PIC – Procedimento Investigatório criminal – Indiciamento e registro criminal

Por Fernando Pascoal Lupo, Promotor de Justiça no Estado de São Paulo

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do poder investigatório do Ministério Público (STF, HC nº 91.661/PE, 2a Turma, rel. Min. Ellen Gracie, j. em 10.3.2009).
O procedimento investigatório criminal (PIC) foi disciplinado pela Resolução nº 181, de 07.08.2017, com a redação dada pela Resolução nº 183, de 24.01.2018, do Conselho Nacional do Ministério Público – assegurados os direitos e garantias do investigado –, que devem ser observados pelos Promotores de Justiça e Procuradores da República.
À semelhança do inquérito policial ou do termo circunstanciado presidido pela autoridade policial civil (estadual ou federal) ou militar – que realiza diligências de Polícia Judiciária –, cabe ao Ministério Público promover investigação criminal, como o faz quando investiga no inquérito civil na defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, ou na tutela de interesses meramente individuais, diante de sua indisponibilidade, por força da Lei da Ação Civil Pública (nº 7.347/85).
A natureza jurídica do PIC se assemelha à do inquérito policial ou do termo circunstanciado. Nestes, visa-se à apuração de uma infração penal e sua autoria, a fim de que o Ministério Público, titular da ação penal, possa ingressar em juízo, enquanto naquele, o próprio Parquet investiga e promove a ação penal.

Em que pese a natureza inquisitiva dos procedimentos, a Lei 13.245/16 e a Súmula Vinculante nº 14, do Supremo Tribunal Federal, trouxeram inovações quanto à participação da defesa que pode ter acesso amplo aos elementos de prova, requerer diligências e produzir provas.
Todavia, existe relevante diferença na condução das investigações: enquanto a autoridade policial pode proceder ao formal indiciamento, o Ministério Público simplesmente promove o indiciamento do suspeito. E isso pode ter consequências na ação penal em relação ao registro criminal.
Com efeito, indiciamento e formal indiciamento não se confundem.
Indiciar é apontar alguém como autor, coautor ou partícipe de uma infração penal, administrativa ou civil. Assim, o indiciamento pode ocorrer, por exemplo, no termo circunstanciado, no inquérito policial, no PIC – procedimento investigatório criminal (penal) –, na sindicância ou processo administrativo, no inquérito civil, na representação administrativa, no procedimento preparatório de inquérito civil, na comissão parlamentar de inquérito (civil ou administrativa), dentre outros.
Portanto, no PIC presidido pelo Promotor de Justiça ou Procurador da República, é promovido o indiciamento do suspeito ou investigado.
Já o formal indiciamento é ato privativo da autoridade policial, consistindo em ato administrativo complexo (Lei 12.830/13 – art. 2º, parágrafo 6º).
Com efeito, reunidos os elementos sobre a autoria e materialidade – nas infrações penais que deixam vestígios – a autoridade policial, em despacho fundamentado, irá formalizar o indiciamento, que compreende no ato de interrogar o suspeito, de colher as informações sobre a sua qualificação e vida pregressa, incluir o processo fotográfico, coletar material biológico para a obtenção do perfil genético, obter a identificação dactiloscópica e preencher o BIC – Boletim de Identificação Criminal, este ligado à identidade física do agente.
Como cediço, no BIC, o ser humano é individualizado, pois nele são incluídos dados sobre a qualificação completa do suspeito, como seu nome e nomes dos genitores, alcunha, profissão, naturalidade, data e local de nascimento, residência, lugar de trabalho, estado civil e grau de instrução.
Igualmente, são incluídos, além do número da cédula de identidade do indiciado, a sua assinatura e características cromáticas, tais como a cútis, a cor dos olhos e cabelos, bem como o tipo de cabelo.
No BIC ficarão registradas características físicas do agente, como o sexo e a altura, eventuais deformidades, cicatrizes, amputações, tatuagens e peculiaridades, como o fato de o suspeito ser canhoto, possuir tiques, cacoetes, sotaques estrangeiro ou regional, fala defeituosa ou mudez, ser dentuço ou desdentado, possuir particularidades no andar, lábios leporinos ou deformados.
De igual modo constará eventual característica do indivíduo que personifica o sexo oposto ou dados como ser o indiciado estrábico, bexiguento, possuir olhos orientais, manchas na pele, espinhas, sardas, pintas, sobrancelhas ligadas, uso de peruca, ser albino ou sarará.
Quanto ao crime cometido, na planilha de identificação (BIC) devem constar informações sobre as datas do fato típico, da identificação e da instauração do inquérito policial e da respectiva repartição de polícia. Outrossim, é consignado o nome da vítima, a incidência penal, dados do cúmplice, de parentes do suspeito, os tipos de armas usadas para o cometimento da infração penal, os vestígios internos, o espólio criminal e modus operandi usado nos delitos contra o patrimônio.
E como não poderia deixar de ser, no BIC vai ser inserida a identificação datiloscópica do acusado (impressões digitais), somente dispensada se ele apresentar cédula de identidade da mesma Unidade da Federação, não rasurada.
E a repercussão do formal indiciamento pela autoridade policial no processo penal pode assim ser resumida:
Nos termos do art. 23 do Código de Processo Penal: ‘ao fazer a remessa dos autos do inquérito policial ao juiz competente, a autoridade policial oficiará ao Instituto de Identificação e Estatística, ou repartição congênere, mencionando o juízo a que tiverem sido distribuídos, e os dados relativos à infração penal e à pessoa do indiciado’ (Na prática, significa que o BIC é enviado ao Instituto de Identificação) (BRASIL, 1941, art. 23).
No Estado de São Paulo, compete ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD) o armazenamento dos dados criminais dos suspeitos, réus e sentenciados, formalmente indiciados em inquéritos policiais ou processados criminalmente, em relação aos crimes de competência da Justiça Comum Estadual, da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar, enquanto cabe ao INFOSEG (repartição congênere) os registros dos crimes de competência da Justiça Federal – mas também compila dados das Unidades da Federação que lhe são enviados em decorrência de convênio;
No âmbito da Justiça Estadual, o denominado ‘DVC’ – do qual se extrai a folha de antecedentes, necessária para a expedição de certidão criminal e indispensável para a aplicação da lei penal – é criado ou abastecido pelo envio ao IIRGD do Boletim de Identificação Criminal (BIC) pela autoridade policial quando do formal indiciamento, ou por determinação judicial;
Nos delitos de pequeno potencial ofensivo de competência do Juizado Especial Criminal da Justiça Estadual, apesar da não realização do formal indiciamento, tampouco do preenchimento do BIC nos termos circunstanciados, a concessão de transação penal ou de suspensão condicional do processo são comunicadas ao IIRGD para a formação ou abastecimento dos ‘DVC’s por força das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça Paulista, TOMO I, Seção IX, artigo 393, incisos VII e VIII;
Da mesma maneira, os casos de transação penal e de suspensão condicional do processo-crime eleitoral são comunicados ao IIRGD, em razão das Normas da Corregedoria Eleitoral – TRE/SP, artigos 44.2, 49.1 e 55;
O acordo de não persecução penal criado pela Lei nº 13.964/19, que alterou o Código de Processo Penal (art. 28-A, parágrafos 2º, III e 12) é comunicado ao IIRGD e ao INFOSEG em virtude de providências administrativas iniciadas pelo Ministério Público de São Paulo;
No âmbito da Polícia Federal, os BICs elaborados pela autoridade policial são enviados ao NID (Núcleo de Identificação) ou ao GID (Grupo de Identificação nas Delegacias do Interior) que os encaminham para registro no INFOSEG.
Nos PICs o Ministério Público promove o indiciamento do suspeito, como dito, porém, sem que os dados sobre o crime, como a data do cometimento da infração penal, a qualificação do suspeito correspondente ao número do procedimento e a imputação jurídica sejam enviados ao Instituto de Identificação e Estatística, ou repartição congênere.
Caso o procedimento seja arquivado, as informações sobre aquela investigação ficarão restritas aos registros internos da Instituição, desde que os nomes dos suspeitos sejam devidamente inseridos no sistema.
Apenas na hipótese de oferecimento e consequente recebimento da denúncia originária de PIC os dados do indiciado, que pode virar réu, são comunicados ao Instituto de Identificação e Estatísticas ou repartição congênere por conta das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça Paulista.
Frise-se que o prévio preenchimento do BIC e o envio ao banco de dados irá possibilitar o confronto das informações com os registros civis ou criminais do suspeito, individualizando a pessoa do investigado e evitando a ocorrência de homonímia.
Dessa forma, cabe ao Ministério Público, nos casos de indiciamento em PIC, requisitar à autoridade policial o preenchimento do BIC para envio ao Instituto de Identificação e Estatística ou repartição congênere, durante a instrução do procedimento ou requerendo ao juízo na cota introdutória à denúncia.
O mesmo deve ser feito nos casos de investigação eleitoral, prevista na Resolução nº 1.225/2020 – PGJ, de 03.09.20, que regula o Procedimento Investigatório Criminal (PIC ELEITORAL), considerado de natureza administrativa, facultativa e inquisitorial, instaurado no âmbito do Ministério Público Eleitoral, que terá como finalidade apurar a ocorrência de infrações penais eleitorais, servindo de preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal.
A falta do preenchimento do BIC do suspeito – máxime quando ele não apresente documento de identificação – e a ausência de previsão legal sobre a necessidade de comunicação ao banco de dados comumente leva à deficiência no registro criminal, prejudicando a aplicação de sanções ou viabilizando a concessão de benefícios indevidos.
Por isso, certamente, as Normas da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo determinam a comunicação para registro no Instituto de Identificação e Estatística, nas seguintes hipóteses, não necessariamente associadas ao formal indiciamento com o preenchimento do BIC: recebimento ou rejeição da denúncia ou da queixa; aditamento da inicial; inclusão, nas denúncias, de pessoas não indiciadas nos inquéritos policiais e nos autos de prisão em flagrante delito; a não inclusão, nas denúncias, de pessoas indiciadas nos inquéritos policiais e nos autos de prisão em flagrante delito; o desfecho do inquérito ou da ação penal (arquivamento, absolvição sumária, extinção da punibilidade); pronúncia; impronúncia; condenação; a suspensão do processo do artigo 366 do Código de Processo Penal.
Igualmente, são comunicadas a homologação de transação penal no Juizado Especial Criminal; a suspensão do processo, a revogação ou extinção da punibilidade, previstas no art. 89 da Lei nº 9.099/95; o acordo de não persecução penal; as medidas cautelares; a prisão temporária; os incidentes da execução penal, como as condições do regime aberto ou semiaberto; da prisão domiciliar; do livramento condicional; da suspensão condicional da pena; bem como as medidas de segurança, as medidas restritivas de direitos, as medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha.
Em relação a estas, no Estado de São Paulo, as medidas protetivas são comunicadas ao Instituto de Identificação e Estatística devido ao Comunicado CGJ nº 882/2015 e à Lei Estadual nº 15.425/14.
Nos PICs, os dados dos suspeitos investigados ficam inseridos em sistema eletrônico próprio do Ministério Público, quando poderiam estar disponíveis para consulta no Instituto de Identificação e Estatística ou repartição congênere.
Na verdade, existem Institutos de Identificação em cada Unidade da Federação, com seus registros próprios, a par da repartição congênere, prevista na lei.
A mencionada repartição congênere se trata do INFOSEG, gerenciado pelo Ministério da Justiça. Os núcleos de identificação dos Estados enviam à referida repartição as informações que inicialmente são recepcionadas pelo SINIC (Sistema Nacional de Informações Criminais) que, via sistema, faz com que elas migrem ao INFOSEG, que integra nacionalmente as informações relativas à segurança pública, à identificação civil e criminal, ao controle e fiscalização, à inteligência, à justiça e à defesa civil.
Portanto, o INFOSEG, que pertence ao SINESP SEGURANÇA, constitui uma rede que integra os bancos de dados das secretarias de segurança pública de todos os Estados e Distrito Federal, incluindo termos circunstanciados e mandados de prisão, o sistema de controle de processos do Superior Tribunal de Justiça, o sistema de CPF e CNPJ da Receita Federal, o RENACH (Registro Nacional de Carteira de Habilitação), o RENAVAN (Registro Nacional de Veículos Automotores), o DENATRAN (Departamento Nacional de Trânsito), o SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas) do Exército, o SINARM (Sistema Nacional de Armas) e o SINIC (Sistema Nacional de Informações Criminais), estes da Polícia Federal.
A falta de previsão em lei sobre a necessidade de inserção de tais dados criminais obviamente acarreta a deficiência dos registros públicos penais que levam à impunidade, na medida em que, por exemplo, benefícios são concedidos comumente pela simples falta de informação e devido ao abastecimento dos órgãos competentes, assim como sanções deixam de ser impostas, como mencionado.
Na condução do PIC pode e deve o Ministério Público, que tem o poder de requisição, promover providências que entender necessárias, consoante o art. 13, II do Código de Processo Penal, requisitando à autoridade policial o preenchimento do BIC e posterior envio ao Instituto de Identificação e Estatística ou repartição congênere.
À medida que visa ao devido abastecimento do banco de dados, tem o condão de ‘evitar eventual constrangimento de terceiros por homonímia, assumindo premente função de resguardo da liberdade individual… principalmente de terceiros de boa-fé que, apenas por terem tido a infelicidade de serem seus nomes e dados de qualificação indevidamente utilizados pelos reais autores dos crimes, podem ser incriminados indevidamente (SÃO PAULO, 2019, p. 1).
Com efeito, prossegue o eminente Desembargador Grassi Neto no voto supramencionado: “Destaque-se que mencionado entendimento não conflita de modo algum com a legislação prevendo consistir o indiciamento em ato privativo do Delegado de Polícia (Lei nº 12.830/13), uma vez que ‘ato privativo’ não se confunde com “ato de iniciativa privativa” (SÃO PAULO, 2019, p. 1).
Além do mais, tal providência não viola a convicção da autoridade policial, pois como se frisou, o preenchimento do BIC está relacionado com a identidade física do agente, consistindo em um dos atos do formal indiciamento, não se confundindo com este.
É imperativo que o PIC, como poderoso instrumento de investigação a cargo do Ministério Público, utilizado pelas forças-tarefas das Promotorias de Justiça e Procuradorias da República criminais, bem como pelos grupos especializados no combate ao crime organizado, à lavagem de capitais, etc., seja devidamente instruído, com a verdadeira qualificação do suspeito na garantia do próprio direito de defesa.
Logo, se a lei não prevê essa situação – como em tantas outras citadas – poderia o Conselho Nacional do Ministério Público, que detém poder normativo primário e para assegurar a existência de registros criminais fidedignos, analisar a possibilidade de alterar Resolução nº 181/17, determinando aos Promotores de Justiça e Procuradores da República que na condução do PIC requisitem à autoridade policial o preenchimento do BIC, assim que forem reunidos elementos sobre autoria e materialidade nas investigações, precedido de despacho fundamentado, para que estes sejam encaminhados ao Instituto de Identificação e Estatística ou repartição congênere, fazendo com que, posteriormente, o PIC fosse vinculado à ação penal, eternizando os dados criminais para fins de consulta.


Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União. Brasília, 3 out. 1941.
BRASIL. Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013. Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Diário Oficial da União. Brasília, 20 jun. 2013.
BRASIL. Lei nº 13.245, de 12 de janeiro de 2016. Altera o art. 7º da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil). Diário Oficial da União. Brasília, 12 jan. 2016.
BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 24 jul. 1985.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 14. In: Brasil. Súmulas vinculantes: Aplicação e interpretação pelo STF. Brasília: Secretaria de documentação, 2016, p. 79-84.
SÃO PAULO. Assembleia Legislativa. Lei Estadual nº 15.425, de 16/05/2014. Institui o procedimento de inserção, nos sistemas de informação da Secretaria da Segurança Pública, das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Federal nº 11.340, de 2006, expedidas pelo Poder Judiciário do Estado. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/norma/172906. Acesso em: 02 out. 2020.
SÃO PAULO. Ministério Público. Procuradoria-Geral de Justiça. Resolução nº 1.225/2020-PGJ, de 3 de setembro de 2020. Disciplina a Notícia de fato (NF), Procedimento preparatório eleitoral (PPE), Procedimento investigatório criminal (PIC) e o Procedimento administrativo (PA), no âmbito do Ministério Público do Estado de São Paulo e dá outras providências. Disponível em: http://biblioteca.mpsp.mp.br/phl_img/resolucoes/1225.pdf. Acesso em: 02 out. 2010.
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Corregedoria. Comunicado CGJ nº 882/2015. 17 jul. 2015. Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/Corregedoria/Comunicados/Comunicado?codigoComunicado=6716. Acesso em: 02 out. 2020.
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. TJ-SP – HC: 22448977120188260000 SP 2244897-71.2018.8.26.000. Relator: Grassi Neto. Data de Julgamento: 21/01/2019. 8ª Câmara de Direito Criminal. Data de Publicação: 05/02/2019.

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