Lost in translation: o hearsay segundo o Superior Tribunal de Justiça

Antonio Henrique Graciano Suxberger 1

RESUMO
O uso de expressões oriundas do Direito norte-americano tem sido frequente em julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Especificamente, o Tribunal tem mencionado, nos últimos anos, o hearsay como se o instituto fosse comparável ou aplicável à disciplina legal da prova no Direito Processual Penal brasileiro. O artigo explora os casos em que o Tribunal se vale do hearsay e, na sequência, sustenta haver equívoco na menção a esse instituto como vedação de testemunho por ouvir dizer ou ausência de produção de prova em juízo em referência a elemento formalizado na investigação preliminar. Metodologicamente, o artigo observa abordagem exploratória e se vale de revisão da literatura sobre o hearsay.


PALAVRAS-CHAVE:
Prova testemunhal. Standard probatório. Direito Probatório. Transplantes legais.


SUMÁRIO:

1 Introdução. 2 Hearsay na jurisprudência do STJ. 3 O que é hearsay? 4 Let me translate it for you. Considerações finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO


O Superior Tribunal de Justiça tem, em suas decisões, prestigiado cada vez mais expressões oriundas do Direito estrangeiro, com especial destaque ao Direito norte-americano. Tem sido frequente a menção a institutos como stop and frisk, Search and seizure, privilege against self-incrimination, police bias e outros2 . A expressão ao hearsay, que na Corte tem sido tratado como sinônimo de testemunho por ouvir dizer, mostra-se particularmente problemática.
Do inglês ao português, de fato, a expressão hearsay pode ser traduzida como boato ou ouvir dizer. Mas essa tradução guarda fidelidade ao sentido jurídico do instituto do hearsay? Pretendo responder a essa pergunta a partir de uma pesquisa na jurisprudência do STJ que identifique a partir de quando e por que o Tribunal tem feito referência ao hearsay.

A pretensão do presente trabalho é modesta. O tema dos transplantes (WATSON, 1993) e traduções jurídicas (LANGER, 2017) tem ocupado boa parte do pensamento teórico do Direito Processual Penal (não com exclusividade) – penso que esse campo deva ser ainda mais explorado.3 Muitas vezes nos deparamos com o socorro do Direito comparado, mas a utilização de institutos extraídos de outros contextos e ordenamentos pode ser perigosa. Ela é bem-vinda e pode ser muito útil, desde que colhamos da experiência do Direito comparado o desenvolvimento do instituto jurídico, e não propriamente uma importação acrítica dessa ou daquela regra.


Se a reflexão acadêmica cumpre relevante papel de crítica ao entendimento dos Tribunais, busco atender a esse papel. Anoto de saída que a crítica dirigida à jurisprudência tem por finalidade justamente o aprimoramento do papel judicante. Não me deteria a refletir sobre o tema unicamente para diminuir a relevância desse ou daquele julgado, muito menos seus prolatores. Essa advertência inicial, espero, deve acompanhar o leitor ao longo do texto, até para que, ao final, possamos refletir juntos sobre como o STJ pode dizer o que pretende de maneira mais clara.4


A pesquisa é do tipo exploratória, a partir de julgados colhidos do STJ, e se vale de revisão bibliográfica sobre o instituto do hearsay. O artigo, espero, interessará aos estudiosos do Direito Processual Penal, mas também aos interessados sobre Direito probatório em geral e sobre abordagens metodológicas do Direito comparado.


2. HEARSAY NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ
O sítio eletrônico de pesquisa da jurisprudência do STJ indica 72 acórdãos a partir da busca da expressão hearsay (sem qualquer outra delimitação).5 Todos os acórdãos são oriundos da 5ª e 6ª turma do Tribunal. Essa assertiva, desde logo, é relevante. Afinal, o hearsay rule é uma regra probatória aplicável a todo tipo de processo – e não apenas ao processo penal. Se a regra se refere indistintamente ao Direito Probatório norte-americano, aplicável a processos cíveis e criminais, chama a atenção o fato de que tal referência à regra do Direito norte-americano tenha se tornado uma ação frequente unicamente nas turmas criminais do STJ.

Apenas por curiosidade, a expressão aparece em único julgado do Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se do HC 81.172, julgado em 11 de junho de 2022, pela 1ª Turma. O caso versava sobre chamada de corréu e depoimento policial indicativo de informação sobre a autoria. Para os fins do presente artigo, menciono o STF porque o problema que apontarei na sequência não é exclusivo do STJ: são 40 decisões monocráticas em que o STF menciona o hearsay – vale, quando menos, um convite a que também o STF seja escrutinado no uso dessa expressão.

Passo, então, a analisar o conjunto de acórdãos do STJ que mencionam o hearsay. O primeiro acórdão refere-se a julgamento realizado em 16 de fevereiro de 2016 (REsp 1444372), pela 6ª Turma. Nele, a referência ao hearsay rule aparece como se a categoria fosse sinônimo de testemunho indireto. Reproduzo a frase da ementa:


A norma segundo a qual a testemunha deve depor pelo que sabe per proprium sensum et non per sensum alterius impede, em alguns sistemas – como o norte-americano – o depoimento da testemunha indireta, por ouvir dizer (hearsay rule). No Brasil, embora não haja impedimento legal a esse tipo de depoimento, “não se pode tolerar que alguém vá a juízo repetir a vox publica. Testemunha que depusesse para dizer o que lhe constou, o que ouviu, sem apontar seus informantes, não deveria ser levada em conta.” (Helio Tornaghi).


A frase desvirtua o instituto, pois o aplica como se fosse uma vedação de testemunho indireto sem referência à fonte versada pela testemunha que declara sobre o fato. Vale exonerar Tornaghi do equívoco: na obra referenciada no julgado (Instituições de processo penal, v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 461) não há propriamente uma referência ao hearsay rule, mas sim a preocupação de que a prova testemunhal não se convole numa reprodução irresponsável de rumores ou notícias inqualificadas.

Retornarei a esse ponto adiante, porque esse é justamente o ponto central da crítica dirigida ao STJ em suas decisões que mencionam o hearsay rule.


O tema de fundo do julgamento de 2016 referia-se à insuficiência dos elementos informativos produzidos unicamente na investigação preliminar para amparar a pronúncia. A decisão do Tribunal, para além da menção que ora reputo equivocada ao hearsay, cuida verdadeiramente do padrão probatório exigido para a pronúncia. Quer parecer que o Tribunal fixou o entendimento de que, para pronúncia, é preciso prova testemunhal produzida em juízo e, portanto, submetida ao contraditório. Contudo, não foi isso que a fundamentação efetivamente trouxe.


A menção ao hearsay rule torna a aparecer em julgamento de 2017 (20 de abril), também da 6ª Turma (REsp 1.373.356). Nele, a expressão aparece no acórdão do TJBA recorrido e na decisão do STJ – em reprodução exata ao que escrito em 2016.
A 5ª Turma passa a prestigiar a menção ao hearsay rule em 8 de agosto de 2017 (HC 397.485). Reproduzo abaixo a menção à expressão porque, nesse julgado, o equívoco se mostra mais grave:

Note-se que o testemunho do policial se encaixa com perfeição no denominado “hearsay testimony”, que é a testemunha de “ouvi dizer”, ou seja, “aquela pessoa que não viu ou presenciou o fato e tampouco teve contato direto com o que estava ocorrendo, senão que sabe através de alguém, por ter ouvido alguém narrando ou contando o fato”. (Lopes Jr, Aury. Limite Penal. Testemunho “hearsay” não é prova ilícita, mas deve ser evitada. http://www.conjur.com.br/2015-out-30/limite-penal-testemunho-hearsay-nao-prova-ilicita-evitada2. Acesso em: 27 de julho de 2017).
[…]
Portanto, certo é que a prova produzida por meio da testemunha de “ouvi dizer” não pode ser peremptoriamente considerada imprestável para o processo, uma vez que a partir dela é possível se chegar a uma testemunha referida, a qual possa confirmar o testemunho daquele que nada viu. Lado outro, não se pode admitir nos autos a prova que acusa sem ter contato com os fatos e sem identificar quem teve, pois, reitero que a denúncia anônima demanda diligências complementares para iniciar o processo quanto mais para servir de prova para condenação.

Eis o problema: o hearsay rule é regra que limita a produção da prova testemunhal. Ela veda o escrutínio de testemunha que venha a dizer sobre algo para o qual não foi chamada a declarar – o meio de prova escapa de sua autenticação. O que disse a 5ª Turma? Num primeiro momento, destaca (com acerto) que a testemunha deve indicar os meios pelos quais tomou conhecimento do que afirma perante a autoridade; mas, num segundo (e contraditório) momento, diz que a prova é inadmissível (ilícita?) quando a testemunha não trava contato com os fatos sobre os quais declara. A confusão é explicitada quando a fundamentação confunde o que é limite da produção da prova e o que é inadmissibilidade de prova. São inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos, diz a Constituição (art. 5ª, inc. LVI) – trata-se da regra de exclusão positivada em nosso ordenamento. Imprestabilidade da prova, contudo, refere-se ao seu reduzido poder de convencimento, isto é, o sentido de imprestabilidade se refere à credibilidade, fidedignidade do relato em face do fato que menciona.

De fevereiro de 2015 a outubro de 2021, há apenas quatro julgados que mencionam o hearsay rule dessa maneira. A partir de 2021, contudo, a menção se multiplica e o que indico como se problema se agrava. A partir do AgRg no HC 668407, julgado pela 5ª Turma em 19 de outubro de 2021, a menção ao hearsay rule em acórdãos do Tribunal se torna um lugar comum. No mesmo ano de 2021, 23 de novembro (REsp 1.916.733), 13 de dezembro (AgRg no HC 699.259), 14 de dezembro (AREsp 1.940.381 e AgRg no HC 703.960).


Ainda em 2021, a 6ª Turma julga o AgRg no HC 690.646, com a mesma referência à advertência Tornaghi. Atenho-me aos casos sucessivos da 5ª Turma. Por quê? Porque a mesma fundamentação da 5ª Turma abandona a advertência de Tornaghi e passa a constar em dezenas de julgados que se seguiram nos anos de 2022 até hoje.


A 6ª Turma, que até então trazia unicamente um equívoco na explicação, abraça integralmente aquilo que ora nomino como erro manifestado pela 5ª Turma. Explico: os julgados de 2016 e 2017 mencionam a explicação (valiosa) de Helio Tornaghi. Este não se referia à vedação ou imprestabilidade do testemunho indireto, mas à pouca credibilidade daquele que declara sem explicar “as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade” – a expressão entre aspas refere-se à parte final do art. 203 do CPP. A advertência de Tornaghi, pois, dirige-se à fundamental importância de observância do que estabelece a parte final do art. 203 do CPP.


O legislador, quando fala da credibilidade da própria testemunha, o faz no art. 214 do CPP – ali se trata dos chamados defeitos ou circunstâncias, que dela possam retirar credibilidade. Já em relação ao conteúdo do que declara a testemunha, sua maior ou menor credibilidade decorre justamente da indicação das “razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade” (novamente, o art. 203 do CPP).


O que faz a 5ª Turma quando menciona o hearsay? Na ementa dos julgados, passa a indicar a seguinte: “O testemunho de ‘ouvir dizer’ (hearsay) não é suficiente para fundamentar a pronúncia. Precedentes da Quinta e Sexta Turmas.” É no corpo do julgado que aparece a fundamentação que mais se dissocia do sentido de hearsay. Reproduzo o excerto:

Os testemunhos indiretos dos policiais também não autorizam a pronúncia, porque são meros depoimentos de “ouvir dizer” – ou hearsay, na expressão de língua inglesa -, que não têm a força necessária para submeter um indivíduo ao julgamento popular.
[…]
Em resumo, portanto, tem-se que dos três depoimentos que sustentam a versão acusatória, um – o único de substância real sobre o que aconteceu – foi prestado somente durante o inquérito, enquanto dois nada acrescentaram sobre os fatos, porque foram apenas de “ouvir dizer” – hearsay. Nenhum deles, como visto, é aceito pela jurisprudência do STJ como fundamento válido para a pronúncia.

Aqui o problema: ao indicar “meros depoimentos de ‘ouvir dizer’ ou hearsay”, o STJ (refiro-me a todo o tribunal, pois essa fundamentação passa a ser encontrada em julgados de ambas as turmas) equipara o que não admite equiparação. O erro, no caso, mostra-se grave: seja porque não espelha o que parece ser a intenção do Tribunal ao exigir maior rigor probatório para a pronúncia, seja porque comete erro epistemológico desnecessário quando transplanta instituto do Direito norte-americano sem atentar para o contexto do próprio instituto.


3. O QUE É HEARSAY?


O hearsay rule não é instituto de fácil compreensão ou aproximação. Ao contrário: são tantas as controvérsias e problemas em referência a ele que, só por isso, já seria questionável a menção a ele em julgados brasileiros. Para obviar a explicação, colho do Federal Rules of Evidence – o “código” de Direito Probatório formalizado na esfera federal nos Estados Unidos o conceito de hearsay:

Entende-se por hearsay a declaração que:
a) o declarante não faz na qualidade de testemunha no curso de audiência ou julgamento;
b) uma parte oferta para provar a verdade sobre fato versado em declaração.6

O hearsay traz uma preocupação com o “perigo de hearsay”. O mencionado perigo surge quando se pede ao julgador que deduza uma proposição sobre matéria de fato a partir desse hearsay, isto é, o julgador precisa – para realizar o que lhe é pedido – confiar num ou mais elementos da credibilidade do declarante. Cuida-se de considerar a capacidade (e a oportunidade) de observar, recordar ou comunicar com precisão ou a intenção de afirmar o que acredita ser verdade.(WEINSTEIN, 1960, p. 331).


O hearsay traz tantas exceções – não é meu propósito tratar delas neste trabalho, porque o risco de reduzir complexidades é insuperável –, que rememoro a advertência de Ana Lara Castro. Ela diz que o instituto parece, à primeira vista, muito regrado; mas, em verdade, o hearsay resulta em um conceito muito maleável (CASTRO, 2017, p. 245). É dela, igualmente, a advertência certeira: “traduzir em português hearsay como ‘prova por ouvir dizer’ passa ao largo de qualquer representação técnica” (CASTRO, 2017, p. 246).

Afinal, a regra geral que impõe a exclusão de hearsay não deriva da falta de credibilidade da declaração que se distancia da fonte pela qual o declarante tomou conhecimento do que afirma. A razão é outra: trata-se de limitação de produção de prova oral que deriva da dificuldade de confronto quanto ao fato trazido pelo hearsay. Afastando-se o risco de que se trate de declaração inventada, criada ou carente de embasamento, tal como ocorre no Direito brasileiro, é admissível e, mais, é digno de credibilidade o relato trazido por testemunha que diz sobre fato de que tomou conhecimento por ouvir dizer.


Como, então, afastar o nominado perigo de hearsay, para prestigiar a expressão inglesa? Trata-se de aprofundar o escrutínio justamente sobre as razões pelas quais o declarante declara em juízo. Não há qualquer novidade aqui: a redação do art. 203 do CPP já se encontra no Código desde sua versão original de 1941. Aliás, também o debate sobre o hearsay no Direito norte-americano remonta ao século XVI e só recebe desenvolvimento mais específico ao longo do século XVIII (WIGMORE, 1904).

Não quero dizer que as limitações atinentes ao hearsay sejam desimportantes. Antes, ao contrário. Por todos, referencio Friedman, quando diz o seguinte:

Espera-se que as testemunhas no nosso sistema testemunhem face a face em relação à parte adversa, sob juramento e sujeitas a contrainquirição e, se razoavelmente possível, em julgamento. Isso, compreendemos melhor atualmente, é um comando constitucional dirigido às testemunhas de acusação e é necessária alguma restrição ao hearsay para fazer valer tal comando.7

Como se efetiva essa preocupação no Direito norte-americano? Não se faz isso limitando a indicação de testemunhas, mas justamente limitando a inquirição da testemunha que se apresente a depoimento.


Já tive oportunidade de destacar a importância – com os devidos cuidados, claro – de utilizar produtos culturais (como filmes, séries, livros) como possibilidade de aproximação conceitual de temas caros ao Direito Processual Penal (SUXBERGER, 2022). Os livros e séries podem ser utilizados no chamado problem based learning, para induzir e permitir a crítica no aprendizado de institutos jurídicos. Nos filmes e séries de tribunais – os chamados Court Movies se convolaram em gênero de filme –, é comum nos deparamos com uma parte “objetando” a pergunta da outra durante a inquirição de testemunha.

Eis o ponto: no Direito norte-americano, dado o fato de que o trial se dá, como regra, para julgamento por jurados, o procedimento probatório é muito mais regrado que o usualmente previsto para julgamento por juízes togados. O regramento mais detalhado, pois, se refere justamente ao cuidado a que o jurado – por ser leigo – não seja levado a decidir erradamente sobre os fatos. Afinal, o julgamento odioso ou arbitrário não o deixa de ser quando o julgador não é togado. O sentido de participação popular em decisões judiciais não comporta a admissão do julgamento arbitrário.


Assim, como etapa antecedente à produção probatória na sessão de julgamento, tem-se a nominada autenticação da prova. Colho, mais uma vez, do Código federal de Direito probatório norte-americano o que isso significa: para satisfazer a autenticação ou identificação de um meio de prova, o proponente deve apresentar prova suficiente para concluir que aquele meio de prova é o que o proponente afirma que é.8 Quando uma das partes indaga sobre conteúdo que convola o depoimento da testemunha em hearsay, o caso é de objeção pela parte, para que o juiz togado interceda e proíba a inquirição e subsequente resposta.


Como se vê, o instituto do hearsay, de formidável relevância e utilidade para uma produção probatória de qualidade no Direito norte-americano, é imprestável para os fins que tem indicado o STJ nas iterativas (e cada vez mais difundidas) referências a ele.

4. LET ME TRASLATE IT FOR YOU


A insistente menção ao hearsay no STJ, como anotei acima, tem se evidenciado para além de um fundamento decisório de preferência desse ou daquele Ministro da Corte, para ganhar prestígio em diversos acórdãos.

Torno à análise dos julgados. São 72 acórdãos: 45 da 5ª Turma e 27 da 6ª Turma. As relatorias são assim distribuídas: na 5ª Turma, 31 acórdãos são de um só Ministro relator. Nessa Turma, ainda, o segundo Ministro que mais se utiliza da expressão redigiu 6 acórdãos. Já na 6ª Turma, 11 acórdãos de um só Ministro; a segunda maior incidência indica 5 acórdãos de um único desse colegiado. Na 6ª Turma, 5 Ministros já mencionam o hearsay nos termos indicados. Na 5ª Turma, são 4 Ministros mencionando hearsay em seus acórdãos. Cada Turma, vale lembrar, é composta por 5 Ministros. Como se vê, o que antes era uma preferência de um ou outro Ministro, passa a figurar como fundamento decisório de todo o Tribunal com competência criminal (à exceção da Corte Especial, que detém competência criminal, mas não traz nenhum julgado com menção a hearsay).


Assim, projetadas as relatorias e as datas dos julgados, o que se vê é a reprodução da referência equivocada ao hearsay cada vez mais difundida dentro do Tribunal. O que antes parecia ser uma lição ou referência equivocada passa a se sedimentar como uma “lição” do STJ no tema – cuja originalidade deriva não do ineditismo, mas da atribuição de sentido a categoria que, evidentemente, não a comporta.


Vale aclarar o sentido da crítica aqui anotada. Não se trata propriamente de criticar a razão de fundamento indicada pelo STJ nos casos em que se valeu da menção ao instituto do hearsay. Isso pode até ensejar uma reflexão detida em outro trabalho. O problema é outro: o hearsay não se presta a amparar o que o STJ quer dizer.


Num primeiro momento, o Tribunal destaca a relevância de observar a parte final do art. 203 do CPP. É dizer: toda e qualquer pessoa que declare em juízo deve aclarar as razões pelas quais afirma isso ou aquilo perante a autoridade. Como tomou conhecimento do fato que afirma? Viu? Ouviu? De quem? Como? Qual a relação do que percebeu em face do que expressa em juízo?


Nesse sentido, a oitiva de rumor ou notícia inqualificada (anônima), sem a indicação mínima de como se possa aferir a credibilidade dessa notícia, de fato, reduz à imprestabilidade o relato da testemunha nesse sentido. Não se trata da testemunha carente de credibilidade (isso é matéria para o art. 214 do CPP), mas da imprestabilidade daquele ponto que declara, pois inviável o escrutínio das razões pelas quais a testemunha afirma aquilo.


Quando menciona o hearsay em casos de júri, indicando-o como se fosse razão de crítica para a importância dos elementos formalizados na investigação que não guardaram convergência com a prova produzida em juízo, o que parece fazer o STJ é elevar o padrão probatório necessário para a pronúncia. A fundamentação do STJ diz da necessidade de que a decisão de pronúncia (art. 413 do CPP) guarde necessariamente amparo em prova produzida sob o crivo do contraditório. Seria fixar medida de incidência do art. 155 do CPP ao que seja a admissibilidade do caso para júri. Se essa era a pretensão do Tribunal, é imprestável a menção ao hearsay, pois o instituto em nada se relaciona a essa intenção.


Nos últimos dois anos, o STJ tem indicado, nos acórdãos de menção ao hearsay, uma espécie de tarifação ao testemunho policial, quanto a sua suposta falta de credibilidade porque o agente policial teria compromisso de validação do trabalho investigatório que ele próprio realizara. Tome-se, por exemplo, o EDcl no AgRg no AREsp 2.359.066, julgado em 5 de março de 2024. Essa compreensão subverte o que estabelece o art. 214 do CPP. Afinal, tem-se que o agente público que declara sobre fato que seja de seu conhecimento por força do regular exercício da função é isento de defeito ou circunstância (art. 214 do CPP).

Explico. Não se trata de presumir verdadeiro o que declara o policial porque ele é policial. Cuida-se de considerar a testemunha isenta de defeito ou circunstância, até indicação em contrário. A verdade do que ele declara passa pelo escrutínio do art. 203 (cotejo das razões pelas quais afirma em juízo isso ou aquilo, para dali se dar credibilidade ao relato); o tema da ausência de defeito ou circunstância dirige-se à pessoa da testemunha.

O STJ, contudo, distante dessa diferença relevante, afirma que depoimentos policiais se somam a testemunhos indiretos para frustrar o cumprimento de um padrão probatório necessário à pronúncia. Os temas não se confundem e essa mescla argumentativa mais atrapalha que ajuda na fixação do que seja a uniformização de compreensão sobre o Direito infraconstitucional, máxime quando se tem em conta que os julgamentos do STJ não versam sobre fatos (julgamentos de direito estrito).

CONSIDERAÇÕES FINAIS


Como se vê, a insistente e cada vez mais reproduzida menção ao hearsay pelo STJ em seus julgamentos criminais não respeita o que seja o sentido jurídico da categoria no Direito norte-americano, de onde ele supostamente seria extraído, tampouco ajuda o Tribunal a fixar o que seja seu entendimento nos temas ali versados.


A pesquisa jurisprudencial mostra que o que era uma referência tímida e deslocada tornou-se uma “lição” reproduzida em número cada vez mais elevado de julgados e por diversas vozes dentro do mesmo Tribunal.
O STJ pode – e deve – estabelecer o entendimento sobre valoração do testemunho indireto, padrões de inquirição de testemunhas para aclaramento das razões pelas quais declaram em juízo determinada verdade, bem assim elevar o padrão probatório para decisões de pronúncia ou mesmo sentença condenatória. Mas, para fazê-lo, deve fidelidade às categorias jurídicas que amparam a fundamentação das decisões, sob risco de criar mais confusão onde deveria justamente esclarecer.

1 Doutor e Mestre em Direito. Pós-doutor. Professor titular do programa de Mestrado e Doutorado em Direito do CEUB (Brasília). Promotor de justiça no Distrito Federal. E-mail: antonio.suxberger@ceub.edu.br
2 Em trabalho específico, deduzi crítica a esses transplantes e traduções problemáticas: cf. SUXBERGER, 2023.

3 Godoy e Ribeiro indicam os caminhos para a boa utilização do Direito comparado para desenvolvimento do Direito interno (2020). Eles anotam os riscos das transposições de modelos e fontes, mas destacam igualmente a utilidade de se fazer isso, claro, com rigor metodológico e resgate historiográfico para boa contextualização dos institutos.
4 Otavio Luiz Rodrigues Júnior destaca a necessidade de revisitação do papel da doutrina na crítica à jurisprudência: antes, como método; hoje, como relevante instrumento de crítica e fomento ao chamado Direito jurisprudencial – fonte criativa e central do Direito (2010).
5 Pesquisa realizada em 20 de abril de 2024 no campo “Jurisprudência” do portal eletrônico do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/ .

6 No original: “(c) Hearsay. “Hearsay” means a statement that: (1) the declarant does not make while testifying at the current trial or hearing; and (2) a party offers in evidence to prove the truth of the matter asserted in the statement.” ((UNITED STATES OF AMERICA (USA). SUPREME COURT OF UNITED STATES (SCOTUS), 1946, arts. 801, letter C).

7 No original: “Witnesses in our system are expected to testify face-toface with the adverse party, under oath and subject to cross-examination and, if reasonably possible, at trial.9 That, we now better understand, is a constitutional command with respect to prosecution witnesses, and some constraint on hearsay is necessary to enforce it.” (FRIEDMAN, 2014, p. 450). Tenho recusado traduzir exatamente a palavra hearsay neste trabalho justamente para sublinhar os problemas da má tradução efetivada pelo STJ.

8 No original: “To satisfy the requirement of authenticating or identifying an item of evidence, the proponent must produce evidence sufficient to support a finding that the item is what the proponent claims it is.” (UNITED STATES OF AMERICA (USA). SUPREME COURT OF UNITED STATES (SCOTUS), 1946, arts. 901, letter A)

REFERÊNCIAS
CASTRO, Ana Lara De. Hearsay tropicalizado: a dita prova por ouvir dizer. Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4a Região, n. 6, p. 241–256, 27 abr. 2017.
FRIEDMAN, Richard D. Jack Weinstein and the Missing Pieces of the Hearsay Puzzle. DePaul Law Review, v. 64, n. 2, p. 449–73, 2014.
GODOY, Arnaldo; RIBEIRO, Gustavo. O Direito Comparado: resgate historiográfico, conceitos e problemas metodológicos. Revista de Direito Internacional, v. 17, n. 1, 3 jul. 2020. Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/rdi/article/view/6252. Acesso em: 10 jul. 2020.
LANGER, Máximo. Dos transplantes jurídicos às traduções jurídicas: a globalização do plea bargain e a tese da americanização do processo penal. Tradução Ricardo Jacobsen Gloeckner; Frederico C. M. Faria. Delictae: Revista de Estudos Interdisciplinares sobre o Delito, v. 2, n. 3, p. 19–19, 28 dez. 2017.
RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo). Revista dos Tribunais, v. 99, n. 891, p. 65–106, jan. 2010.
SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Anatomia de um crime: sistema adversarial como possibilidade do modelo acusatório. In: FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê; FARIAS, James Magno Araújo (Org.). O veredicto articulações entre direito e cultura: estudos em homenagem ao desembargador Américo Bedê Freire. São Luís: James Magno Araújo Farias, 2022. p. 97–110.
SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Traduções Jurídicas em epistemologia probatória: uma crítica às decisões do Superior Tribunal de Justiça em matéria penal. In: BRZOZOWSKI, Jerzy; PEREIRA, Eliomar da Silva (Org.). Verdade, Linguagem & Prova: diálogos entre filosofia e direito [recurso eletrônico]. Florianópolis: Tirant Lo Blanch Brasil, 2023. p. 85–102. Disponível em: https://editorial.tirant.com/br/libro/verdade-linguagem–prova-dialogos-entre-filosofia-e-direito-eliomar-da-silva-pereira-E000020005736?busqueda=verdade%2C+Linguagem+e+Prova+&. Acesso em: 3 ago. 2023.
UNITED STATES OF AMERICA (USA). SUPREME COURT OF UNITED STATES (SCOTUS). The Federal Rules of Criminal Procedure. 2020 Edition, 1946. Disponível em: https://www.federalrulesofcriminalprocedure.org. Acesso em: 15 jun. 2020.
WATSON, Alan. Legal Transplants: an approach to comparative Law. 2. ed. Athens: University of Georgia Press, 1993.
WEINSTEIN, Jack B. Probative Force of Hearsay. Iowa Law Review, v. 46, p. 331–355, 1961 1960.
WIGMORE, John H. The History of the Hearsay Rule. Harvard Law Review, v. 17, n. 7, p. 437–458, 1904.

Para fazer o download integral do texto, clique aqui:

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