Recurso ou Habeas Corpus não conhecidos, mas ordem “concedida de ofício“: em busca de maior tecnicidade e racionalidade

Douglas Fischer

Não são poucas as decisões que encontramos na jurisprudência brasileira no sentido do não conhecimento de determinado recurso ou mesmo de um habeas corpus (pressupostos de admissibilidade), mas, na sequência, há verdadeiro “exame“ de mérito (até sob outros fundamentos), concedendo-se uma “ordem de ofício“ para corrigir uma “ilegalidade“ que se entenda presente (na verdade, presente uma espécie de reexame necessário).

Vamos deixar claro aqui desde o início, em face do título proposto: não se trata de querer “diminuir“ garantias fundamentais em detrimento de eventuais formalidades não preenchidas.

Reiteradamente defendemos que o habeas corpus deve ser utilizado como forma de proteger os direitos fundamentais que não tenham sido respeitados em determinado caso. Não há maiores formalidades para o writ, tanto que qualquer pessoa pode dele se utilizar, desde que preenchidos os requisitos legais:

Art. 5º, LXVIII, CF:  conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

Art. 647 do CPP. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.

Não é de hoje que, fática, teórica e juridicamente (por interpretação constitucional do STF e também em face de expressa disposição normativa), o habeas corpus perdeu sua função original (PONTES DE MIRANDA, História e prática do habeas corpus. 4. ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 1962. p. 105), servindo para as mais diversas questões, não só para também atacar ilegalidades ou abusos de poder, como também para as hipóteses em que a arguição esteja relacionada à observância do devido processo legal (lato sensu).

Correto que assim seja !

Conforme destacamos nos Comentários ao CPP e sua Jurisprudência (12ª ed., 2020), “embora topicamente inserido no Código de Processo Penal em capítulo dentro do título dos recursos (capítulo X do título II), de recurso evidentemente não se trata. Não nos restam dúvidas – e parece não pairar maiores questionamentos doutrinários e jurisprudenciais quanto a este aspecto –, o habeas corpus se constitui em verdadeira ação autônoma de impugnação para defesa (lato sensu) da liberdade. Relevante destacar que, por alterações legislativas (vide anotações ao art. 387, § 1º), eventual decreto de prisão cautelar anterior impõe ao juiz que, em caso de proferir sentença, deverá decidir “fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta”. Esta circunstância é relevante, na medida em que, em nossa compreensão, se houver eventual habeas corpus não apreciado de forma definitiva pelos tribunais superiores até a prolação da sentença (em que se tenha reafirmado a necessidade da prisão cautelar) ele perderá seu efeito, pois, tecnicamente, haverá um novo título que determina a prisão. Contra este novo decreto nenhum óbice para a impetração de novo writ, evitando-se, porém, decisões per saltum”. Acrescemos ainda que o controle antes mencionado deve ser feito também nos moldes das novas disposições do art. 316, parágrafo único, CPP (a propósito, vide maiores anotações em https://temasjuridicospdf.com/art-316-paragrafo-unico-cpp-e-sua-devida-compreensao/).

As “limitações” do writ “são mínimas”. A amplitude tem sido cada vez maior.  Embora com alguns parcos dissensos, pode ser utilizado até mesmo após trânsito em julgado de decisão que eventualmente vulnere ou restrinja direitos fundamentais

Ao contrário de boa parte da doutrina e da jurisprudência, compreendemos que o habeas corpus não só pode como deve ser utilizado naquelas situações extraordinárias em substituição aos próprios recursos especial e extraordinário, bem assim até mesmo em casos de revisões criminais.

Tudo para deixar bem assentado que, na linha do que anotado, partimos da premissa de que é dever do Poder Judiciário corrigir toda forma de manifesta ilegalidade que se apresente nos casos postos a julgamento, observada uma premissa: presença de competência jurisdicional para o exame de determinada questão.

Não esqueçamos também de importante entendimento do Superior Tribunal de Justiça por intermédio da 3ª Seção:

HABEAS CORPUS. SENTENÇA CONDENATÓRIA. NULIDADES. HABEAS CORPUS IMPETRADO NA ORIGEM DE FORMA CONTEMPORÂNEA À APELAÇÃO, AINDA PENDENTE DE JULGAMENTO. MESMO OBJETO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. COGNIÇÃO MAIS AMPLA E PROFUNDA DA APELAÇÃO. RACIONALIDADE DO SISTEMA RECURSAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.

1. A existência de um complexo sistema recursal no processo penal brasileiro permite à parte prejudicada por decisão judicial submeter ao órgão colegiado competente a revisão do ato jurisdicional, na forma e no prazo previsto em lei. Eventual manejo de habeas corpus, ação constitucional voltada à proteção da liberdade humana, constitui estratégia defensiva válida, sopesadas as vantagens e também os ônus de tal opção.

2. A tutela constitucional e legal da liberdade humana justifica algum temperamento aos rigores formais inerentes aos recursos em geral, mas não dispensa a racionalidade no uso dos instrumentos postos à disposição do acusado ao longo da persecução penal, dada a necessidade de também preservar a funcionalidade do sistema de justiça criminal, cujo poder de julgar de maneira organizada, acurada e correta, permeado pelas limitações materiais e humanas dos órgãos de jurisdição, se vê comprometido – em prejuízo da sociedade e dos jurisdicionados em geral – com o concomitante emprego de dois meios de impugnação com igual pretensão.

3. Sob essa perspectiva, a interposição do recurso cabível contra o ato impugnado e a contemporânea impetração de habeas corpus para igual pretensão somente permitirá o exame do writ se for este destinado à tutela direta da liberdade de locomoção ou se traduzir pedido diverso em relação ao que é objeto do recurso próprio e reflita mediatamente na liberdade do paciente. Nas demais hipóteses, o habeas corpus não deve ser admitido e o exame das questões idênticas deve ser reservado ao recurso previsto para a hipótese, ainda que a matéria discutida resvale, por via transversa, na liberdade individual.

4. A solução deriva da percepção de que o recurso de apelação detém efeito devolutivo amplo e graus de cognição – horizontal e vertical – mais amplo e aprofundado, de modo a permitir que o tribunal a quem se dirige a impugnação examinar, mais acuradamente, todos os aspectos relevantes que subjazem à ação penal. Assim, em princípio, a apelação é a via processual mais adequada para a impugnação de sentença condenatória recorrível, pois é esse o recurso que devolve ao tribunal o conhecimento amplo de toda a matéria versada nos autos, permitindo a reapreciação de fatos e de provas, com todas as suas nuanças, sem a limitação cognitiva da via mandamental. Igual raciocínio, mutatis mutandis, há de valer para a interposição de habeas corpus juntamente com o manejo de agravo em execução, recurso em sentido estrito, recurso especial e revisão criminal.

5. Quando o recurso de apelação, por qualquer motivo, não for conhecido, a utilização de habeas corpus, de caráter subsidiário, somente será possível depois de proferido o juízo negativo de admissibilidade da apelação pelo Tribunal ad quem, porquanto é indevida a subversão do sistema recursal e a avaliação, enquanto não exaurida a prestação jurisdicional pela instância de origem, de tese defensiva na via estreita do habeas corpus.

6. Na espécie, houve, por esta Corte Superior de Justiça, anterior concessão de habeas corpus em favor do paciente, para o fim de substituir a custódia preventiva por medidas cautelares alternativas à prisão, de sorte que remanesce a discussão – a desenvolver-se perante o órgão colegiado da instância de origem – somente em relação à pretendida desclassificação da conduta imputada ao acusado, tema que coincide com o pedido formulado no writ.

7. Embora fosse, em tese, possível a análise, em habeas corpus, das matérias aventadas no writ originário e aqui reiteradas – almejada desclassificação da conduta imputada ao paciente para o crime descrito no art. 93 da Lei n. 8.666/1993 (falsidade no curso de procedimento licitatório), com a consequente extinção da sua punibilidade –, mostram-se corretas as ponderações feitas pela Corte de origem, de que a apreciação dessas questões implica considerações que, em razão da sua amplitude, devem ser examinadas em apelação (já interposta).

8. Uma vez que a pretendida desclassificação da conduta imputada ao réu ainda não foi analisada pelo Tribunal de origem, fica impossibilitada a apreciação dessa matéria diretamente por esta Corte Superior de Justiça, sob pena de, se o fizer, suprimir a instância ordinária. 9. Não há, no ato impugnado neste writ, manifesta ilegalidade que justifique a concessão, ex officio, da ordem de habeas corpus, sobretudo porque, à primeira vista, o Juiz sentenciante teria analisado todas as questões processuais e materiais necessárias para a solução da lide. 10. Habeas corpus não conhecido. (Habeas Corpus nº 482.549-SP, 3ª Seção, julgado em 11.3.2020, publicado no DJ em 3.4.2020)

Veja-se: o próprio STJ vem limitando o uso do habeas corpus, pena de desnaturar o sistema recursal próprio. Não são nossas ideias, mas recente posicionamento do Tribunal da Cidadania.

Aliás, boa parte dos julgados em matéria penal no âmbito do STJ hoje são debatidos majoritariamente em habeas corpus ou recurso ordinário em habeas corpus, exatamente por esse “alargamento” de cabimento dos writs, quase em substituição ao recurso especial.

O motivo da questão trazida a debate aqui no presente texto (mesmo que sucinto) são alguns precedentes jurisprudenciais que “não conhecem” da impetração originária ou mesmo de um recurso próprio, porém “concedem ordem de ofício”.

Tenhamos ainda como premissas os seguintes entendimentos do STJ e do STF:

[…] 3. O entendimento desta Corte Superior é no sentido de que, para
fins de prescrição, a data do trânsito em julgado retroage à data do
escoamento do prazo para a interposição do recurso admissível. Em
outras palavras, a decisão que nega seguimento a recurso possui
natureza declaratória, com efeito ex tunc, de forma que o trânsito
em julgado se opera quando do término do prazo para a interposição
do recurso cabível que não fora admitido
. […]  (RHC nº 129.021-RO, STJ, 5ª Turma, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, julgado em 8.9.2020, publicado no DJ em 14.9.2020)

[…] A  Terceira Seção, ainda sob a égide do Código de Processo Civil
de  1973,  no  julgamento  dos  EAREsp  n.  386.266/SP, consolidou o
entendimento  de  que,  quando  esta  Corte  Superior, ao analisar o
agravo em recurso especial, confirma a decisão do Tribunal de origem
que  inadmitiu  o recurso especial com base no art. 544, § 4º, I, do
CPC,  a  formação  da coisa julgada retroage à data de escoamento do
prazo  para  a  interposição  do  último recurso cabível
. […]  (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.504.204-CE, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 22.10.2019, publicado no DJ em 30.10.2019)

 […] III Os recursos excepcionais (extraordinário e especial), quando declarados inadmissíveis, não obstam a formação da coisa julgada  inclusive penal –, retroagindo a data do trânsito em julgado, em virtude do juízo negativo de admissibilidade, ao momento em que esgotado o prazo legal de interposição das espécies recursais não admitidas. […] IV – Embargos de declaração não conhecidos. (Embargos de Declaração no Agravo Regmental no Recurso Extradinário com Agravo n. 1.232.679/ DF, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em sessão virtual de 20.3.2020 a 26.3.2020, publicado no DJ em 12.5.2020)

Esses destaques são essenciais, pois tratam dos requisitos atinentes ao “conhecimento” do recurso (admissibilidade), e não ao “provimento ou desprovimento” (mérito).

A consequência primeira que se extrai desses julgados (não só para fins de prescrição, que eram os temas tratados nos feitos) é que a inadmissibilidade por “não conhecimento” significa a expressa afirmação de que aquele recurso (ou até mesmo habeas corpus, substitutivo do recurso próprio) não deveria ter chegado no tribunal superior, de apelação, ao STJ ou STF (e aí nem trataremos aqui da Súmula 691 do STF).

Noutras palavras, dentro da cognição e limitações antes vistas, reconhecidas pelo próprio STJ como necessárias para conferir mais racionalidade ao sistema, um recurso especial ou um habeas corpus “não conhecidos” (pressupostos de admissibilidade) trazem em si a carga de reconhecimento de que sequer é inaugurada a jurisdição de mérito do Tribunal.  

Não se olvide que a própria jurisprudência do STJ reconhece há muito que, caso um recurso especial seja provido apenas em relação a determinado tópico, mas inadmitido quanto aos demais, “tal circunstância […]  enseja o reconhecimento do trânsito em julgado para a defesa em data retroativa a do escoamento do prazo para a interposição do recurso
especial cabível”
em relação aos demais pontos (Agravo Regimental no RHC nº 115.810-ES, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11.2.2020, publicado no DJ em 19.2.2020).

Portanto, diante dos pressupostos legais, assentada a “inadmissibilidade” do recurso ou do próprio habeas corpus, não é inaugurada competência do tribunal para se manifestar em relação à matéria trazida na impetração ou qualquer outra que se queira porventura analisar “de ofício”.

Noutras palavras, tecnicamente não há autorização para que o tribunal “contorne” sua própria decisão de dizer que não cabe o recurso ou o writ para, na sequência, fazer uma análise “de ofício” e  analisar todas demais questões sob outros ângulos que entenda eventualmente cabíveis.

Trata-se da (quase) corriqueira situação em que os tribunais “não conhecem” da impetração ou do recurso (ajuizados), porém adentram no mérito das discussões para, na sequência, conceder de ofício ordem de habeas corpus de modo a solver e ajustar a decisão da instância inferior do modo que se entenda como o “melhor” ou “mais correto”.

Não estamos aqui defendendo que os tribunais não devam proteger os direitos fundamentais, notadamente pela importantíssima via do habeas corpus (que sempre deveria ser excepcional e de cognição limitada).

Habeas corpus não é, ordinariamente, substitutivo do recurso próprio, muito menos possui (ou deveria possuir) espectro mais amplo que o próprio recurso (no máximo igual amplitude, embora dotado, corretamente, de maior efetividade e eficiência em prol da proteção dos direitos tratados na lide).

O procedimento de “não conhecer” o recurso ou o habeas corpus mas conceder ordem de ofício implica, na prática, verdadeira hipótese de constante “reexame necessário” em qualquer dos seus modos da irresignação apresentada, mesmo que ela seja tida expressamente como inadmissível.

Noutras palavras, a consequência desses posicionamentos é de que o recurso ou o habeas corpus são tidos inadmissíveis (principal), mas, como decorrência de uma hipótese sem previsão legal de reexame necessário, admite-se a possibilidade de concessão de habeas corpus de ofício (acessório) para resolver questões de mérito que, pela técnica, jamais poderiam estar na “competência” do tribunal respectivo.

Se  o próprio STJ reconhece por sua 3ª Seção (HC nº 482.549-SP) que a “ tutela constitucional e legal da liberdade humana justifica algum temperamento aos rigores formais inerentes aos recursos em geral, mas não dispensa a racionalidade no uso dos instrumentos postos à disposição do acusado ao longo da persecução penal, dada a necessidade de também preservar a funcionalidade do sistema de justiça criminal“, igual premissa deve ser também considerada com essa quase “praxe“ de não conhecer de recurso ou habeas corpus, mas conceder-se seguidamente a ordem de ofício, conferindo, como dito, uma espécie de reexame necessário ao que sequer poderia estar sendo analisado.

Daí não deflui nenhuma sustentação de que situações teratológicas não comportem excepcionalidades para proteção dos direitos. Tanto que defendemos que habeas corpus poderiam ter instrumentalidade até mesmo de efeito revisional (sempre excepcional, é claro).

O que não concebemos sob uma ótica de logicidade e racionalidade  é que a Corte recursal não admita o recurso ou o habeas corpus (não “conhecimento”), e, na sequência, num verdadeiro salto procedimental, supera essa inadmissibilidade declarada expressamente (e sua própria competência para tanto) e concede, das mais variadas formas, uma ordem de habeas corpus de ofício.

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