1ª Condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos

Douglas Fischer

Começamos a preparar a PRÓXIMA (3ª) EDIÇÃO do Livro Obrigações Processuais Penais positivas segundo a Jurisprudência das Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos, que passará contar com anotações, decisões importantes e supervenientes do STF a respeito do tema (explicitamente reconhecendo-as, bem assim destacando a compreensão do que denominamos de “garantismo integral”), bem assim a síntese de todas as condenações nas quais o Brasil foi condenado.

Nessa obra, escrita na companhia (e por méritos maiores pela ideia) do Professor Doutor Frederico Valdez Pereira, destacamos que as Cortes de Direitos Humanos reconhecem um DEVER (Obrigação) POSITIVO de investigação rápida, eficiente com a punição dos eventuais responsáveis criminosos.

Elas reconhecem EXPRESSAMENTE que o Direito Penal deve ser EFICIENTE para a PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, especialmente das VÍTIMAS e/ou SEUS FAMILIARES.

Em TODAS (todas !) condenações que o Brasil sofreu (já foram 9), reconheceu-se a violação do DEVER DE PROTEÇÃO das VÍTIMAS. Em nenhum caso há reconhecimento de violação de direitos fundamentais de investigados/processados.

Como está no texto abaixo, de um dos votos extrai-se que ““a FUNÇÃO GARANTISTA DO ESTADO, que abriu caminho por meio dos direitos de primeira geração e sua consequente observância pelo Estado – em geral uma observância negativa –, AVANÇOU consideravelmente por meio dos DIREITOS DE SEGUNDA GERAÇÃO que com eles trouxeram a exigência de promoções e prestações públicas”.

Dentre esses DEVERES estão sim os DE PROTEÇÃO DAS VÍTIMAS, como se pode ver nos julgados.

Ilustrativamente, vamos trazer aqui uma síntese da primeira condenação, que foi o Caso Ximenes Lopes vs Brasil, sentença de 4 de julho de 2006 1.

Instaurado por petição formulada em 22.11.1999 por Irene Ximenes Lopes, esse caso foi submetido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) à Corte em 1º.10.2004, envolvendo a situação do Senhor Damião Ximenes Lopes, portador de deficiência mental, que teria sido vítima de submissão a condições desumanas e degradantes, além de agressões que lhe teriam causado a morte enquanto internado na Casa de Repouso Guararapes, no Município de Sobral/CE. Especificamente, a vítima fora internada em 1º.10.1999 para tratamento psiquiátrico na referida instituição, que, embora privada, atuava no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde), vindo a falecer três dias após sua internação, em 4.10.1999. Segundo noticiado, no dia 4.10.1999, a mãe da vítima o encontrou na clínica em situação agonizante, quando então foi solicitado socorro ao médico responsável, porém sem qualquer atendimento. O corpo da vítima apresentava sinais de tortura: punhos dilacerados e roxos, mãos perfuradas, com sinais de unhas e uma parte do nariz machucada. Segundo consignado em laudos médicos, a morte foi “natural” decorrente de parada cardiorrespiratória.

Posteriormente, em 17.2.2000, mas em razão exclusiva de requisição do Ministério Público para que os médicos que realizaram a necropsia definissem melhor as causas das lesões encontradas no corpo da vítima, o Instituto Médico Legal ampliou as conclusões e informou que as lesões descritas no laudo foram provocadas por “ação de instrumento contundente (ou por espancamento ou por tombos), não sendo possível afirmar o modo específico” (item 112.15).

No procedimento instaurado perante a Corte IDH, o Brasil reconheceu expressamente a existência de falhas no dever de fiscalizar a Casa de Repouso Guararapes no período da internação da vítima, admitindo sua responsabilidade pela violação dos arts. 4ª e 5ª da Convenção (§ 66 da sentença).

Assentou-se que o art. 1.1 da Convenção “atribui aos Estados Partes os deveres fundamentais de respeitar e de garantir os direitos, de tal modo que todo menoscabo aos direitos humanos reconhecidos na Convenção que possa ser atribuído, segundo as normas do direito internacional, à ação ou omissão de qualquer autoridade pública, constitui fato imputável ao Estado, que compromete sua responsabilidade nos termos dispostos na mesma Convenção” (§ 83).

Sempre que for realizada uma investigação, é essencial que sejam adotadas as seguintes providências (pelo menos): a) identificação da vítima; b) recuperação e preservação do material probatório relacionado com a morte; c) identificação de possíveis testemunhas e obtenção de suas declarações; d) determinação da causa, forma, lugar e momento da morte; e) distinção entre morte natural, morte acidental, suicídio e homicídio. Além de “investigar exaustivamente” a cena do crime, bem como realizar necropsias rigorosas por profissionais competentes e uso de procedimentos adequados (§ 179).

Diante dos “fatos provados” (capítulo VII, §§ 112 e seguintes), afirmou-se que são premissas da Corte que “a infração do direito à integridade física e psíquica das pessoas é uma espécie de violação que apresenta diversas conotações de grau e que abrange desde a tortura até outro tipo de vexames ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes cujas sequelas físicas e psíquicas variam de intensidade segundo os fatores endógenos e exógenos que deverão ser demonstrados em cada situação concreta” (§ 127) e que “os Estados têm o dever de assegurar atendimento médico eficaz às pessoas portadoras de deficiência mental. Essa obrigação se traduz no dever estatal de assegurar seu acesso a serviços de saúde básicos; à promoção da saúde mental; à prestação de serviços dessa natureza que sejam o menos restritivos possível; e à prevenção das deficiências mentais” (§ 128).

Assim, caracterizados indícios relevantes de que não houve o procedimento correto na apuração/investigação dos fatos, a Corte reafirmou a compreensão de que o Estado tem o dever de iniciar ex officio e sem demora uma investigação séria, imparcial e efetiva. Essa “investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis e orientada à determinação da verdade e à investigação, ajuizamento e punição de todos os responsáveis pelos fatos”, especialmente quando estejam ou possam estar implicados agentes estatais (§ 148).

Tratando das investigações e diligências relacionadas com a morte da vítima, foi reafirmada a compreensão de que “os Estados têm o dever de investigar as afetações aos direitos à vida e à integridade pessoal como condição para garantir esses direitos, conforme se desprende do artigo 1.1 da Convenção Americana”, sendo que, no caso em tela, provou-se que “o Estado falhou em seus deveres de respeito, prevenção e proteção e que é, por conseguinte, responsável pela violação do direito à vida e à integridade pessoal” da vítima (§ 177).

Especificamente em relação ao processo penal (§ 192), destacou-se que há expressa previsão no art. 25.1 da Convenção da obrigação de os Estados garantirem a todas as pessoas sob sua jurisdição um recurso judicial efetivo contra atos que violem seus direitos fundamentais, ou seja, “devem ser capazes de produzir resultados ou respostas às violações de direitos contemplados na Convenção”, na medida em que essa garantia constitui um dos pilares básicos, não só da Convenção Americana, mas do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática, no sentido da Convenção”. Portanto, há o reconhecimento de uma garantia de que as vítimas das violações de direitos humanos devem dispor de amplas possibilidades para atuar e serem ouvidas nos feitos, tanto na tentativa de esclarecer os fatos e punir os responsáveis, como também para a obtenção de reparações (§ 193).

Nesse contexto, relevante ainda excerto do voto do Juiz Sérgio García Ramírez (em apartado) em que destacou “a função garantista do Estado, que abriu caminho por meio dos direitos de primeira geração e sua consequente observância pelo Estado – em geral uma observância negativa –, avançou consideravelmente por meio dos direitos de segunda geração que com eles trouxeram a exigência de promoções e prestações públicas”.

Assim, todo o procedimento de responsabilização penal deve-se dar num prazo razoável, assim compreendido (nos termos do art. 8.1 da Convenção) mediante a observação de três elementos: a) complexidade do assunto; b) atividade processual do interessado; c) a conduta das autoridades judiciais.

Partindo das premissas comprovadas de que o caso não era complexo (notadamente por envolver apenas uma vítima) e que a família de Damião Ximenes Lopes cooperou com tudo que lhes era possível fazer, a Corte IDH reconheceu que a demora processual deveu-se unicamente às condutas das autoridades judiciais (§ 199). Decorridos mais de seis anos da denúncia (de 27.3.2000) contra os supostos autores dos fatos que resultaram na morte da vítima, ainda não havia sequer sido proferida sentença em primeiro grau. As provas dos autos indicam que houve demora de “ mais de dois anos para realizar as audiências destinadas a ouvir as declarações de testemunhas e informantes e, em alguns períodos, não realizou atividade alguma com vistas à conclusão do processo”, sendo rechaçada a arguição do Brasil de que tal circunstância decorreria do “grande número de declarações que teve de receber ou a ter tido de delegar a outras repartições judiciais o recebimento das declarações de testemunhas que não residiam em Sobral, ou ao volume de trabalho da repartição judicial que conhece da causa”. De maneira bem clara, está no § 203 que “o prazo em que se desenvolveu o procedimento penal no caso sub judice não é razoável, uma vez que, após mais de seis anos, ou 75 meses de iniciado, ainda não se proferiu sentença de primeira instância e não foram apresentadas razões que possam justificar esta demora. Este Tribunal considera que este período excede em muito aquele a que se refere o princípio de prazo razoável consagrado na Convenção Americana e constitui uma violação do devido processo”.

Por tudo que restou apurado, a Corte IDH concluiu que o Brasil “não proporcionou aos familiares de Ximenes Lopes um recurso efetivo para garantir o acesso à justiça, a determinação da verdade dos fatos, a investigação, identificação, o processo e, se for o caso, a punição dos responsáveis e a reparação das consequências das violações”. Pela violação dessas obrigações processuais penais positivas em detrimento do melhor acertamento dos fatos, assentou-se que o Estado tem responsabilidade pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial consagrados nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo tratado.

Tratando da não observância dos direitos fundamentais da vítima do delito causado à luz da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, a condenação do Brasil foi expressa (§ 216): “A Corte considera como “parte lesada” o senhor Damião Ximenes Lopes, na qualidade de vítima das violações dos direitos consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 do mesmo instrumento”.

Essa compreensão da Corte IDH é de 1988 (sim, há mais de 32 anos) e foi inaugurada no Caso Velasquez Rodriguez Vs. Honduras, no qual, expressamente, se REJEITOU A “CONCEPÇÃO CLÁSSICA” de que os direitos fundamentais somente impulsionam obrigações negativas aos poderes estatais, atestando a importância da justiça penal na efetiva proteção de direitos fundamentais.

Há esse DUPLO VIÉS OBRIGATÓRIO de atuação: de proteção dos interesses dos investigados e também, E NA MESMA MEDIDA, buscando o equilíbrio de tratamento, da VÍTIMA e/ou seus familiares.

Então tenham cuidado nos estudos e sobretudo diante de algumas (parciais) doutrinas que procuram não destacar esse importante entendimento há muito vigorante. Alerto que há ainda alguns autores que dizem que esse entendimento se revela “punitivista”. Respeitosamente, um equívoco decorrente de uma (arraigada) visão (apenas) parcial do contexto geral dos precedentes das Cortes de Direitos Humanos.

Bons estudos. E reitero: leiam nos originais e tirem suas próprias conclusões, não sejam induzidos a pensar que esse texto ou qualquer outro contenham “doutrina a ser seguida”.

A finalidade é apenas tentar MAXIMIZAR a visão de quem quer estudar INTEGRALMENTE as doutrinas de garantias.

1 https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf Acesso em 18 dez 2020.

3 thoughts on “1ª Condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos

  1. Ana Lucia Pretto Pereira Reply

    Prezado Dr. Fischer, boa tarde,

    Sou Ana Lucia, advogada em Curitiba e Professora na Universidade Católica de Brasília – UCB. Em janeiro lhe enviei convite a respeito de Curso de Pós-graduação em Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, oferecido pela UCB em formato in company para Servidores da Receita Federal do Brasil, da Controladoria-Geral da União e do Ministério da Economia. Todavia, acredito que não fiz chegar a minha mensagem, daí escrever por aqui. Se possível, agradeço a gentileza de indicar um contato pelo qual eu possa enviar outras informações sobre a proposta.
    Obrigada,

    Cordialmente,
    Ana Lucia Pretto

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