Juiz Natural e recebimento de denúncia por juízo manifestamente incompetente: como explicar esse julgado?

Vamos deixar claro já de saída que a análise do presente texto nada tem a ver com o mérito da causa (e os fatos praticados pelo envolvido), mas exclusivamente com a decisão tomada recentemente pelo STF (e publicada no dia de hoje, 14.3.2022) a respeito do recebimento da denúncia, com imediato declínio de competência para primeiro grau.

Não temos dúvidas de que o juiz natural é pressuposto indeclinável e garantido constitucionalmente e que deve ser aferido quando praticado determinados atos jurisdicionais. Igualmente que a alteração de competência (em razão das funções ou em razão da matéria) posteriormente a um ato praticado pelo juízo então competente não irá anular o que foi correta e devidamente realizado. Mas qualquer ato praticado por juízo que seja manifestamente incompetente não é dotado de validade jurídica.

Ora, no caso analisado na Petição nº 9.844 (réu Roberto Jefferson), não entendemos qual a razão de estar no STF esse feito: o acusado não tem prerrogativa de foro à luz das regras constitucionais, mormente após a limitação da competência do STF no leading case da Questão de Ordem na AP nº 937 (vide anotações aqui https://temasjuridicospdf.com/prerrogativa-de-foro-e-competencia-penal-originaria-doutrina-e-jurisprudencia/).

Conforme defendemos há muito na companhia de Eugênio Pacelli, atos praticados por juízo absolutamente incompetente não podem ser ratificados e não possuem valor jurídico algum:

567.2. Incompetência absoluta: Conforme defendido no item 567.1, compreendemos que não se pode falar em possibilidade de ratificação de atos decisórios quando violada a competência absoluta. É que há preceito constitucional que impede se adote essa postura: o art. 5º, LII, CF, determina expressamente que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. É-nos hialina uma consequência: não há preclusão para o reconhecimento da incompetência absoluta, e, uma vez proferida, não podem ser ratificados os atos decisórios. Mais: a nulidade se apresenta desde a origem, o próprio oferecimento da denúncia.

Corolário lógico é que se deva iniciar novamente todo o rito processual no juízo reconhecido como competente, mediante a apresentação da denúncia pelo titular respectivo. Uma observação relevante, notadamente para os casos anteriores à decisão do STF na Ação Penal n. 937: se houver deslocamento de competência em razão de funções assumidas pelo réu, todos os atos praticados até o momento que gerou a necessidade de modificação serão absolutamente válidos, presente o princípio do tempus regit actum.

Aqui não deverá ser anulada a ação penal, mas reconhecidos como nulos os atos eventualmente praticados quando o juízo anterior não mais tinha competência. Noutras palavras: todos os atos praticados pelo juízo então competente (e somente eles) serão absolutamente válidos e, mais relevante, não necessitarão de qualquer ratificação pelo juízo que passou a ser o competente. A ratificação seria obrigatória (quando cabível) apenas quando os atos praticados não observaram a competência processual própria e no momento adequado. (Comentários ao CPP e sua jurisprudência, 14 ed. 2022. Salvador: Juspodivm, p. 1387-1388)

Nessa linha de entendimento, reportamos ementas de julgados do STF que refletem com precisão o que lá foi decidido pela Corte Suprema:

[…] A modificação superveniente de competência não importa em nulidade dos atos processuais até então praticados. Precedentes. 2. Pelo princípio do tempus regit actum, são válidos os atos processuais praticados ao tempo em que o juízo de primeiro grau era competente, dentre os quais o recebimento da denúncia, prosseguindo-se a ação penal a partir da fase processual em que se encontra. […] (Ação Penal nº 914-AP, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 8.3.2016, publicado no DJ em 30.3.2016).

[…] Ocorrendo modificação da competência em razão da aquisição ou perda superveniente de foro por prerrogativa de função por parte do acusado, o juízo declinado recebe o processo no estado em que se encontrar. Os atos processuais praticados no juízo declinante, se competente quando o foram, prescindem de ratificação ou renovação no juízo declinado, em atenção ao princípio do tempus regit actum. […] (AP nº 971-RJ, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 28.6.2016, publicado no DJ em 11.10.2016).

[…] 1. Nos termos da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento do INQ 571, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, a alteração da competência inicial em face de posterior diplomação do réu não invalida os atos regularmente praticados, devendo o feito prosseguir da fase em que se encontre, em homenagem ao princípio tempus regit actum (Inq 1459, Rel. Min. Ilmar Galvão). 2. O regular oferecimento e recebimento da denúncia perante o juízo natural à época dos atos desautoriza o pedido de arquivamento formulado nesta fase processual, em homenagem ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. […] (Questão de Ordem na Ação Penal nº 905-MG, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 23.2.2016, publicado no DJ em 22.3.2016).

[…] Se o deslocamento do foro por prerrogativa de função ocorre no curso do processo por motivo superveniente, são válidos os atos anteriores praticados por juiz competente. […] (Ação Penal nº 813-DF, STJ, Corte Especial, unânime, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 2.3.2016, publicado no DJ em 12.4.2016).

Veja-se que o STJ também muito recentemente reafirmou a impossibilidade de “mera ratificação de atos nulos” de juízo incompetente por aquele que veio a ser declarado competente:

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO LAVA-JATO. 1. INCOMPETÊNCIA DA 13ª VF DE CURITIBA/PR. RECONHECIMENTO PELO TRF4. RATIFICAÇÃO DAS DECISÕES PELA 7ª VF DE SÃO PAULO/SP. RECURSO PREJUDICADO EM PARTE. MEDIDAS CAUTELARES MANTIDAS. 2. DECISÃO MONOCRÁTICA IMPUGNADA TAMBÉM PERANTE O STF. HC 192.058/STF. NULIDADE DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE RATIFICAÇÃO. 3. RATIFICAÇÃO DAS CAUTELARES. NECESSIDADE DE AGUARDAR EVENTUAL RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. ATO QUE DEVERÁ SER IMPUGNADO PERANTE O TRF3. 4. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO PARA ANULAR A RATIFICAÇÃO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA CONSIDERADO NULO. RATIFICAÇÃO DAS CAUTELARES QUE DEVE AGUARDAR EVENTUAL RECEBIMENTO DA DENÚNCIA.

1. O TRF4, em 26/8/2020, reconheceu a incompetência do Juízo da 13ª VF de Curitiba/PR, por não vislumbrar conexão com os demais feitos oriundos da Operação Lava Jato. Dessarte, os autos foram encaminhados ao Juízo da 6ª VF de São Paulo/SP, que ratificou as decisões proferidas por aquele primeiro Juízo. Nesse contexto, o então Relator concluiu estar prejudicado apenas o pedido de reconhecimento de incompetência, uma vez que as decisões cujo reconhecimento de nulidade se pretende foram ratificadas. Concluiu, no mais, que “permanecem hígidas as medidas cautelares decretadas pela 13ª Vara Federal de Curitiba/PR mediante a atuação da Juíza Federal Gabriela Hardt”.

2. Decisão monocrática impugnada também por meio do HC 192.058/PR, impetrado perante o STF, tendo o Relator, eminente Ministro Edson Fachin, de ofício, reconhecido a nulidade do recebimento da denúncia realizado pelo Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR. Nesse contexto, tendo o STF anulado, de forma expressa, e de ofício, o recebimento da denúncia pelo o Juízo da 13ª VF de Curitiba/PR, constato que não é possível se falar em ratificação do recebimento pela 6ª VF de São Paulo/SP.

Se foi anulado, não existe mais no mundo jurídico, não irradia efeitos, não sendo possível, portanto, ratificar algo que foi expurgado do processo. Portanto, deve haver um novo exame, com argumentos próprios, não sendo possível se falar em mera ratificação. A decisão do ilustre Ministro do STF não deixa dúvidas a respeito da necessidade do efetivo “exame de admissibilidade a ser realizado pelo Juízo da 6ª Vara Federal Criminal Federal de São Paulo”, não se cuidando, por certo, de mera ratificação.

3. A alegada ratificação das cautelares deferidas não é igualmente válida, uma vez que o recebimento da denúncia ainda não está presente de forma legítima (ratificação de ato nulo não é a mesma coisa de decisão válida de recebimento da denúncia). Dessa forma, somente após eventual e correto recebimento da denúncia, o Juízo da 6ª VF de São Paulo/SP poderá convalidar ou não as cautelares ainda subsistentes, tendo em conta seu não afastamento, de plano, pelo Excelso Pretório. Acaso ratificadas, haverá outro ato judicial a ser impugnado no TRF3, ficando superada a discussão oriunda do TRF4.

4. Agravo regimental a que se dá provimento para anular a decisão da 6ª VF de São Paulo/SP, que ratificou o recebimento da denúncia feito pelo Juízo da 13ª VF de Curitiba/PR, anulado expressamente pelo STF, para que outra seja proferida, com fundamentação própria. Nessa trilha, as cautelares noticiadas deverão ser reexaminadas após a análise de eventual peça acusatória (nova ou revigorada). (Agravo Regimental em RHC nº 127.689-PR, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Jesuíno Rissato, Rel. Para o acórdão Ministro Reinaldo da Fonseca, por maioria julgado em 22.2.2022, publicado no DJ em 3.3.2022)

Ocorre que, nesse caso, os motivos que tornaram o STF incompetente não são supervenientes, mas antecedentes à própria decisão de recebimento da denúncia.

E isso, paradoxalmente, é reconhecido pelo próprio STF no mesmo julgado!

Veja-se que, após o recebimento da denúncia, os votos já proferidos determinaram o imediato declínio dos autos:

Decisão: após os votos dos Ministros Alexandre de Moraes (Relator), Gilmar Mendes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Dias Toffoli e Carmen Lúcia, que recebiam integralmente a denúncia oferecida contra Roberto Jefferson em relação aos crimes previstos no: (a) Artigo 23, IV, c/c art. 18, ambos da Lei no 7.170/83, por 3 (três) vezes, na forma do art. 71 do CP, considerada a continuidade normativo-típica para o art. 359-L do Código Penal e a ultra-atividade da lei penal mais benéfica; (b) Artigo 138 c/c art. 141, II, ambos do Código Penal, em razão de fatos ocorridos no dia 26/7/2021, considerada a continuidade normativo-típica e a revogação do tipo penal especial (artigo 26 da Lei no 7.170/83) e a retroatividade da lei penal mais benéfica; (c) Art. 286 c/c art. 163, parágrafo único, II e III, ambos do Código Penal; (d) Art. 20, § 2°, da Lei no 7.716/89, por 2 (duas) vezes, na forma do art. 71 do Código Penal, e, recebida a denúncia pelo Plenário desta Corte, votavam no sentido do declínio da competência desta Suprema Corte com remessa dos autos à Seção Judiciária do Distrito Federal, para livre distribuição e para a regular continuidade da Ação Penal, pediu vista dos autos o Ministro Nunes Marques. Plenário, Sessão Virtual de 18.2.2022 a 25.2.2022). (Petição nº 9.844-DF, publicado no DJ em 14.3.2022)

Também de modo exemplificativo, rememore-se que, no Caso Lava-Jato, o mesmo Plenário do STF decidiu de forma totalmente diversa (e não há indicação de overruling):

HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA. CONEXÃO NÃO VERIFICADA. AUSÊNCIA DE PRECLUSÃO. OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL CONFIGURADA. NULIDADE DOS ATOS DECISÓRIOS. ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO ÀS DEMAIS AÇÕES PENAIS. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. No histórico de delimitação da competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba ao processo e julgamento de feitos atinentes à denominada “Operação Lava Jato”, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento de questão de ordem suscitada no INQ 4.130 (23.9.2015), assentou que (i) “[A] colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, não constitui critério de determinação, de modificação ou de concentração de competência”; e que, quando ausente prática delitiva atinente a fraude ou desvio de recursos em detrimento da Petrobras S/A, não estaria configurada a conexão a autorizar a fixação da competência daquele Juízo, pois (ii) “[N]enhum órgão jurisdicional pode-se arvorar de juízo universal de todo e qualquer crime relacionado a desvio de verbas para fins político-partidários, à revelia das regras de competência”.

2. Por ocasião do julgamento de agravos regimentais interpostos nos autos dos INQs 4.327 e 4.483 (19.12.2017), o Plenário do Supremo Tribunal Federal assentou que a atuação do núcleo político da organização criminosa denunciada, porque ínsita ao exercício das respectivas funções, teria se dado na Capital Federal, razão pela qual, diante da inexistência de ligação direta dos fatos denunciados com os delitos praticados em detrimento da Petrobras S/A, afastou a competência da13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba.

3. No julgamento de agravos regimentais interpostos nos autos da PET 6.820, finalizado em 6.2.2018, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal assentou que, a despeito de procedimentos conexos em tramitação perante a 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, a remessa de termos de depoimento prestados em acordo de colaboração premiada contendo a narrativa de fatos supostamente ofensivos a bens jurídicos tutelados pela legislação penal eleitoral deve se dar em favor da Justiça Eleitoral. O mesmo entendimento foi adotado de forma majoritária pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 14.3.2019, por ocasião do julgamento do INQ 4.435 AgR-Quarto.

4. Em nova delimitação da competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, por ocasião do julgamento da PET 8.090 AgR, realizado em 8.9.2020, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal assentou que nem mesmo fatos praticados em detrimento da Transpetro S/A, subsidiária integral da Petrobras S/A, justificariam a fixação da competência por conexão daquele Juízo.

5. No âmbito da “Operação Lava Jato”, a competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba é restrita aos crimes praticados de forma direta em detrimento apenas da Petrobras S/A.

6. Na hipótese, restou demonstrado que as condutas atribuídas ao paciente não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A, constatação que, em cotejo com os já estudados precedentes do Plenário e da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, permite a conclusão pela não configuração da conexão que autorizaria, no caso concreto, a modificação da competência jurisdicional.

7. As mesmas circunstâncias fáticas, ou seja, a ausência de condutas praticadas de forma direta em detrimento da Petrobras S/A, são encontradas nas demais ações penais deflagradas em desfavor do paciente perante a 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, tornando-se imperiosa a extensão da ordem concedida, nos termos do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal. (Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 193.726-PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 22.4.2021)

Respeitosamente, as decisões são francamente contraditórias.

Nessa última anularam (muitos anos depois) a competência e todos os atos praticados.

Na publicada em 14.3.2022, proferiram decisão de recebimento da denúncia sem qualquer competência constitucional para tanto (e sem atribuição do Promotor Natural, gize-se), fazendo imediato (e paradoxal) declínio.

Mantemos nosso entendimento fixado há muito tempo de forma abstrata: decisão proferida por juízo absolutamente incompetente (seja ele quem for) é manifestamente nula, não sendo passível de qualquer ratificação.

Denúncia oferecida em desrespeito ao Promotor Natural e recebida por juízo manifestamente incompetente não possuem validade jurídica alguma.

Todos os atos praticados necessitam ser novamente realizados por quem a Constituição estabelece tais atribuições e competência.

A análise crítica ora feita é objetiva, na medida em que não se compreende quais razões jurídicas para o tratamento díspar.

Salvo melhor juízo sempre.

Mas essas são nossas rápidas considerações, salvo melhor juízo sempre.

Acesse o inteiro teor em pdf aqui:

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