenha havido qualquer irresignação à época), consoante demonstrado.

Essas são as minhas considerações.

Você até pode discordar, mas tire as suas conclusões, sem acreditar “cegamente” em discursos vazios espalhados a esmo de “suposta violação do devido processo legal”.

Acesse aqui a íntegra do texto em formato pdf.

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