O EMPATE EM FAVOR DO RÉU/INVESTIGADO E AS ALTERAÇÕES DA LEI Nº 14.386/2024

No dia de hoje, 9.4.2024, foi publicada a Lei nº 14.836, que alterou disposições de processo penal para dispor sobre o resultado de julgamento em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados e sobre a concessão de habeas corpus de ofício.

Eis as novas disposições.

O art. 41-A do CPP passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 41-A. A decisão de Turma, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, será tomada pelo voto da maioria absoluta de seus membros.

Parágrafo único. Em todos os julgamentos em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao indivíduo imputado, proclamando-se de imediato esse resultado, ainda que, nas hipóteses de vaga aberta a ser preenchida, de impedimento, de suspeição ou de ausência, tenha sido o julgamento tomado sem a totalidade dos integrantes do colegiado.”

O § 1º do art. 615 do CPP está assim redigido:

§ 1º Em todos os julgamentos em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao indivíduo imputado, proclamando-se de imediato esse resultado, ainda que, nas hipóteses de vaga aberta a ser preenchida, de impedimento, de suspeição ou de ausência, tenha sido o julgamento tomado sem a totalidade dos integrantes do colegiado.

Por fim, a redação do (agora incluído) art. 647-A do CPP:

Art. 647-A. No âmbito de sua competência jurisdicional, qualquer autoridade judicial poderá expedir de ofício ordem de habeas corpus, individual ou coletivo, quando, no curso de qualquer processo judicial, verificar que, por violação ao ordenamento jurídico, alguém sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção.

Parágrafo único. A ordem de habeas corpus poderá ser concedida de ofício pelo juiz ou pelo tribunal em processo de competência originária ou recursal, ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que veiculado o pedido de cessação de coação ilegal.”

As “novidades” legislativas não são tão novas assim.

A jurisprudência há muito tempo já vinha reconhecendo que havendo empate nas votações deveria prevalecer a posição mais favorável ao réu/investigado. Em sede de habeas corpus isso era e é muito recorrente.

Tanto o parágrafo único do art. 41-A como o § 1º do art. 615 do CPP dispõem que “em todos os julgamentos em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao indivíduo imputado, proclamando-se de imediato esse resultado, ainda que, nas hipóteses de vaga aberta a ser preenchida, de impedimento, de suspeição ou de ausência, tenha sido o julgamento tomado sem a totalidade dos integrantes do colegiado.”.

Compreendemos que, malgrado essa redação, não há vedação legal para, como já feito em dias atuais, haja a convocação “prévia” de outro integrante do tribunal para compor o quórum integral da formação colegiada.

Se não houver a convocação prévia, a decisão a ser tomada deverá prevalecer conforme previsto: o empate favorecerá o réu/investigado.

O grande problema técnico está, em nosso sentir, na redação do art. 647-A do CPP.

Nenhuma dúvida quanto ao que consta no caput do art. 647-A: todo juiz que “seja competente” para tanto, ao se deparar com qualquer ilegalidade poderá corrigir o erro mediante a concessão de habeas corpus de ofício a ”alguém que se ache ameação de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção”.

Conforme analisamos nos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência na companhia do Professor Eugênio Pacelli (Juspodivm, 2024, 16ª ed, itens 537.1 a 537.8) o writ há muito é permitido para além de evitar a indevida restrição da liberdade física. Muito comuns e corriqueiras são decisões abordando a (i)legalidade de provas, de procedimentos ou de atos jurisdicionais que não atinjam diretamente a liberdade, mas sim o devido processo legal em si. Quanto a isso, nenhuma objeção, pois a jurisprudência já consagrou a possibilidade de utilização do writ nos mais variados campos de correção dos rumos do processo penal.

O grande problema está no seu parágrafo único: “A ordem de habeas corpus poderá ser concedida de ofício pelo juiz ou pelo tribunal em processo de competência originária ou recursal, ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que veiculado o pedido de cessação de coação ilegal”.

Ora, se o caput pressupõe a existência de competência do julgador (monocrático ou colegiado), o não conhecimento da ação ou de recurso em que veiculado o pedido de coação ilegal implica, necessariamente, a inexistência de competência do julgador.

Já abordamos aqui esse tema em que se invocava tal procedimento em “reclamações” manifestamente incabíveis para, na sequência, deferir ordem de habeas corpus de ofício: https://temasjuridicospdf.com/como-burlar-a-sumula-691-do-stf-mediante-o-ajuizamento-de-reclamacao-incabivel/

Alertamos naquela oportunidade “não serem poucas as decisões que encontramos na jurisprudência brasileira no sentido do ”não conhecimento“ de determinado recurso ou mesmo de um habeas corpus (pressupostos de admissibilidade), mas, na sequência, há verdadeiro “exame“ de mérito (até sob outros fundamentos), concedendo-se uma “ordem de ofício“ para corrigir uma “ilegalidade“ que se entenda presente (na verdade, presente uma espécie de reexame necessário)”.

Sempre deixaremos claro que jamais se pretende impedir a proteção das garantias fundamentais. Nada disso. É de compreender as regras de processo como elas são. E sistematicamente ordenadas.

De fato, é dever do Poder Judiciário corrigir toda forma de manifesta ilegalidade que se apresente nos casos postos a julgamento, observada uma premissa: presença de competência jurisdicional para o exame de determinada questão.

O que antes era problema de interpretação, agora virou problema legal.

E é problema grave !

Ora, “não conhecimento” significa a expressa afirmação de que aquele recurso ou até mesmo habeas corpusnão deveria ter chegado no tribunal superior, de apelação, ao STJ ou STF.

Noutras palavras, qualquer recurso ou habeas corpus “não conhecido” (pressuposto de admissibilidade) traz em si a carga de reconhecimento de que sequer é inaugurada a jurisdição de mérito do juízo (monocrático ou colegiado).  

Não se olvide que a própria jurisprudência do STJ reconhece há muito que, caso um recurso especial seja provido apenas em relação a determinado tópico, mas inadmitido quanto aos demais, “tal circunstância […]  enseja o reconhecimento do trânsito em julgado para a defesa em data retroativa a do escoamento do prazo para a interposição do recurso especial cabível” em relação aos demais pontos (Agravo Regimental no RHC nº 115.810-ES, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11.2.2020, publicado no DJ em 19.2.2020).

Portanto, diante dos pressupostos legais, assentada a “inadmissibilidade” do recurso ou do próprio habeas corpus, não é inaugurada competência do juízo ou tribunal para se manifestar em relação à matéria trazida na impetração ou qualquer outra que se queira porventura analisar “de ofício”.

Noutras palavras, tecnicamente não poderia haver (agora) autorização legal para que o tribunal “contorne” sua própria decisão de dizer que não cabe o recurso ou o writ para, na sequência, fazer uma análise “de ofício” e analisar todas demais questões sob outros ângulos que entenda eventualmente cabíveis.

O que a lei autorizou (indevidamente) viola a Constituição Federal (embora já viesse sendo violada em nossa compreensão pela jurisprudência repetida e irrefletida): se não se inaugura a competência (“não-conhecer” é dizer que não estão presentes os pressupostos de admissibilidade, inclusive da competência, que é constitucional, vamos insistir de novo), não pode ser violada a regra para “corrigir” um erro, que compete a outra instância inferior.

Quem não tem competência não pode ir adiante no mérito de recurso ou habeas corpus, mesmo que por fundamentos diversos dos trazidos na irresignação.

As novas disposições não trazem novidades em si, repetimos.

Mas esse problema apontado agora é maior, porque a lei infraconstitucional permite que o Poder Judiciário viole a própria Constituição no que se refere ao regime de competências.

Se essa ausência de reflexão lógica já existia na repetição irracional em decisões corriqueiras, dificilmente será corrigido esse erro insuperável da lei.

Mas jamais deixaremos de alertar para as incongruências que compreendermos existir.

Salvo melhor juízo sempre.

Acesse a íntegra do texto em formato pdf aqui. Download possível, basta clicar.

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