A Constituição brasileira prevê no § 3º do art. 225 que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
Em complemento, o § 3º e parágrafo único da Lei nº 9.605/98 assentam, respectivamente, que “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade” e que “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato”.
Trata-se de uma excepcionalidade à “tradicional” compreensão de autoria e sobretudo “culpabilidade”, embora muitos ainda neguem a possibilidade jurídica de responsabilizar “criminalmente” uma pessoa jurídica, que não é dotada de “vontade” e não pode agir, senão por intermédio de seus administradores (os quais seriam os passíveis de responsabilização criminal subjetiva).
Entretanto, a opção constitucional é bastante clara: é possível a imposição de sanção de natureza penal também às pessoas jurídicas (evidentemente que não podemos cogitar da pena de prisão, mas sim de outras sanções compatíveis com a realidade).
Depois de alguns debates na doutrina, a jurisprudência da Suprema Corte reconheceu que é possível a responsabilização da pessoa jurídica e das pessoas físicas responsáveis pela sua administração de forma autônomas. Noutras palavras, não precisaria haver a dupla e concomitante imputação do fato às pessoas físicas e à pessoa jurídica. Talvez o mais importante julgado tenha sido (ao menos em nossa avaliação) o RE nº 548.181-PR (Rel. Min. Rosa Weber, publicado no DJ em 30.10.2014) em que assim foi resumido na sua ementa:
[…] RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
1. O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação.
2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta.
3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental.
4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual.
5. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido“ (grifos e destaques nossos)
Esse tópico é um dos pontos de partida de nosso raciocínio: para a devida imputação de crime cometido no âmbito de administração societária admite-se a chamada “denúncia geral”, mas não a “denúncia genérica”, exatamente por se exigir, de forma correta, a descrição do liame (subjetivo) entre o autor e o fato criminoso praticado. Como destacamos com Eugênio Pacelli (Comentários ao CPP e sua Jurisprudência, 2022, 14ª ed., item 41.2:
[…] Temos sustentado […] a necessidade de se fazer uma distinção entre dois modelos diferentes de exposição dos fatos criminosos.
Em um deles, a denúncia ou queixa imputa a todos os réus, sem divergência quanto aos respectivos comportamentos, a realização dos mesmos atos. Em tais situações, e ainda que, no plano lógico, se possa supor a impossibilidade fática da realização das mesmas ações por todos os denunciados ou querelados, não se pode falar em inépcia da peça acusatória, na medida em que o suposto equívoco na acusação não teria prejudicado a articulação da defesa, já que todos estariam habilitados a compreender a imputação e, assim, a se defender dela. Nessa hipótese, o que poderá ocorrer é a absolvição de alguns réus e a eventual condenação de outros, se comprovado que não realizaram eles os mesmos atos. Assim, em um crime de homicídio, por exemplo, se a peça de acusação não diferenciar o comportamento do partícipe, em quaisquer de suas modalidades (que pode ser por determinação, por instigação e por quaisquer das demais classificações doutrinárias), deverá ele ser absolvido, precisamente por não ter realizado os atos de execução do crime. Deveria a denúncia ou queixa esclarecer que a atuação do partícipe seria outra. Denominamos semelhante modelo de denúncia ou queixa de denúncia (ou queixa) geral, caracterizada pela centralização dos fatos em todos os réus.
Outra solução se deve dar à acusação genérica, por meio da qual, dada à pluralidade e/ ou complexidade dos atos imputados, não se possa atribuir com clareza a individualização dos comportamentos dos réus, comprometendo-se, por isso mesmo, a amplitude da defesa. Se a peça acusatória, cuidando, por exemplo, de crimes financeiros, não distingue, dentre vários comportamentos, quais seriam os atos imputados como de gestão, bem como não identifica quais seriam, especificamente, os responsáveis por eles, não só a instrução criminal terá significativos obstáculos, como também a própria defesa de cada acusado, se e na medida em que cada um deles exerça funções diferentes na cadeia de condutas e na organização do empreendimento delituoso. De maneira geral, tais problemas ocorrem nas hipóteses de pluralidade de ações e de réus, bem como naquelas em que a imputação recai sobre tipos penais de conduta complexa, seja no que se refere à distribuição de atuações no fato criminoso, seja no que diz com a estrutura organizacional dos envolvidos e responsabilizados.
E isso é relevante por dois aspectos.
Primeiro, porque uma denúncia (para não ser inepta por isso) deve descrever com suficiência esse liame subjetivo (a responsabilidade é subjetiva, sempre bom lembrar) entre os autores e os fatos imputados, mesmo que a narrativa seja geral para todos, na medida em que pode acontecer a impossibilidade, nesse momento, de aferir exatamente o comportamento mais individualizado possível de cada um dos supostos autores. A finalidade é sempre permitir a compreensão dos fatos imputados e, como decorrência lógica, o exercício da ampla defesa.
O segundo é que há casos em que existe uma dificuldade de apuração investigativa de quem seriam os efetivos autores (pessoas físicas) para fins de imputação criminal. Nesses casos, relembrando a sempre pertinente jurisprudência do STF nas palavras do Ministro Orozimbo Nonato, e multicitada pelo Ministro Celso de Mello, “o Ministério Público, para validamente formular a denúncia penal, deve ter por suporte uma necessária base empírica , a fim de que o exercício desse grave poder-dever não se transforme em instrumento de injusta persecução estatal. O ajuizamento da ação penal condenatória supõe a existência de justa causa, que se tem por inocorrente quando o comportamento atribuído ao réu “nem mesmo em tese constitui crime, ou quando, configurando uma infração penal, resulta da pura criação mental da acusação” (RF 150/393, Rel. Min. Orozimbo Nonato). […] (HC nº 73.271-2, STF, 1ª Turma, publicado no DJ em 4.10.1996)
Nesses casos, talvez não se poderá imputar a responsabilidade individual, mas não impedirá a persecução penal da pessoa jurídica, que, como visto, não está condicionada à “dupla imputação” (pessoas física e jurídica).
Dito isso, o objeto do presente texto é fazer, respeitosamente, uma crítica a recente decisão da 3ª Seção, em que se reconheceu a possibilidade de extinção da punibilidade da pessoa jurídica acusada de crime ambiental em caso de “incorporação” por outra pessoa jurídica. O julgado está assim resumido na sua ementa:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE POLUIÇÃO (ART. 54, § 2º, V, DA LEI 9.605/1998). CONDUTA PRATICADA POR SOCIEDADE EMPRESÁRIA POSTERIORMENTE INCORPORADA POR OUTRA. EXTINÇÃO DA INCORPORADA. ART. 1.118 DO CC. PRETENSÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA INCORPORADORA. DESCABIMENTO. PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DA PENA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 107, I, DO CP. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE MANTIDA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. A conduta descrita na denúncia foi supostamente praticada pela sociedade empresária […] , posteriormente incorporada por SEARA ALIMENTOS LTDA.
2. A incorporação gera a extinção da sociedade incorporada, transmitindo-se à incorporadora os direitos e obrigações que cabiam à primeira. Inteligência dos arts. 1.116 e 1.118 do CC, bem como do art. 227 da Lei 6.404/1976.
3. A pretensão punitiva estatal não se enquadra no conceito jurídico-dogmático de obrigação patrimonial transmissível, tampouco se confunde com o direito à reparação civil dos danos causados ao meio ambiente. Logo, não há norma que autorize a transferência da responsabilidade penal à incorporadora.
4. O princípio da intranscendência da pena, previsto no art. 5º, XLV, da CR/1988, tem aplicação às pessoas jurídicas. Afinal, se o direito penal brasileiro optou por permitir a responsabilização criminal dos entes coletivos, mesmo com suas peculiaridades decorrentes da ausência de um corpo biológico, não pode negar-lhes a aplicação de garantias fundamentais utilizando-se dessas mesmas peculiaridades como argumento.
5. Extinta legalmente a pessoa jurídica ré – sem nenhum indício de fraude, como expressamente afirmou o acórdão recorrido –, aplica-se analogicamente o art. 107, I, do CP, com a consequente extinção de sua punibilidade.
6. Este julgamento tratou de situação em que a ação penal foi extinta pouco após o recebimento da denúncia, muito antes da prolação da sentença. Ocorrendo fraude na incorporação (ou, mesmo sem fraude, a realização da incorporação como forma de escapar ao cumprimento de uma pena aplicada em sentença definitiva), haverá evidente distinção em face do precedente ora firmado, com a aplicação de consequência jurídica diversa. É possível pensar, em tais casos, na desconsideração ou ineficácia da incorporação em face do Poder Público, a fim de garantir o cumprimento da pena.
7. Diversamente, a responsabilidade civil pelos danos causados ao meio ambiente ou a terceiros, bem como os efeitos extrapenais de uma sentença condenatória eventualmente já proferida quando realizada a incorporação, são transmissíveis à incorporadora.
8. Recurso especial desprovido. (Recurso Especial nº 1.977.172 – PR, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24.8.2022, publicado no DJ em 20.9.2022)
Em síntese, o STJ assentou que, ausentes “indícios de fraude” nos atos de “incorporação”, haveria de ser aplicar, analogicamente, o art. 107, I, CP (que permite a extinção da punibilidade da pessoa física em caso de sua morte) quando ocorrente a “incorporação” da pessoa jurídica denúncia por terceira empresa, presente o princípio da intranscendência da pena, conforme previsão abstrata no art. 5º, LXV, CF (“XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”).
Vamos à legislação civil, invocada pelo julgado para, ulteriormente, aplicar analogicamente os efeitos penais de extinção da punibilidade:
Art. 1.116. Na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos tipos.
Art. 1.117. A deliberação dos sócios da sociedade incorporada deverá aprovar as bases da operação e o projeto de reforma do ato constitutivo.
§ 1º A sociedade que houver de ser incorporada tomará conhecimento desse ato, e, se o aprovar, autorizará os administradores a praticar o necessário à incorporação, inclusive a subscrição em bens pelo valor da diferença que se verificar entre o ativo e o passivo.
§ 2º A deliberação dos sócios da sociedade incorporadora compreenderá a nomeação dos peritos para a avaliação do patrimônio líquido da sociedade, que tenha de ser incorporada.
Art. 1.118. Aprovados os atos da incorporação, a incorporadora declarará extinta a incorporada, e promoverá a respectiva averbação no registro próprio.
Não vamos adentrar na discussão do fato se “existe ou não fraude” na incorporação (mas não podemos negar que, no ramo específico do Direito, são corriqueiras as hipóteses de incorporações com fins não tão claros como aparentemente trazem nas declarações firmadas no papel).
Ao caso concreto. O voto-condutor do julgado ora sob análise traz várias considerações sobre os efeitos jurídicos na esfera comercial e civil da incorporação (sugerimos a leitura detalhada). Mas nele encontra-se a afirmativa de que as diferenciações feitas entre os aspectos cíveis e penais “demonstram que não é possível enquadrar a pretensão punitiva na transmissibilidade regida pelos arts. 1.116 do CC e 227 da Lei 6.404/1976, o que nos traz a uma conclusão intermediária: não há, no regramento jurídico da incorporação, norma autorizadora da extensão da responsabilidade penal à incorporadora por ato praticado pela incorporada”. Vai além para dizer que o recorrente (no caso, era o MP recorrendo de decisão de tribunal estadual) não trouxe nenhum argumento que, “partindo da interpretação jurídica do texto constitucional, exclua as pessoas jurídicas de sua incidência, limitando-se a citar razões de conveniência prática em amparo a sua tese. Trata-se de leitura equivocada do art. 5º, XLV, da CR/1988, o qual não apresenta nenhuma incompatibilidade em abstrato com a natureza ideal das pessoas jurídicas”.
Em (primeiro) voto dissidente, da lavra do Ministro Joel Ilan Paciornik, encontra-se a fundamentação de que existe uma “tênue semelhança entre a morte da pessoa natural e a morte da pessoa jurídica na medida em que ambas acarretam a extinção da personalidade. A partir do fim desse atributo, impossível a assunção de novas obrigações e a aquisição de outros direitos. A morte e a extinção implicam, igualmente, a sucessão dos direitos e obrigações do indivíduo e do ente moral. Os negócios jurídicos transferíveis sucederão aos herdeiros e aos incorporadores. Porém, percebe-se o nítido paradoxo no qual a morte do ser humano é a causa da sucessão e, inversamente, a sucessão da empresa é a causa de sua “morte”. Mais que isso – e talvez mais relevante – , acentuou (para nós corretamente) que a “mera observação da realidade revela que a equiparação da fusão e da incorporação dos entes morais à morte da pessoa natural implicaria risco grave ao primado constitucional da responsabilidade penal da pessoa jurídica”.
Igualmente relevantes as ponderações do Ministro Rogério Schietti (segundo voto divergente), ao advertir que “não há completa identidade entre a morte de um ser humano, que é imprevisível e definitiva, e a morte de uma pessoa jurídica, que pode ser até planejada.Na verdade, tal morte é fictícia, porque, salvo na hipótese de falência – que não é o caso dos autos –, a pessoa jurídica não deixa efetivamente de existir. Ela deixa de existir somente naquela configuração original, mas, em virtude de mera operação societária, continua a atuar sob um novo formato, com um novo nome e eventualmente com uma nova diretoria”.
Quando criado o dispositivo do art. 107, I, CP sequer se “imaginava” a possibilidade (na década de 40 do milênio passado) a “responsabilização penal da pessoa jurídica”, só inaugurada no ordenamento jurídico com a Constituição Federal de 1988.
A morte física é um FATO (com efeitos jurídicos, é verdade), mas que ocorre, normalmente, sem a vontade da pessoa natural. Certo que esse fato natural irá ocorrer, independentemente da vontade humana. Ele é indissociável da existência (física) dos homens (pelo menos do que se tem conhecimento e do que a ciência nos revela).
Já a incorporação de uma pessoa jurídica por outra é um ATO negocial (eminentemente voluntário das partes) que, nem de longe, pode ensejar um tratamento analógico.
A intranscendência da pena (criminal) é um critério à dogmática tradicional que existe para que, a partir unicamente de ações subjetivas (típicas do ser humano), não se responsabilizem terceiros que não tenham praticado a ação prevista (verbo nuclear) abstratamente pela norma criminal (por isso a referência inicial da diferença de compreensão entre as responsabilidades penais das pessoas físicas das jurídicas). Não por outra razão que em outro julgado, da mesma relatoria, determinou-se o trancamento da ação penal em crime ambiental envolvendo uma denúncia tida por inepta diante da ausência de narração suficiente dos fatos supostamente ocorridos (vide RMS n. 56.703–ES, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 25.9.2018, publicado no DJ em 3.10.2018).
Também por isso compreendemos como correta a fundamentação externada pelo Ministro Rogério Schietti ao pontuar que “não se trata, enfim, de punir outrem, mas apenas de modificar formalmente a pessoa jurídica que deverá se responsabilizar pelo crime perpetrado pela empresa condenada, a qual, por uma deliberada e consciente decisão daquela, se houve por bem incorporar”. E bem ilustra a impossibilidade de haver o mesmo raciocínio (analógico) para as pessoas jurídicas ao destacar que “há situações em que não é possível valer-se totalmente a dogmática penal e processual penal. Basta imaginar, ilustrativamente, um exemplo no processo penal: como se interroga uma pessoa jurídica? Como se garantir a uma pessoa jurídica o direito de não se autoincriminar? Naturalmente, embora se admita a responsabilidade penal própria da pessoa jurídica, ela age e participa dos atos processuais por meio dos seus prepostos. Ou, ainda, como impor certas medidas cautelares a uma pessoa jurídica (prisão preventiva, proibição de comparecimento a determinados locais, monitoração eletrônica)? Por óbvio, são medidas impossíveis de aplicação quando se tem, no polo passivo da controvérsia penal, uma pessoa jurídica”.
Veja-se que, por um ato negocial, admitiu-se não aplicar os efeitos penais decorrentes da lei penal (em abstrato) ou mesmo de uma condenação já imposta. Noutras palavras, a extinção da punibilidade estaria unicamente na vontade negocial dos interessados, acarretando daí, no que interessa, a eliminação de qualquer responsabilização penal da pessoa jurídica incorporada.
Se civilmente os efeitos são do “desaparecimento jurídico” da empresa incorporada (a “morte” jurídica), deve haver uma compreensão restritiva desses efeitos, que não podem ser ampliados por “interpretação” tendo por norte basilar uma situação jurídica completamente diversa, que é o “desaparecimento físico” da pessoa (morte natural).
Como diz Chaïm Perelman, os problemas específicos de lógica jurídica não surgem quando se trata de deduzir as consequências que resultam logicamente de um conjunto de premissas, mas quando se trata de estabelecer essas próprias premissas, dando às normas jurídicas seu alcance exato (PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 496). Em sintonia a tal raciocínio, Ricaséns Siches destaca que “el verdadero meollo de la función judicial no radica ni remotamente en el silogismo que pueda formularse, sino que consiste en la elección de premisas, por parte del juez” (RECASÉNS SICHES, Luis. Nueva Filosofia de la interpretación del Derecho. 2 ed. México: Porrúa, 1973, p.237).
Para nós, com todas as vênias, não há racionalidade no argumento analógico emprestado para chancelar o julgado que permitiu a extinção da punibilidade pelo mero negócio voluntário entre as pessoas jurídicas envolvidas.
Não bastassem esses fundamentos jurídicos, partamos para os (futuros e possíveis) efeitos dessa decisão em dois casos bem mais graves do que a imputação originária do feito que gerou o “precedente”.
“Casos” Mariana e Brumadinho.
No primeiro evento, os fatos ocorreram em novembro de 2015. Originariamente, foram denunciadas 22 pessoas físicas e quatro empresas jurídicas (Samarco, Vale, BHP Billiton e VogBR) pelo rompimento da Barragem de Fundão. Os rejeitos ambientais atingiram mais de 40 cidades do Leste de Minas Gerais e do Espírito Santo. O caso, considerado o maior e sem precedentes no Brasil até então, resultou em 19 mortes. Às empresas jurídicas, foram imputados 9 (nove) crimes ambientais.
No segundo evento, havido em 25 de janeiro de 2019, a barragem I da Mina do Córrego do Feijão desabou, causando um verdadeiro “tsunami” de rejeitos sobre a comunidade local e também em distritos aos arredores de Brumadinho. Conforme divulgado publicamente, foram 11,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos, um mar de lama que causou mortes, destruição e prejuízos incalculáveis no meio ambiente. Mais de 250 pessoas morreram, além dos desaparecidos até hoje. Dentre outras, há notícias de imputações criminais por homicídios a várias pessoas físicas, além de vários crimes ambientais às empresas Vale S.A. e Tüv Süd Bureau de Projetos e Consultorias Ltda.
Façamos um corte para agregar fundamentos relevantes. É que, dentre outros feitos em que se discutiu o tema dos limites do legislador e do intérprete frente aos princípios maiores estampados na Constituição, o STF não admitiu a extinção da punibilidade de um agente que queria a aplicação analógica da causa prevista no então art. 107, VIII, CP (revogado pela Lei nº 1.106, em 2005), mas invocado uma vez presente a ultratividade da norma penal (a hipótese permitia, na época, a extinção da punibilidade para quem casasse com a vítima nos crimes contra os costumes, e o fato fora cometido antes da sua revogação formal).
Evidente que os fatos lá tratados eram diversos, mas o que importa aqui são alguns dos fundamentos centrais da Corte Suprema a respeito do viés interpretativo e da proteção de bens jurídicos (RE nº 418.376-MS), precisamente declinadas pelo Ministro Gilmar Mendes.
Nesse feito, assentou-se que a admissão da extinção da punibilidade implicaria “blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico”. E complementou que “quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado NÃO PODE abrir mão da proteção do DIREITO PENAL para garantir a proteção de um direito fundamental”.
Na linha do que defendemos em companhia de Frederico Valdez Pereira (Obrigações Processuais Penais Positivas segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos, 2022, 3 ed., p. 41), “como ensina García de Enterría, analisando exclusivamente pelo prisma do sistema interno (mas que se aplica em qualquer interpretação sistêmica, convencional ou comunitária), ”la supremacía de la Constitución sobre todas las normas y su caracter central en la construcción y en la VALIDEZ del ordenamiento en su conjunto obligan a interpretar éste en cualquier momento de su aplicación […] en el sentido que resulta de los principios y reglas constitucionales, tanto los generales como los específicos referentes a la materia de que se trate”. Em complemento, Clèmerson Clève destaca igualmente a Constituição não só impõe diretrizes específicas a serem adotadas, mas opera força normativa, vinculando, sempre, positiva ou negativamente, os Poderes Públicos”.
E complementamos: “decorrem dos direitos fundamentais do homem a necessidade e o dever de o Estado agir positivamente para que garanta, na melhor medida do possível, o exercício de TODOS os direitos reconhecidos constitucionalmente e em normativos internacionais. Na aplicação do Direito, é vedado expressamente agir com excessos injustificados (ubermassverbot), mas, igualmente, há uma igual proibição de agir com deficiência (untermassverbot), aí incluindo-se necessariamente a proteção equilibrada dos direitos fundamentais também das vítimas” (op. Cit., p 59).
Nessa linha, não podemos esquecer que há mandamento constitucional de proteção do meio-ambiente (também por normas penais) especialmente no art. 225, § 1º, VII, da CF/88: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: […] VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. E, em complemento, o já invocado § 3º do art. 225 da CF impõe ao Estado a obrigação efetiva de aplicação de penas criminais às pessoas jurídicas que cometam crimes que, porventura, violem esses bens jurídicos protegidos constiucionalmente.
Não por outra razão que, tratando de outros temas (prescritibilidade ou não da responsabilização por dano ambiental), mas enfatizando a importância e essencialidade de proteção integral do meio-ambiente, recentemente o STF decidiu que:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 999. CONSTITUCIONAL. DANO AMBIENTAL. REPARAÇÃO. IMPRESCRITIBILIDADE.
1. Debate-se nestes autos se deve prevalecer o princípio da segurança jurídica, que beneficia o autor do dano ambiental diante da inércia do Poder Público; ou se devem prevalecer os princípios constitucionais de proteção, preservação e reparação do meioambiente, que beneficiam toda a coletividade.
2. Em nosso ordenamento jurídico, a regra é a prescrição da pretensão reparatória. A imprescritibilidade, por sua vez, é exceção. Depende, portanto, de fatores externos, que o ordenamento jurídico reputa inderrogáveis pelo tempo.
3. Embora a Constituição e as leis ordinárias não disponham acerca do prazo prescricional para a reparação de danos civis ambientais, sendo regra a estipulação de prazo para pretensão ressarcitória, a tutela constitucional a determinados valores impõe o reconhecimento de pretensões imprescritíveis.
4. O meioambiente deve ser considerado patrimônio comum de toda humanidade, para a garantia de SUA INTEGRAL PROTEÇÃO , especialmente em relação às gerações futuras. TODAS AS CONDUTAS do Poder Público estatal DEVEM ser direcionadas no sentido de INTEGRAL PROTEÇÃO legislativa interna e de adesão aos pactos e tratados internacionais protetivos desse direito humano fundamental de 3ª geração, para evitar prejuízo da coletividade em face de uma afetação de certo bem (recurso natural) a uma finalidade individual.
5. A reparação do dano ao meio ambiente é direito fundamental indisponível, sendo imperativo o reconhecimento da imprescritibilidade no que toca à recomposição dos danos ambientais. […] Afirmação de tese segundo a qual “É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental”. (Recurso Extraordinário nº 654.833, Plenário, julgado em 20.4.2020, publicado no DJ em 24.6.2020)
Desse julgado extraem-se alguns excertos conclusivos relevantes:
a) o art. 5º, § 2º da CF “prevê que os direitos e garantias expressos na Magna Carta não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Logo, sendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto tanto na Constituição como em diversos tratados internacionais, torna-se inconteste seu caráter fundamental”;
b) “No transcurso histórico de afirmação dos direitos humanos, pode-se dizer que a instituição da Política Nacional de Meio Ambiente no país reconheceu a essencialidade da proteção ao meio ambiente, bem jurídico cuja fundamentalidade foi objeto da Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, fruto da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, na Suécia, em 1972, que contou com a participação do Brasil. Registro o teor do primeiro Princípio declarado: “Princípio 1 – O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser eliminadas.” (ONU. Declaração da Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente. Estocolmo, 1972, destaquei) Neste sentido, a fundamentalidade material do direito ambiental , posteriormente formalizada em instrumentos internacionais e nacionais, decorre da própria natureza do bem jurídico tutelado e do seu caráter transindividual.
Talvez a advertência de Luigi Ferrajoli seja muito importante nesse momento, quando enfatiza que também “es posible, sobre la base de los nuevos límites, vínculos, reglas y controles, conjeturar un desarrollo MUCHO MÁS AMPLIO del DERECHO PENAL internacional comercial, financiero y del MEDIO AMBIENTE, y por lo tanto, la configuración como delitos de muchas de las actuales actividades delictivas industriales o especulativas, que se encuentran hoy en la impunidad” (Criminología, Crímenes globales y Derecho Penal: el debate epistemológico em la criminología contemporânea, Revista Crítica Penal Y Poder, 2013, n. 4, p. 224, Observatorio del Sistema Penal y los Derechos Humanos, Universidad de Barcelona).
Os argumentos acima apresentados reforçam o que defendemos: mesmo que fosse prevista em lei específica com expressos efeitos “criminais” mais benéficos, a extinção da punibilidade seria inconstitucional pela violação do dever de proteção imposto constitucionalmente de proteção dos bens jurídicos ambientais, inclusive por meio de responsabilidade criminal.
Mas, pelo que vimos, segundo o julgado do STJ, bastará uma “incorporação jurídica” das “empresas responsáveis” (negócio jurídico entre particulares) para, por analogia formal, pelo menos em relação aos crimes ambientais, não se cogitar mais de qualquer responsabilização criminal: estará extinta a punibilidade !
Indiscutivelmente, um caso clássico de violação da proibição de proteção deficiente.
Salvo melhor juízo sempre.
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