QUANDO (mais uma vez) a EMENTA DIZ O QUE NÃO FOI DECIDIDO !

Não é de hoje que alertamos que muitos “julgados” (que diferem de “precedentes”, embora muitos utilizem de forma equivocada como sinônimos) são formados por publicação de “ementas” e que, na realidade, não traduzem o que foi efetivamente decidido. Isso acaba gerando o que denominamos de “hermentismo” (palavra inexistente no vernáculo, que fique claro): a “hermenêutica das ementas”.

Aí se não houver o devido cuidado o procedimento da “criação” dos demais julgados subsequentes se realiza na forma mais expedida possível: “control C + control V”.

Depois explicar o que nunca foi decidido, mas constante da ementa … já era !

Isso ocorreu pelo STJ ao dizer que os crimes do artigo 168-A, § 1º, I, do CP seria “material” porque o STF “teria” decidido no Inquérito nº 2.537 que seria necessário exaurimento da esfera administrativa para a configuração do crime. Copiaram a ementa (mal redigida pelo relator, Ministro Maurco Aurélio, mas que refleia seu posicionamento “pleonasticamente” vencido), copiaram, colaram, repetiram … formaram “entendimento consolidado” … mas esqueceram de ler os embargos de declaração posteriores, em que o STF deixou claro a posição contrária ao que fixado. Poucos leram, já era …

Vamos tentar evitar outro grave equívoco a partir de uma ementa mal redigida ?

A questão é: o juiz é obrigado a absolver quando o MP pede a absolvição ?

O tema é controvertido sobretudo doutrinariamente, já que no STF e no STJ o tema sempre foi bastante claro: não há vinculação!

Vamos reproduzir o que dissemos com Pacelli nos nossos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (2022, 14ª edição):

A escolha nacional foi no sentido da adoção do modelo da obrigatoriedade da ação penal, com o que ficou afastado o princípio do dispositivo, segundo o qual podem as partes livremente dispor do objeto da relação de direito material. E essa opção, de lon­ga data e feita em ambiente de pouquíssimas liberdades públicas, não contraria nenhu­ma determinação constitucional, ao ponto de reputar inválida a norma do art. 385, CPP.

Pode-se não aderir a ela, optando-se pelo modelo da discricionariedade, com am­pla concessão de poderes e faculdades ao Ministério Público, no sentido de deixar em suas mãos a política de persecução penal. Mas, repita-se, não foi essa a escolha do atu­al CPP e nem do constituinte de 1988, que sequer teve coragem de esclarecer em que consistiria o tal controle externo da atividade policial, como consta do art. 129, VII, da Constituição da República.

Importante destacar que há ementa de julgado do STF assentado que se teria “como afastada a pretensão acusatória quando há manifestação do titular da ação penal pública pela absolvição do acusado, não podendo o magistrado condenar de ofício” (Ação Penal n, 960, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 13.6.2017, publicado no DJ em 28.6.2017). Entretanto, fundamental advertir que esse excerto da ementa não coincide com nenhum fundamento do voto do relator ou mesmo dos demais julgadores. É dizer: em nenhuma passagem da decisão proferida, há fundamentos no sentido de que have­ria essa vinculação ao pedido de absolvição. Tanto é assim que, em outro julgado, se en­contra posicionamento no sentido de que “a indisponibilidade da ação penal pública não proíbe que o Ministério Público possa opinar pela absolvição do réu, mas exclui a vincula­ção do juízo à manifestação do Parquet, tendo em vista a vedação inscrita nos artigos 42 e

576 do Código de Processo Penal, que impedem o Ministério Público de desistir da ação pe­nal ou do recurso que haja interposto” (Ação Penal 921-RS, STF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Luiz Fux, julgado monocraticamente em 20.6.2017, publicado no DJ em 30.6.2017).

Então, embora produzida em terreno impregnado pelo obscurantismo – relembre­-se, no ponto, que havia previsão de defesa na Inquisição espanhola –, nada há que im­peça a aplicação do citado art. 385, no âmbito de um modelo processual orientado pela objetividade da atuação do Ministério Público.

Observe-se que a citada legislação nos oferece também inegável traço de moderni­dade, especificamente no ponto em que classifica a atuação do Ministério Público na fase final (de alegações finais) do processo, como verdadeira atividade de custos legis. Confi­ra-se: “[…] ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição […]”. Para nós, o parquet, do princípio ao fim, subordina-se apenas à sua consciência, tal como ocorre com a magistratura, atuando, sempre, como custos legis, de modo a bem zelar pela cor­reta aplicação da lei. É dizer: ele é parte apenas do ponto de vista formal.

Os julgados abaixo (que refletem o que efetivamente decidido) são reiterados:

[…] 2. O art. 385 do CPP foi recepcionado pela Constituição da República de 1988. Prece­dentes do STJ e do STF. 3. Descabe falar, no presente processo, em revogação tácita do art. 385 do CPP pela Lei 13.964/2019 (que acrescentou o art. 3º-A ao Código), porque a sentença con­denatória foi proferida em 24/5/2018, antes da entrada em vigor da novel legislação. […] (Agra­vo Regimental no Recurso Especial nº 1.943.370/RS, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 9.11.2021, publicado no DJ em 16.11.2021)

[…] Na esteira da orientação jurisprudencial desta Suprema Corte, “A condenação em ação penal pública pelo juízo desvincula-se do pedido de absolvição efetuado em alegações finais pelo Ministério Público, assim como o pedido de arquivamento do inquérito policial e impronun­cia. Precedentes: ARE 924.290 ED, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 11/03/2016, ARE 700.012 ED, Segunda Turma, Rel. Min. Carmen Lucia, DJe 10/10/2012” (HC 125.645 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 18.4.2017). […] (Agravo Regimental no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 197.907/PI, STF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em ses­são virtual de 7.5.2021 a 14.5.2021, publicado no DJ em 26.5.2021)

[…] Nos termos do art. 385 do Código de Processo Penal, nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição. O artigo 385 do Código de Processo Penal foi recepcionado pela Constituição Fede­ral […] (Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 605.748/PI, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 24.11.2020, publicado no DJ em 27.11.2020).

Conosco, lições de Jorge FIGUEIREDO DIAS, excepcional penalista de além-mar (Direito processual penal. 1. ed. Reimpressão, Coimbra, 2004, p. 195): “Da mesma forma que, acabamos de ver, não vale em processo penal o princípio da discussão (processo como duelo de partes), em qualquer de suas manifestações mais importantes, também ali não há lugar para o princípio dispositivo. Isto é, como já se sugeriu, consequência da fundamental indisponibilidade do objecto processual penal e conduz à impossibilida­de de desistência da acusação pública, de acordos eficazes entre a acusação e a defesa e de limitações postas ao tribunal na apreciação jurídica do caso submetido a julgamen­to. […] Pode o MP ter pedido a absolvição do arguido e o tribunal condená-lo – como pode a defesa, considerando provado o crime, pedir apenas a condenação em uma pena leve e o tribunal absolver o arguido.”

Você pode pensar em sentido contrário ?

Claro que sim, há argumentos para tanto.

MAS CUIDADO !

A 5ª Turma do STJ NÃO (repetimos: NÃO !) mudou seu entendimento a respeito do assunto !

Mas você pode contra-argumentar: está claro como sol o que decidido na ementa abaixo transcrita, noticiada no dia de hoje, 4.10.2022:

[…] PENAL. PROCESSUAL PENAL. INTIMAÇÃO DO ADVOGADO CONSTITUÍDO. REGULARIDADE DO ATO PROCESSUAL. ART. 337-A, III, DO CÓDIGO PENAL. DELITO DE NATUREZA MATERIAL. MERA INADIMPLÊNCIA TRIBUTÁRIA. NÃO CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE SONEGAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA. NÃO CARACTERIZAÇÃO DO CRIME DO ART. 337-A DO CP. MONOPÓLIO DA AÇÃO PENAL PÚBLICA. TITULARIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDO MINISTERIAL DE ABSOLVIÇÃO. NECESSÁRIO ACOLHIMENTO. ART. 3º-A do CPP. OFENSA AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

1. Reputa-se válida a publicação dirigida a um dos advogados constituídos, quando ausente requerimento de intimação exclusiva.

2. O delito de sonegação de contribuições previdenciárias, previsto no art. 337-A do CP é de natureza material, consiste na efetiva supressão ou omissão de valor de contribuição social previdenciária, não sendo criminalizada a mera inadimplência tributária.

3. O descumprimento de obrigação tributária acessória, prevista no inciso III do art. 337-A do CP, por omissão ao dever de prestar informações, sem demonstração da efetiva supressão ou omissão do tributo, não configura o crime previsto no caput do art. 337-A do CP.

4. Nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal, incumbe ao Ministério Público o monopólio da titularidade da ação penal pública.

5. Tendo o Ministério Público, titular da ação penal pública, pedido a absolvição do réu, não cabe ao juízo a quo julgar procedente a acusação, sob pena de violação do princípio acusatório, previsto no art. 3º-A do CPP, que impõe estrita separação entre as funções de acusar e julgar.

6. Agravo regimental desprovido. Ordem concedida de ofício para anular o processo após as alegações finais apresentadas pelas partes. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.940-.726-RO, STJ, 5ª Turma, por maioria, Relator Ministro convocado Jesuíno Rissato, redator para o Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 6.9.2022, publicado no DJ em 4.10.2022)

Será que foi isso mesmo ?

Na verdade, não foi !

Cuidado !

Primeiro um alerta, ao que o guardião da lei não atentou: o art. 3º-A do CPP, invocado como razão de decidir, está suspenso por decisão do STF. A decisão foi tomada nas ADIs nºs 6.299, 6.300, 6.305 e 6.298, nas quais o Ministro Luiz Fux deferiu medida cautelar, em maior extensão, a fim de suspender a aplicação do instituto do juiz de garantias até ulterior deliberação pelo Plenário do STF, estando assim sintetizados seus fundamentos nessa parte: “ […] 3. Fixadas essas premissas, impende esclarecer que foram propostas as ADI 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, cujo objeto de impugnação são os seguintes dispositivos: (a) Artigos 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal, na redação concedida pela Lei n. 13.964/2019 (Juiz das garantias e normas correlatas): […] (a7) Medida cautelar concedida, para suspensão da eficácia dos artigos 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal (Inconstitucionalidades formal e material); […] 4. Me­didas cautelares concedidas para suspender sine die a eficácia: (a) Da implantação do juiz das garantias e seus consectários (Artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3ª-E, 3º- F, do Código de Processo Penal)”.

Mas não há dúvidas de que o modelo adotado no Brasil é acusatório (ou sistema, como preferimos, nas palavras do Professor Mauro Fonseca Andrade, autor da melhor obra sobre o tema, Sistemas Processuais Penais e seus princípios reitores, Juruá).

Se há ou não incompatibilidade da regra do art. 385 do CPP é outra coisa.

O fato relevante que vamos insistir aqui é: no julgado retromencionado, o STJ NÃO deliberou no sentido do que consta na ementa.

Aliás, compreendemos que jamais o STJ poderia ter adentrado nessa discussão, pois o tema central estava no reconhecimento da intempestividade recursal. Como já destacamos aqui, descabe deferir ordem de habeas corpus de ofício se não inaugurada a jurisdição própria do Tribunal (https://temasjuridicospdf.com/nao-cabe-habeas-corpus-de-oficio-quando-nao-conhecida-reclamacao/, aplicável o mesmo raciocínio).

Veja-se que, no caso concreto, o relator denegava a pretensão, restando vencido.

No voto-vista, o Ministro João Otávio de Noronha destacou:

Não desconheço a existência de inúmeros julgados do Superior Tribunal de Justiça que reconhecem a possibilidade de prolação de sentença condenatória independentemente de a acusação postular, em alegações finais, a absolvição do réu.

Não comungo, data venia, desse entendimento por considerar que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve clara opção pelo sistema acusatório. De fato, a Carta Magna reserva ao Ministério Público o monopólio da titularidade da ação penal pública (art. 129, I). E a acusação não é atividade que se encerra com o oferecimento da denúncia, já que a atividade persecutória persiste até o término da ação penal.

Assim, considero que, quando o Ministério Público requer a absolvição do réu, ele está, de forma indireta, retirando a acusação, sem a qual o juiz não pode promover decreto condenatório, sob pena de acusar e julgar simultaneamente.

Em verdade, a adoção ou aprimoramento de um modelo de persecução penal é atividade paulatina, que deriva de uma construção diária do Poder Judiciário na interpretação dos dispositivos legais pertinentes ao tema. E, desde a promulgação da Constituição de 1988, essa atividade vem sendo desenvolvida na definição dos limites da recepção dos diversos artigos do Código de Processo Penal de 1941.

O importante é pontuar que o caminho que vem sendo seguido, a passos lentos, mas firmes, é no sentido de se extirpar o rançoso viés inquisitório que permanece em nossos diplomas legais. Reformas tópicas vêm sendo herculeamente implementadas, contribuindo para a formação de uma colcha de retalhos descombinados, cabendo ao Judiciário, de tempos em tempos, ajustá-la para preservar a coerência do sistema.

Fosse esse o único argumento, apenas ressalvaria meu posicionamento com relação à impossibilidade de condenação diante de pedido de absolvição da acusação. Ocorre que não há como chancelar uma condenação penal sem fundamentação adequada. Em verdade, para se contrapor a um pedido de absolvição da acusação, a sentença deve ser robustamente fundamentada, com a indicação de provas firmes e coerentes que apontem para direção diversa. Esse é o entendimento da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, como se pode aferir da seguinte ementa de julgamento (destaquei):

AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. CRIME DO DECRETO-LEI Nº 201/67. EMPREGO IRREGULAR DE VERBAS PÚBLICAS. AUSÊNCIA DE PROVAS DA OCORRÊNCIA DO FATO. ABSOLVIÇÃO REQUERIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.

1. As provas produzidas sob o contraditório demonstram que servidor público ocupante de cargo em comissão, nomeado pelo réu, dividiu seu salário com terceiro, que não integrava a Administração Pública Municipal.

2. Contudo, a própria Procuradoria-Geral da República sustenta que a prova produzida não foi suficiente para demonstrar que a ordem de divisão dos valores tenha partido efetivamente do réu e, por essa razão, requer a sua absolvição.

3. Nesse tipo de delito costuma haver um pacto de silêncio entre os envolvidos, todos beneficiados pela ilicitude. Por essa razão, no mais das vezes, o crime será provado por meios indiretos.

4. O art. 385 do Código de Processo Penal permite ao juiz proferir sentença condenatória, embora o Ministério Público tenha requerido a absolvição. Tal norma, ainda que considerada constitucional, impõe ao julgador que decidir pela condenação um ônus de fundamentação elevado, para justificar a excepcionalidade de decidir contra o titular da ação penal. No caso concreto, contudo, as parcas provas colhidas pela Procuradoria-Geral da República são insuficientes para justificar a aplicação da norma excepcional.

5. Absolvição por não haver prova da existência do fato (CPP, art. 386, II). (AP n. 976, relator Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 7/4/2020.)

Pois bem. A sentença, no que diz respeito à demonstração de autoria pelo réu […] é manifestamente nula. O decreto condenatório não cumpre o requisito de possuir fundamentação que possua aptidão para afastar a conclusão absolutória externada pelo titular da ação penal.

A condenação com amparo exclusivo em frágil depoimento de uma testemunha de defesa (que leva a conclusões contraditórias entre a acusação e o julgador) e que se baseia na presunção da prática de uma conduta meio, sem indicação da presença do elemento subjetivo do tipo, não pode prosperar, especialmente frente ao pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público Federal.

Atente-se que o próprio redator do acórdão fez ressalva de exceção à sua premissa ! No voto, mas não na ementa !

Seguiu-se novo voto vista, do Ministro Joel Paciornick, que, acompanhando para reconhecer a ausência de elementos para condenação, expressamente ressalvou seu posicionamento de que se mostra cabível a prolação de sentença condenatória, mesmo que o Ministério Público tenha requerido a absolvição, nos termos do art. 385 do Código de Processo Penal.

Noutras palavras, apenas o redator do acórdão – que invocou norma processual suspensa – adotou essa posição.

Você pode concordar com a “tese”, não discutimos isso.

Mas não nos parece adequado dizer que a 5ª Turma do STJ teria modificado entendimento a respeito do tema a partir da publicação desse julgado: apenas 1 julgador (UM) firmou sua posição nesse sentido.

Fica o alerta.

E sempre salvo melhor juízo.

Faça o download do inteiro teor do texto aqui:

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